Carlos Pimenta e o ambiente: “As pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias de festa. O planeta não aguenta”

Obrigou a demolir mais de duas mil casas clandestinas, foi decisivo para o chumbo duplo do projecto nuclear em Portugal e durante anos foi o relator do clima do Parlamento Europeu, tudo isto nos anos de 1980 e 90. “A luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta pela cidadania”, diz o antigo secretário de Estado do Ambiente.

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Rui Gaudêncio

As reportagens e imagens de bulldozers a demolirem casas clandestinas no Portinho da Arrábida, na ria Formosa, na lagoa de Albufeira e na Fonte da Telha, entre Outubro de 1986 e a Páscoa de 1987, anunciaram o fim da apatia do Estado sobre o domínio público marítimo e as áreas protegidas. O rosto de uma nova “ideia de natureza e de património paisagístico” até então estranha a um país “onde faltavam esgotos, lixeiras de tratamento de resíduos e saneamento básico, casas também”, é Carlos Pimenta, o secretário de Estado do Ambiente que ocupava a pasta pela segunda vez. 

Tinha montada a operação de “limpeza”, como lhe chamou, para erradicar das zonas ambientalmente sensíveis e do domínio público mais de duas mil casas ilegais, quase todas de segunda habitação. Eram de autarcas, embaixadores, altas patentes militares, empresários, mas também de classes baixas. “Havia de tudo”.

Mandara fazer levantamentos da situação do domínio público marítimo e das áreas protegidas na sua primeira passagem pelo Governo, ao qual chegou com apenas 28 anos. Como o tempo de instabilidade política ditava executivos de curta duração — esteve na pasta entre Junho de 83 e Junho de 84 — não chegou a concluir toda a identificação. As demolições tiveram de esperar até Outubro de 1986. As medidas exemplares visavam sobretudo quem tinha responsabilidades políticas: na ria Formosa as primeiras casas a irem abaixo foram de autarcas. 

“Foram ao meu gabinete enquanto comissão de moradores, um era presidente da Câmara de Tavira, os outros eram presidentes de junta de freguesia e de uma assembleia municipal”, conta Carlos Pimenta. A primeira a ser mesmo demolida foi a do autarca de Tavira, a quem acusou de “roubo”, porque “os terrenos pertenciam a 10 milhões de pessoas e aos seus sucessores”. 

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Nesses anos 80, o poder do Estado era desafiado às claras. Para controlar o processo das demolições, recorria a levantamentos fotográficos. “No ano de 1986, entre Maio e Setembro, foram construídas 300 casas novas e isto já com todos os media a dizer que as casas iam abaixo. As pessoas não acreditavam.” Lembra-se especialmente de ver “um engarrafamento de carrinhas de caixa aberta cheias de tijolos e andaimes”, à saída de uma reunião de trabalho com responsáveis da Marinha no Forte de Santa Maria da Arrábida. “O pessoal ia continuar a construir, apesar de estarem lá as autoridades.”

Contra o que seria expectável, os responsáveis das câmaras abrangidas pela limpeza apoiaram a operação, à excepção do Algarve, de onde diz que vieram as únicas pressões. “Havia muita gente local. Como eram habitantes locais, achavam que tinham o direito a ter uma casa de férias nas ilhas-barreira da ria Formosa”.

Uma situação muito má

Gonçalo Ribeiro Telles tinha sido o inspirador, no início dessa década, da criação do Ministério da Qualidade de Vida (embora não fosse o seu primeiro ocupante) e da Secretaria de Estado do Ambiente. Foi assim que a porta da política teve de se abrir ao ambiente. Carlos Pimenta não chegou a cruzar-se no Governo com Ribeiro Telles, mas diz ter “um grande respeito” pelo trabalho deste arquitecto paisagista pioneiro desde as cheias de 67. Levava a sua tese à prática. “A luta pelo ambiente é uma das formas mais nobres de luta pela cidadania. Não concebo o ser humano desligado do equilíbrio e harmonia com a natureza e o planeta em que vive”, declara, com a certeza de que “o ambiente urbano é o que dá mais trabalho, mais guerras, porque é a matriz da vida e é insustentável na forma como está organizado”. 

