Linha do Minho “não faz parte dos comboios do século XXI”

A linha minhota está a ser modernizada. Entre Nine e Valença, comboios velhos e lentos circulam numa via única. Passam poucas vezes e num horário desajustado para quem trabalha longe. Atrasam-se com frequências. E “o grande problema são as ligações” aos comboios mais modernos.

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A automotora que faz as praias do Minho há quase 40 anos é carinhosamente apelidada de Camelo.

Esta é a quarta de uma série de reportagens do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios.

O aviso leva várias pessoas a desviar o olhar na mesma direcção: “Senhores passageiros, vai dar entrada na linha número um o comboio urbano com destino a Braga.” Quando a promessa se cumpre, precipitam-se homens, mulheres e criança. Como num jogo de cadeiras, nem todos se conseguem sentar. Alguns ficam de pé, a olhar uns para os outros. Muitos puxam os telemóveis, refugiam-se neles.

São quase 10h00 do dia 16 de Agosto. O poder de atracção dos minúsculos ecrãs é tanto que quase só se ouve falar dois velhos amigos, em trajes de férias, num francês impecável. Quantos irão para as praias do Minho? As entradas e saídas quase se podem contar pelos dedos em Ermesinde, Trofa, Famalicão. Em Nine, não. Junta-se um magote. É ali que se separa quem vai para Braga de quem vai para Valença.

Não é só o comboio que muda, percebe-se de imediato. “Lamentamos informar que o comboio regional procedente de Viana do Castelo circula com um atraso de 12 minutos. A hora prevista de chegada é 10h55”, avisa uma voz. “É, vem atrasado”, comenta uma mulher. “É o costume”, retorque o homem que a acompanha.

O comboio que está a chegar é o mesmo que há-de partir. Há via única daqui até à fronteira luso-galega. Até Braga, é que já há via dupla. Entre 2002 e 2004, a propósito do Campeonato Europeu de Futebol, a linha foi modernizada até Nine (a intervenção permitiu não só duplicar a via, mas também electrificá-la). Nos 43 quilómetros que vão até Viana do Castelo, está a sê-lo. Nos 48 seguintes que vão até Valença, há-de ser.

As obras entre Nine e Viana do Castelo decorrem com nove meses de atraso. E o concurso público para a modernização do troço Viana do Castelo – Valença foi lançado com 15 meses de atraso, face ao que está previsto no Ferrovia 2020. Não é assunto por aqui hoje, esse atraso. Pelo menos que se ouça. Só os tempos de espera e de viagem, os horários e as ligações, a praia e as festas da Senhora da Agonia.

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O regresso dos Camelos

Olhando em volta, dir-se-ia que o maior sorriso da plataforma está na cara de Pedro Saldanha, um estudante de Economia de 20 anos. Ele e o irmão, Diogo, de 18, estão a contar os minutos para pôr os pés na areia e quebrar umas ondas. Passaram muitos verões com os pais, os tios e os primos no Acampamento Sereia da Gelfa, perto das praias de Afife, Âncora e Moledo. E é para lá que vão. Quatro tios e seis primos já lá estão.

Sabe bem no que se está a meter. A automotora que já seguiu para Braga é de tracção eléctrica e entrou ao serviço em 2002. E esta que agora vai para Valença é de tracção a gasóleo, vinte anos mais velha, alugada ao país vizinho, parte de um conjunto conhecido por “Espanholas” ou “Camelos”.

Talvez Pedro seja um rapaz invulgar. Gosta mais destes comboios, considerados obsoletos, do que dos outros. São menos frequentes, mais barulhentos, cheiram “um bocadito” a gasóleo, mas parecem-lhe “mais confortáveis”. Gaba-lhes os assentos e o espaço entre eles. “Nos outros, as pessoas batem umas nas outras com as pernas.” As casas de banhos, essas, é que “é melhor não usar”.

O comboio chega a Viana do Castelo às 12h02, como previsto. O maquinista preferiu cortar o descanso a fazer esperar os passageiros.

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Não tem havido supressões, como noutras linhas. “O grande problema são as ligações”, avalia Duarte Rocha, um programador de 27 anos que encaixa na categoria de passageiro frequente. Muitas vezes são só cinco, seis, sete minutos e é o ver se te avias para não perder o Urbano e ficar ali a olhar para nada uma hora.

