Comoventes, violentos, cheios de solidão: os europeus
São rostos dos anos 70 e 80 do cinema europeu, contradições no olhar, violência e solidão. É um retrato de grupo: Feios, Porcos e Mais - Um Olhar Europeu, ciclo a partir de 3 de Julho na Cinemateca. De Claude Sautet à “comédia à italiana”, mas avistando-se também o presente, Abdéllatif Kechiche.
Rostos cheios de vida e de solidão fazem o cartaz da Cinemateca de Julho: Romy Schneider adormecendo no final de Une Histoire Simple (Claude Sautet, 1978) sem saber o que fazer à vida; Isabelle Huppert iniciando com La Dentellière (Claude Goretta, 1977) a sua disponibilidade para ser usada — começando aí o périplo de vingança que a trouxe até hoje; Alberto Sordi e os gestos da vidinha de borghese picollo, picollo no tremendo filme de 1977 de Mario Monicelli, transformando-se em anjo exterminador; ou Patrick Dewaere, insolente, trágico, entre a raiva pronta a explodir de La Meilleure Façon de Marcher (Claude Miller, 1976) e o recolhimento de um dos seus últimos filmes, Un Mauvais Fils (Claude Sautet, 1980), tendo, entre um e outro, de facto, explodido (Série Noire, Alain Corneau, 1979).
O rosto de Dewaere parece dizer: “Desculpem, mas não conseguimos viver” — é o que vê nele Francisco Valente, juntando-se à proposta que lhe fazemos de dar rosto(s) a um cartaz imaginário do ciclo que programou, Feios, Porcos e Maus — Um Retrato Europeu.
“Desculpem, mas não conseguimos viver” pode ser o fil rouge deste diálogo, que se inicia a 3 de Julho na sala da Barata Salgueiro, com outro conjunto de existências turbulentas que Valente programou no início do ano, American Way of Life — por isso continuamos aqui, com o programador destas vidas europeias, o diálogo de Janeiro.
O título, Feios, Porcos e Maus — Um Retrato Europeu, que cita o filme com que Ettore Scola contribuiu em 1976 para acabar com a “comédia à italiana” — um ano antes de Un borghese picollo, picollo, golpe fatal desferido por Monicelli como quem fecha o caixão, Scola passeou a câmara por tableaux vivants com os restos de um género glorioso da indústria italiana —, esse título, dizíamos, peca voluntariamente pelo excesso. Como assinala o texto de apresentação do ciclo: nem todos aqui são feios e maus, o que caracteriza estas duas dezenas de longas-metragens “é a capacidade que têm de reflectir a vida, através de personagens comoventes e imensas, tanto pela sua beleza como pelos seus defeitos”.
Um cineasta actual
Agora entre nós: “Se tivesse de escolher um rosto como cartaz, escolheria vários: vejo rostos poderosos e cheios de vida em cada um destes filmes, cheios de contradições e de indecisão nos olhares, mas sinto que ganham força, também, pela sua inclusão dentro de um retrato de grupo. Como se as estrelas — Romy Schneider é bom exemplo — despissem a sua aura para se valerem umas com as outras e umas contra as outras.”
Romy Schneider no cinema de Sautet... Por aí, pela ideia de colectivo, Claude Sautet tinha de ser colocado no cartaz. Está presente com cinco títulos, Les Choses de La Vie (1970), filme de abertura, César et Rosalie (1972), Vincent, François, Paul... et les Autres (1974), Une Histoire Simple (1978) — destes dois, um deles, ou aquele sobre homens ou este sobre mulheres, deve ser o seu nec plus ultra — e Un Mauvais Fils. O que não pode deixar de ser lido como statement: um ciclo dentro do ciclo para restaurar o não consolidado respeito por um cineasta a quem o cânone pós-nouvelle vague estabeleceu que era burguês, académico, conservado em formol.
Mas Sautet, e os seus homens e mulheres desta fase da sua filmografia, quando o boom económico europeu do pós-guerra mostrava as fissuras, cedia, a “crise” impregnava as vidas (Sautet metia as personagens dentro de carros, em pedaços de cinema filmado com transparências que pairavam acima do realismo, para que elas, protegidas do mundo, carregassem as baterias com o grupo, mostrando-se sem carapaças), e aparece, afinal, tão próximo de nós, hoje.