Em miúdo, Carlos Pimenta sorvera os filmes de La Fuente e os episódios de Há Só Uma Terra de Correia da Cunha; o estudante de liceu fora diariamente do Barreiro para Setúbal de lenço no nariz porque ou o nevoeiro trazia os gases do ácido sulfúrico dos adubos da Quimigal ou o vento, se soprasse de leste, trazia o que a siderurgia no Seixal largava; o mesmo estudante descobrira com as cheias de 67 o outro país que o Estado Novo escondia e a força da denúncia de Ribeiro Telles de um desastre anunciado — “foi um herói para mim e continua a ser hoje, pôs o dedo na ferida”; o universitário que, entretanto, ganhou a direcção da Associação de Estudantes do Técnico criara com João Caninas a primeira secção Património e Ambiente de uma associação académica de uma escola de engenheiros ligados ao betão e à obra pública.

O primeiro lugar político e público para o qual foi eleito representou a passagem do ambiente de luta política do final dos anos 60 e do 25 de Abril que o levara a filiar-se no PSD de Sá Carneiro em Junho de 1974, com 19 anos, para a luta política pelo ambiente. Os tempos estavam-lhe também de feição: a adesão à Comunidade Económica Europeia obrigava a uma revolução nas leis do ambiente e a austeridade do segundo resgate do FMI, estava Mário Soares à frente do Governo, induzia um clima de rigor.

Já jovem licenciado e sindicalista, ajudava a organizar sessões de educação ambiental destinadas às populações, país fora, com o apoio de um projector instalado na parte traseira de um carro e bobinas de filmes da Comissão Nacional do Ambiente. “Explicavam-se coisas básicas” num tempo em que “as pessoas atiravam uma garrafa fora, fosse de plástico ou vidro, não tinham saneamento básico em casa ou tinham, mas o esgoto ia direito para a ribeira, as fábricas e fabriquetas atiravam tudo para os rios, fossem metais pesados como o crómio, nos sapatos e no couro, fossem as tinturarias no rio Ave, no Cávado, que tingiam de azul, a água saía a ferver, em circuito aberto... A situação era mesmo muito má nas zonas industriais têxteis e do agro-industrial”. Entretanto, criou o GEOTA (Grupo de Estudos do Ordenamento do Território e Ambiente) e “era sócio do que havia para ser sócio” na defesa do ambiente.

A guerra maior

Com duas passagens pela Secretaria de Estado do Ambiente (83/84 e 85/87) e uma mais fugaz pela das Pescas (Fevereiro a Novembro de 85), Carlos Pimenta tornou-se também um dos principais rostos da derrota do nuclear em Portugal. 

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“A guerra maior foi em 83/84 com o nuclear, foi a que deu mais impacto público, mais nervos, mais problemas, foi preciso geri-la com muito cuidado.” É uma indústria que, para Pimenta, “de certa forma, simboliza o mal levado ao extremo da sociedade industrial”, vive “sob o segredo e a mentira” e usa “muitas vezes o nuclear civil como capa do nuclear militar”. 

Em 1983, quando chegou à Rua do Século, em Lisboa, a comissão técnica do Plano Energético Nacional (PEN) propunha a construção de três centrais nucleares, eventualmente uma quarta, capazes de alimentar um determinado crescimento da procura de electricidade das décadas seguintes, calculado com base em modelos matemáticos. Foi dos primeiros despachos que teve para assinar e para o qual foi aconselhado a não criar obstáculos. 

Antes da discussão do assunto em Conselho de Ministros, o pequeno grupo de pessoas de que se rodeou e o conselho do ex-secretário-geral da agência francesa de energia ajudaram a identificar os principais erros da proposta: a assunção de que a procura de electricidade ia crescer sempre mais do que a economia e que as alternativas ao nuclear não existiriam ou seriam caras. Segundo as previsões dos “nuclearistas”, estaríamos hoje a consumir mais 50% de electricidade, o carvão estaria significativamente mais caro, não teríamos gás natural e as renováveis teriam um peso residual. 