Mora em Viana do Castelo, mas namora com uma rapariga de Braga. Se quiser ir vê-la, o transporte ferroviário oferece-lhe duas hipóteses: 20h14 ou 20h22. “O das 20h14 em teoria chega a Braga meia hora mais cedo, apesar de sair só oito minutos antes. É um internacional. Pára em menos estações, chega a Nine mais rápido. Qual o problema? Uma janela muito curta para fazer a troca. Esse comboio atrasa-se quase sempre. Acontece-me sair em Nine, ir a correr para o outro lado e ver sair o urbano para Braga.”

Pior era antes, quando estudava na Universidade do Minho, no campus de Azurém, em Guimarães. “Eu sofria muito”, sintetiza. Vivia lá, mas vinha cá passar o fim-de-semana. “As ligações são tão estranhas. Ao domingo é muito difícil apanhar um comboio que demore menos de três horas.” Estudado o horário, entendeu que o melhor mesmo era sair de Viana do Castelo às 20h14. Isto implicava apanhar o Internacional Porto-Vigo, o chamado Celta, até Nine, um Urbano até Lousado e logo outro até Guimarães. Correndo tudo dentro do previsto, tardava duas horas e 22 minutos na viagem.

Podia sair mais cedo, dir-lhe-ão. Se saísse a meio da tarde, tinha um comboio que tardava duas horas e meia, outro três horas e vinte, outro duas horas e cinquenta e cinco minutos. Mas queria aproveitar a viagem para estar com a família. O penúltimo era este, que demorava duas horas e vinte, com “grande probabilidade de perder a ligação”. Se por acaso se atrasasse e só conseguisse apanhar o comboio das 20h22, o último, demorava quatro horas e onze minutos a fazer o mesmo itinerário.

Entrou na Universidade do Minho há quase uma década. “Olhando para os horários, continua tudo igual”, diz, mostrando a informação da CP.

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As automotoras mais recentes e eléctricas seguem para Braga, na linha do Minho. As velhinhas amarelas vindas de Espanha transportam os veraneantes, a diesel.

Nélson Garrido

Viajar por militância

Não será por acaso que, comparando com a região ou com o país no seu todo, o Alto Minho tem menor proporção de pessoas que usam transporte colectivo para estudar ou trabalhar (16%). Faltam alternativas rápidas e fiáveis. Que o diga Rui Rocha, um geógrafo de 34 anos que mora no Reino Unido, mas já trabalhou no Porto sem deixar de morar em Viana da Castelo. Quem precisa de entrar às 9h00, tem de sair de Viana às 6h32. O comboio seguinte parte às 7h18, mas já só chega às 9h10. Apesar do gosto pelo comboio, experimentou a camioneta. Pagava menos e perdia menos tempo, mas enjoava.

“É uma linha que não faz parte dos comboios do seculo XXI”, ri-se Bárbara Barreiros. Bem queria que fosse diferente. A advogada, de 39 anos, faz parte dos corpos directivos da Associação Comboios do Século XXI, que luta pela melhoria do transporte público ferroviário a nível local, regional e nacional.

Viajar de comboio é, para Bárbara, uma espécie de militância. Estudou em França, na Alemanha e na Bélgica e percebeu as potencialidades deste meio de transporte. “Entendi que devíamos tentar fazer o transporte ferroviário evoluir no nosso país. É o meio de transporte mais prático. Não ficamos sujeitos ao trânsito, não temos de estacionar. Os atrasos deviam ser raros…”

Não é só conversa. Tem escritório no centro do Porto. Sempre que possível, mete-se no Celta em Viana do Castelo e só sai na estação Porto-Campanhã. O comboio internacional parte às 9h16 e alcança o destino às 10h20. “Para a maioria das pessoas que trabalham, isso não serve.” Para ela, também nem sempre serve. “Quando tenho de estar no Porto mais cedo, vou de carro.”

Alegra-se com a modernização da linha. Quem sabe o que pode acontecer? A Arriva já manifestou interesse em criar uma ligação Corunha – Porto, que pode ser interessante para quem vive em Viana do Castelo (Barcelos e Nine, se lá parar). “Não sei se vai melhorar tanto como dizem. A questão não é só a electrificação. Se continuar a haver só uma via, os comboios têm de cruzar, de parar em alguns locais.”

A via manter-se-á única. A modernização inclui a instalação de sistemas de sinalização electrónica e de telecomunicações, a supressão de passagens de nível, a construção de desnivelamentos, o aumento do comprimento das estações para permitir o cruzamento de comboios de mercadorias com 750 metros.

No despacho que declarou a utilidade pública das parcelas de terreno necessárias à execução da electrificação do troço entre Viana do Castelo e Valença da Linha do Minho, o secretário de Estado das Infraestruturas, Guilherme d'Oliveira Martins, defende que isto deverá “dinamizar o desenvolvimento económico regional, facilitando e fomentando as trocas comerciais entre o Norte de Portugal e a Galiza”.