“Claude Sautet trabalhou na sombra de outros autores aclamados e perguntamo-nos como é que ainda pode ser considerado fora de um círculo mais respeitado”, questiona Valente. “Les Choses de la Vie inaugura a sua fortíssima fase da década de 70” — depois de um início junto do cinema de género, com filmes que falharam comercialmente mas onde há um soberbo Classe Tous Risques, de 1960 — “e desfaz o preconceito de tornar a burguesia francesa, classe com posses materiais e confortável na sua vida ordeira, objecto de cinema. É uma das grandes forças de Sautet: ver a vida simples e quotidiana ser objecto de violência a partir dos sentimentos das personagens ou mesmo, como nos filmes seguintes sobre filhos de operários ou antigos operários que se tornaram patrões, ver o olhar do realizador retirar-lhes as máscaras de segurança. A instabilidade das relações amorosas ou económicas, o facto de a única possibilidade que estas pessoas têm é viver em permanente fuga em frente — gesto e sentimento bem presentes nos dias de hoje, séc. XXI — faz de Sautet um cineasta actual”.
Era um francês de sensibilidade italiana. Como os actores que escolheu – sinta-se o temperamento de Yves Montand, que se chamava Ivo Livi, de Serge Reggiani ou de Michel Piccoli, em Vincent, François, Paul... et les Autres, os dados das biografias confirmarão. Montand ficou com um papel que Vittorio Gassman recusou. Já alguém reparou que se se misturassem as imagens de Vincent, François, Paul... e de C’eravamo tanto amati, de Ettore Scola, o mashup passaria a mesma música melancólica — não se trata de inspiração, sequer, os filmes são do mesmo ano. Isto para dizer que se a proximidade de Sautet ao cinema italiano é algo de natural, neste ciclo em que se comunicam tons e crises, cria-se um território sentimental.
Há filmes em que o grupo se cerra à volta das personagens, não sendo certo que as salve. Há filmes em que as personagens ficam irremediavelmente sozinhas. Sem chegar ao niilismo de Un borghese picollo, picollo, em que a solidariedade desapareceu e Alberto Sordi se dispõe a matar, Dellito d’amore (1974), de Luigi Comencini, fala de um par que ficou sem a protecção da fábrica, do partido e da ideologia, e que vai em direcção à morte. Às tantas, Giuliano Gemma pergunta a uma Stefania Sandrelli chorosa se o que se passa com ela é “um drama amoroso”... A pergunta, em cenário fabril em que a superestrutura marxista colapsa e a classe operária de desaparece, tem uma resposta: Dellito d’amore só pode ser um filme de amor (e a crítica caiu em cima de Comencini)
“Há outra linha neste ciclo, como aponta, que é a desconfiança perante as instituições. Este período [dos filmes] apanha a decadência de movimentos que deram origem às maiores lutas políticas do século XX e exibem a corrupção das instituições de poder, dos partidos, da religião ou dos media e do seu novo sensacionalismo. Provavelmente em Un borghese piccolo, piccolo saímos da sala não apenas arrasados com o que o filme nos diz, mas com a vida que voltamos a encontrar fora da sala e que reconhecemos do filme — por tudo o que nos conta sobre a nossa vida íntima e política, as experiências profissionais ou a corrupção em que a sociedade europeia parece cair. Esse filme pega na história de um cidadão que tentou seguir o guião de sucesso que a sociedade tinha para ele, a mesma que acabou por retirar-lhe tudo. O que lhe resta é a revolta. Isso leva-nos a perguntar se não são os sentimentos a coisa mais perigosa do mundo, porque nos pode deixar a um passo de nos tornarmos criminosos ou terroristas.”
Este território, afinal, é uma sensibilidade geograficamente identificável. É mediterrânica. “Falar da vida europeia passa, obrigatoriamente, por falar da vida e do movimento do Mediterrâneo. É um nervo do ciclo e das nossas vidas, tal como uma das questões políticas europeias do nosso tempo. Os acontecimentos recentes em Itália mostram que vivemos uma rejeição total do que é o Mediterrâneo. No fundo, uma rejeição de nós próprios.” Depois do francês Sautet e dos italianos, avistam-se as angustiantes manobras da família de O Segredo de Um Cuscuz, de Abdéllatif Kechiche (2007), único título programado que escapa aos anos 1970 e 80 — deve ser ponto de chegada para serem equacionadas novas possibilidades de partida para as vidas europeias.
“Sim, Kechiche é um herdeiro deste cinema de que falámos” — é um admirador de Sautet, aliás —, “pois reúne nos seus filmes o olhar social, o despudor em filmar sentimentos e desejos, o facto de eles poderem ser elemento de euforia ou violência. Não é por acaso que é contestado pela crítica bem-pensante que o rejeita como ‘excessivo’. Kechiche, cineasta europeu e árabe, e este último dado não é de ignorar no presente político e nas fricções que dominam o mundo, é um dos cineastas mais livres, expressivos e independentes. Achei interessante ir à procura do cinema dele... O cinema acaba sempre por nos falar no presente. Estes filmes podem parecer muito diferentes nas suas propostas, mas ganham uma força como colectivo. Tal como nós, espectadores.”
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