Para um documento de mil páginas, Carlos Pimenta preparou cinco notas de uma página para o seu ministro, António Capucho, que acompanhara a “descodificação” dos cálculos. A “intuição política” do então primeiro-ministro Mário Soares e a “sensibilidade ao risco financeiro” do ministro das Finanças Ernâni Lopes reagiram à argumentação de Capucho e o nuclear caiu.

Cerca de um ano depois, com Francisco Sousa Tavares já como ministro do Ambiente e com Pimenta fora do elenco, o dossier voltou de surpresa a Conselho de Ministros. “Era o mesmo projecto. Estavam convencidos que passava”. Uma das pessoas a quem Sousa Tavares telefonou a pedir conselho foi Pimenta. Havia muito menos tempo desta vez, “foram três horas” em que um falava e o outro tomava nota — “escrevia páginas”. Soube do resultado do Conselho de Ministros por um ministro que lhe disse que “o ‘Tareco’ [como era conhecido Sousa Tavares nos meios próximos] falou hora e meia e destruiu aquilo”. “Foi assim que escapámos, por duas vezes”, sublinha.

Carlos Pimenta orgulha-se da dupla vitória contra o nuclear como também dos anos seguintes como eurodeputado, em que deu a cara por várias lutas ambientais, mas especialmente pela do clima, como relator do Parlamento Europeu à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC) e para o Protocolo de Quioto, assinado em 1997. Antes disso, cruzou-se com os dossiers de saúde humana, no caso da qualidade da carne. 

A investigação a muitos matadouros e quintas, e da qual foi relator por influência de Simone Weil, tornou-o quase vegetariano até hoje. “As pessoas têm de se convencer de que a carne é para dias de festa, até porque se pode viver muito bem sem ela. O planeta não aguenta... não há recursos, não há água, não há capacidade de gerir tanto desperdício. Para fazer um quilo de bife o que se deita fora de água, nutrientes, de bife estragado ao longo da cadeia para depois ter um bife no prato, não dá. E o que vi assusta: hormonas, cortisonas, antibióticos, outros tipos de drogas...” 

O relatório aprovado no PE quase por unanimidade, em 1988, proibia a utilização de antibióticos sem atestado médico. “Se se tivesse cumprido, não teria havido a crise das vacas loucas”, anos mais tarde. Guardou como memória desse tempo o quarto de milhão de animais que tiveram de ser abatidos no Reino Unido quando “não houve uma única vaca de agricultura biológica ou de raças autóctones criadas em liberdade que tivesse tido a BSE [vulgarmente conhecida como doença das vacas loucas]”.

Esteve, entretanto, ligado à preparação da conferência do Rio-92 e logo após é nomeado relator do PE para o clima, “por muitos anos”, e que o leva a “dar a volta ao mundo muitas vezes”. Considera que a luta do clima é “a grande luta e a mais complicada”.

“Quioto (em 1997) é uma vitória, um marco muito importante, não salva o planeta mas era o acordo possível para trazer para a mesa da negociação países como a China, Índia, Brasil, onde reside o maior número de habitantes do mundo e que estavam fora disto. Nunca teria havido a cimeira de Paris e o acordo de Paris em 2015 se não tivesse havido Quioto quase 20 anos antes.”

Uma ponte errada num sítio errado

Na contracorrente dos nacionalismos de hoje, o então senador dos EUA Al Gore cria a Globe, uma organização internacional com membros de vários parlamentos (as duas câmaras dos EUA, o europeu, o russo, entre outros). Carlos Pimenta foi “vice” da organização, mais tarde presidente. “Foi muito importante para haver Quioto, era uma rede de cumplicidade que organizava seminários, colóquios concretos sobre o que estava em cima da mesa que os legisladores podiam ajudar a fazer passar”, sem divisões entre direita e esquerda. “Havia gente pró-ambiente em todos os grupos parlamentares”.

