Morreu Claude Lanzmann, o realizador que fez do Holocausto uma memória presente

Jornalista, escritor, filósofo e sobretudo cineasta tinha 92 anos. É dele o monumento Shoah, um filme sobre a memória e não um filme de memórias. Depois dele nunca mais pudemos olhar para o Holocausto da mesma maneira. Depois dele todos passámos a partilhar uma responsabilidade.

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"Não é um filme de recordações (as recordações são coisas do passado), é por excelência um filme da memória no presente", escreveu em 2011 JOEL SAGET

A sua vida não se resume a uma obra, mas Shoah, documentário que resulta de mais de uma década de entrevistas, pesquisa, viagens e memória, foi a sua vida. É um monumento, é o filme definitivo sobre o Holocausto feito a partir de 350 horas de material, de entrevistas, onde quer que houvesse sobreviventes. Claude Lanzmann, cineasta francês, morreu esta quinta-feira, em Paris, aos 92 anos, noticia o diário Le Monde.

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A sua vida não se resume a uma obra, mas Shoah, documentário que resulta de mais de uma década de entrevistas, pesquisa, viagens e memória, foi a sua vida. É um monumento, é o filme definitivo sobre o Holocausto feito a partir de 350 horas de material, de entrevistas, onde quer que houvesse sobreviventes. Claude Lanzmann, cineasta francês, morreu esta quinta-feira, em Paris, aos 92 anos, noticia o diário Le Monde.

Quando estreou, em 1985, o filme causou um tremendo impacto, não apenas pelas suas quase dez horas de duração, mas pela forma como Lanzmann, recusando-se a banalizar a memória com imagens de época, tantas vezes mostradas nos documentários sobre a Segunda Guerra — Shoah é a memória sem imagens de arquivo, só com as vozes dos sobreviventes e o testemunho silencioso dos espaços —, declarou e cumpriu uma série de interditos morais sobre a representação do Holocausto: o horror absoluto é intransmissível, a ficção é crime porque o trivializa. Definiu um ponto de equilíbrio entre o dever da memória e o silêncio, uma zona de inacessibilidade, uma área de que o cinema tinha de se abster sob pena de obscenidade. A partir daí Lanzmann virar-se-ia contra a série Holocausto (1978), contra A Lista de Schindler (1993), não perdoando a Spielberg ter reconstituído uma câmara de gás porque ninguém de lá regressou para contar, e contra A Vida é Bela (Roberto Benigni, 1997), reacendendo a discussão sobre a legitimidade de ficcionar a experiência limite. Depois de Lanzmann passou a pesar sobre os espectadores uma responsabilidade.

Um filme como O Filho de Saul, de László Nemes (2015), por exemplo, ficciona a partir desses dogmas, como se fizesse a sua própria adaptação de Shoah. Nemes precisou, naturalmente, de um sinal da figura de autoridade em que Lanzmann se convertera. E numa edição do Festival de Cannes, em 2015, onde O Fillho de Saul receberia o Grande Prémio, o mais velho abençoou o jovem cineasta, dizendo-lhe “Tu és o meu filho”.

Como espectadores já éramos todos “filhos de Shoah”. Esta é uma das pedras de toque do trabalho de uma vida de Lanzmann: do que se trata em Shoah é da memória mas não de memórias. "Não é um filme de recordações (as recordações são coisas do passado), é por excelência um filme da memória no presente", escreveu em 2011 no diário francês Libération. Continuava: "Graças a Shoah o saber histórico muda de natureza, assiste-se, durante nove horas e meia, a uma incarnação da verdade, o contrário da faculdade de asseptização da ciência, mesmo da ciência histórica."

De Beauvoir a um rabino com sentido prático

Nascido em Bois-Colombes, subúrbios de Paris, a 27 de Novembro de 1925, judeu, Lanzmann integrou a Resistência francesa à ocupação nazi durante a Segunda Guerra. Estudante de Filosofia em Paris e na Berlim libertada, activista já na década de 1960 pela independência da Argélia, trabalhou como jornalista até ao início dos anos 1970, pondo em prática um sentido de aventura inegociável — para as primeiras reportagens para o diário Le Monde, série a que chamou "A Alemanha por trás da cortina de ferro", passou clandestinamente para Berlim Leste. No seu regresso a Paris aterrou no centro das militâncias da esquerda francesa do pós-guerra, entrando pela intimidade de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, passando a pertencer ao comité editorial da revista Les Temps Modernes, fundada pelo casal em 1945. Beauvoir terá sido a sua paixão: ela com 44 anos, ele 17 anos mais novo.

É Beauvoir quem lhe escreve assim, numa das mais de 100 cartas que lhe dirigiu, esta de 1953, enviada de Amesterdão: "Meu querido, meu amor absoluto, meu menino adorado, não há palavras para descrever o amor que te tenho. [...] Tu és belo, amo-te de morrer. Não me sinto chegar nem partir, não sei onde estou, não estou em parte alguma. Em todo o caso, não estou longe de ti, isso é impossível."