Ficam, porém, a faltar uns quilómetros do lado espanhol. Nuno Gomes Lopes, vice-presidente da associação Comboios XXI, chama a atenção para o facto de “isso não estar planeado, nem sequer estar negociado”. “A Galiza está mais interessada nas ligações a Madrid. E isto para Lisboa não é prioritário”, lamenta.

Ninguém acompanhará tanto a Linha do Minho como Paulo Vila, director do jornal de Barcelos, e ele está convencido de que “isso será ultrapassado com facilidade”. Todos os problemas fossem esse. “A obra está a ser executada a pensar no transporte de mercadorias, não no de passageiros”, começa por dizer.

Obras nos mínimos

Os dados sobre tráfego estão desactualizados. Os olhos experientes notam um forte aumento do tráfego de mercadorias, com várias circulações diárias de comboios carregados de madeira. Amiúde a linha é tomada por uma sucessão de vagões com rolos de madeira encaixados uns nos outros, como num puzzle.

“Está a ser uma obra feita pelos mínimos”, observa. “O trabalho que está a ser feito nas estações e apeadeiros da linha do Minho não contempla o que está previsto no Plano de Investimentos em Infraestruturas Ferrovia 2020. Previu-se o alteamento e o prolongamento das plataformas, mas isso não está a acontecer na maior parte dos casos.”

Barcelos parece-lhe um exemplo paradigmático: “A plataforma tem 270 metros e só altearam 80 metros.” Isso traz-lhe preocupações de segurança. “Pode dar-se o caso do passageiro aceder ao comboio numa parte da plataforma que está ao nível do comboio e, no regresso, desembarcar num nível bastante inferior.”

O prolongamento das plataformas merece-lhe outra crítica: “Algumas plataformas só têm comprimento suficiente para albergar uma automotora. Por exemplo, por altura das festas da Senhora da Agonia, o comboio circula com mais duas ou três carruagens. Há pessoas que desembarcam directamente na linha.”

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Esse não é um problema novo, admite. É algo que acontece há muito. Só o surpreende que, “quando se fala tanto em melhorar a segurança, isto não seja acautelado”. “Isto acarreta um risco muito grande de queda. Quem sai fora da plataforma tem de caminhar pela via até aceder à plataforma.” Parece-lhe que “era importante pensar mais nos passageiros, reforçar a sua segurança”. Está convencido de que o número de passageiros poderia multiplicar-se. “Há um potencial muito grande”, diz.

Uma armadilha danosa

Há outros desacertos com o mundo moderno. Alguns nem serão difíceis de resolver. Na véspera, Bárbara Barreiros vira estrangeiros a serem convidados a sair do comboio porque não tinham bilhete. Não há caixa Multibanco na estação de Nine, a bilheteira estava encerrada por ser feriado, eles não tinham dinheiro suficiente para pagar o bilhete e o comboio não permite qualquer pagamento electrónico.

Duarte Rocha já foi apanhado nessa armadilha. “Não costumo andar com muito dinheiro na carteira”, justifica. Um dia, apanhou comboio em Braga para Nine. Tinha tirado o bilhete nas máquinas dos urbanos. Chegado a Nine, tinha pouquíssimos minutos para ligação. “Não tinha dinheiro que chegasse comigo, não podia pagar com multibanco no comboio, não podia comprar o bilhete pela Internet. Por acaso, o revisor foi simpático. Ia sair em Viana. Saiu comigo, fomos ao multibanco e paguei o bilhete. Se não, ia perder o comboio, ir ao multibanco, esperar pelo próximo.”

A vida prossegue, lenta, ruidosa, com odor a gasóleo. Agora mesmo, são 14h25 e está a sair um comboio da Estação de Viana do Castelo. Não vai cheio, mas quase. A linha desenvolve-se ao longo da costa atlântica até Moledo, onde se vira para o interior e segue pela margem do Rio Minho até Valença.

Celina Silva, educadora, 53 anos, vai com a filha, Beatriz Sá, de 18 anos, à praia de Afife. Não ignora as recomendações médicas. Ainda vão passar pela casa da mãe dela, antes de se pôr debaixo do sol. Não hão-de ficar muito tempo. O vento levanta uma pequena tempestade de areia, que enxota quem se estende sobre as toalhas em Afife, Âncora e Moledo. É só a linha de praias do Minho a ser a linha de praias do Minho. E será o experimentado Camelo a apanhar os veraneantes engelhados, com o cabelo pejado de areia.