Na causa pelo ambiente, olha para a construção da Ponte Vasco da Gama como a sua maior derrota. “É a ponte errada no sítio errado porque ela foi fazer mais um subúrbio em cima de terreno agrícola bom, que temos muito pouco, criou uma nova oferta de habitação e de pessoas a fazerem movimento pendular e, além disso, não resolveu o problema que vem desde Fontes Pereira de Melo que é a falta de uma ligação ferroviária entre o Sul e o Norte do país. Faltava uma ponte ferroviária, vá lá rodoferroviária, e ainda continua a faltar, não se resolveu o transporte de mercadorias pesado e a ligação dos portos do Sul do país com a zona industrial do país. São tiros no pé da competitividade.”

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Marcelista convicto, de quem foi seu “vice” no PSD — foram também contemporâneos a chamar a atenção para os problemas do Tejo, um dando mergulhos famosos, o outro subindo e descendo o rio a defender a urgência de um sistema nacional de tratamento de resíduos perigosos —, foi Durão Barroso quem lhe cortou a continuidade como eurodeputado. E ao contrário do que previra, também não regressou ao Estado.

“Intervencionista” para a ala liberal do PSD, incómodo para outros, outsider na política, insider no ambiente, mudou-se para o sector privado, no início dos anos 2000, especificamente para as energias renováveis, com a Generg e a criação do fundo Novenergia, que haveriam de contribuir para o crescimento da energia eólica em Portugal.

“Tirando a grande hídrica, não havia praticamente nada. Antes de entrar na política em 1983, fui um jovem engenheiro à frente de uma pequena reparação naval, na altura pública, e uma das primeiras coisas que fiz foi montar painéis solares de água quente para os duches no estaleiro. Isto em 79/81. Já tinha essa ‘pancada’”. 

A sexta extinção

No início deste Agosto, viu no site da NASA que a concentração de CO2 na atmosfera atingiu o recorde do último milhão de anos de 403ppm em volume e Quioto já foi há mais de duas décadas. Confessa-se mais angustiado hoje do que antes.

“Já não são os problemas do ambiente de proximidade — que se resolvem com estações de tratamento, com filtros, e outros. O problema do clima é o problema da maneira como vivemos. Deriva da forma como usamos a energia e também como usamos a terra e produzimos alimentos, e que são as principais fontes de emissão de GEE. O clima é estrutural, não pego no clima sem mexer nas cidades, na maneira como as pessoas vivem, comem, se vestem, habitam.”

Preocupa-o que se esqueça a mudança climática assim que a temperatura desce; que na última década o Alentejo tenha perdido um terço da água da chuva, mas esteja a ser povoado com culturas superintensivas; que a água do mar tenha subido sete centímetros nos últimos 25 anos; que metade da humanidade viva à beira-mar, que as infra-estruturas estejam impreparadas para resistir a fenómenos meteorológicos extremos.

“Estamos a viver a sexta extinção planetária desde que a Terra é Terra, em mais de quatro mil milhões de anos esta é a sexta grande extinção, com a diferença de que as outras foram causadas por fenómenos naturais e esta é causada pelo Homem. O clima tem efeitos de grande sofrimento humano, está a provocar refugiados aos milhões, vai provocar a não-habitabilidade de zonas que hoje são grandes cidades, à beira de água, Nova Iorque, Xangai, Hong Kong, Miami e também Lisboa, Aveiro, Faro, Viana do Castelo, todo o litoral.”

Continua a ver “uma enorme resistência à penetração das renováveis”, quando se projecta que, dentro de 20 anos, um quarto da electricidade possa ser produzida na casa das pessoas e transaccionada entre vizinhos ou entre comunidades de energia sem passar pelos sistemas centrais. “Será uma grande mudança do sistema económico, quando uma parte da mobilidade deixará de andar a petróleo e passará para a electricidade, parte desta feita em casa das pessoas e outra centralizada de fontes renováveis.”

Carlos Pimenta está certo de que o que vem aí “é outro mundo, outra economia”. E para o país, “essa economia interessa”. “Porque nós fazemos os equipamentos em Portugal e o petróleo e o carvão e o gás importamo-los para queimar com muita ineficiência”, explica. O que determina essa mudança é que não muda: “Tudo volta à questão de cidadania. As pessoas, nas suas múltiplas vertentes, têm de ser confrontadas com a sua responsabilidade, com o seu padrão de consumo, sejam consumidores, patrões de uma indústria ou autarcas”.