Foi depois da Alemanha, do activismo anti-colonial e de Beauvoir, a meio da década de 70, que começou a dedicar-se ao trabalho de uma vida. Nos 11 anos seguintes, viajou por 14 países, procurando vítimas, testemunhas e autores do Holocausto. Objectivo: fazer um filme que, sem recorrer a imagens de arquivo, se apoiasse em memórias pessoais — do que foi visto e sentido por aqueles que o viveram de um e do outro lado — e em imagens contemporâneas de lugares do extermínio para dar voz ao indizível. Resultado: um filme-testemunho que passa por Chelmo, o primeiro local onde foi testada a morte por gaseamento, fundamental à Solução Final, pelos campos de concentração de Treblinka e Auschwitz-Birkenau e pelo Gueto de Varsóvia.

Foi durante a documentação, pesquisa e entrevistas que conheceu Benjamin Murmelstein, grande rabino de Viena durante a Ocupação, que entre o final de 1944 e 1945 foi nomeado por Adolph Eichmann, que liderava a logística nazi de extermínio, como o “ancião” do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt, a 80 quilómetros de Praga, na República Checa.

Era uma invenção perversa do regime o Conselho Judeu: obrigava os responsáveis de um gueto a executarem as ordens alemãs que passavam, por exemplo, por fazer a lista dos que seriam deportados. Muitos dos membros desses conselhos foram também eles exterminados. Houve ainda quem se suicidasse e quem tivesse sobrevivido, como Benjamin, que foi acusado por antigos prisioneiros, no final da guerra, de ter colaborado com o diabo. Julgado em 1946, depois considerado inocente, retirou-se para Roma, onde Lanzmann, um interrogador implacável e que ultrapassava limites do "decoro" jornalístico em nome do dever de memória, o entrevistou. O cineasta apertou com ele, suspeitando de um pacto com o diabo. Benjamin respondeu-lhe que era preciso sentido prático no meio da devastação, que era necessário dar aos nazis a ilusão de que decidiam tudo e de que eram obedecidos, que sem isso Theresienstadt teria deixado de existir. Em suma, o antigo rabino disse-lhe que era preciso salvar-se para salvar o gueto. Abraçaram-se no final.

Esse material não ficou na versão final de Shoah, porque, Lanzmann explicou, a vibração da "personagem", por um lado "marioneta" dos nazis e por outro manipulador dos fios, não cabia na série de mortos do filme de 1985. Shoah era "a própria morte, a morte e não a sobrevivência". As filmagens com Benjamin foram então entregues ao Museu do Holocausto em Washington, e só mais tarde serviriam de base a O Último dos Injustos, de 2013, com que Lanzmann regressou aos lugares da sua peregrinação.

Ao integrar também imagens de Lanzmann na actualidade, o documentário dava protagonismo aos gestos de um homem, na altura com 87 anos, já com dificuldades em subir as escadas do seu caminho. Por essa vibração de tenacidade e fragilidade, simultaneamente — em O Último dos Injustos temos a “respiração” de Lanzmann em 1975, tempo de Shoah, e temos Lanzmann em 2013 — havia um sopro de “testamento”, mesmo não tendo sido o último dos seus filmes.

O filme da revolta

Les Quatre Soeurs, apresentado em 2017, revelaria ainda mais uma grande quantidade (outro film fleuve, cerca de sete horas) da investigação levada a cabo para Shoah que ficara inédito - no período pós-Shoah só por uma vez se desviou deste tema de uma vida e de uma obra: Napalm, de 2017, que evoca as suas quatro visitas à Coreia do Norte entre 1958 e 2015, e a relação que estabeleceu com uma enfermeira coreana na altura da primeira dessas visitas, quando adoeceu subitamente.

Mas houve outro filme crucial no trabalho de dissecação do Holocausto: Sobibor, 14 Octobre, 1943, 16 Heures. O título, com a crueza factual com que Lanzmann trabalhava números e estatísticas (“a enormidade do Holocausto também é uma questão de escala, tem que se passar pelos números”, dizia), indica o dia e a hora exactos em que principiou a revolta no campo de Sobibor, a única revolta bem sucedida num campo de concentração nazi. É um filme que corresponde a uma preocupação central no trabalho de Lanzmann, a desmontagem de estereótipos sobre a atitude passiva dos judeus no sofrimento e submissão aos nazis — e como diz na narração em off, a revolta de Sobibor marcou o momento da “redescoberta da violência” pelos judeus, o momento em que aqueles presos perceberam que a única hipótese era “matar todos os alemães”.

Contando essa história, Lanzmann foca também outra ideia fulcral da sua obra: a de que o Holocausto só foi possível porque as vítimas foram enganadas até ao último momento. Sobibor contém um episódio arrepiante desse logro, que o realizador transforma em exemplo lapidar: os gansos, os gansos que os nazis mantinham em torno das câmaras de gás do campo, para que o seu grasnar abafasse os gritos daqueles que morriam e os outros, os que ainda não tinham sido levados para lá, não percebessem o que se passava ali.