Ministério Público prolonga Fizz investigando Proença de Carvalho e banqueiro angolano
“Fui um cordeiro inocente, um dano colateral”, proclamou ex-procurador Orlando Figueira. Julgamento terminou e sentença está marcada para 8 de Outubro próximo.
Lançada várias vezes para o ar ao longo da meia centena de sessões que teve o julgamento da Operação Fizz, a questão nunca teve resposta: por que razão o Ministério Público (MP) não investigou o advogado Proença de Carvalho nem o banqueiro angolano Carlos Silva se dois dos arguidos do caso lhes apontaram, a partir de certa altura, um papel crucial em todo o processo?
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Lançada várias vezes para o ar ao longo da meia centena de sessões que teve o julgamento da Operação Fizz, a questão nunca teve resposta: por que razão o Ministério Público (MP) não investigou o advogado Proença de Carvalho nem o banqueiro angolano Carlos Silva se dois dos arguidos do caso lhes apontaram, a partir de certa altura, um papel crucial em todo o processo?
Nesta sexta-feira, por fim, a procuradora que representa o Estado em tribunal, Leonor Machado, anunciou, durante as alegações finais do julgamento, que vai mandar extrair certidões do processo. O objectivo será apurar o papel de ambos neste caso.
Tanto o advogado como o banqueiro foram ouvidos em tribunal na qualidade de testemunhas. Carlos Silva demarcou-se por completo do arguido Orlando Figueira, que garante conhecer apenas vagamente, enquanto Proença de Carvalho assumiu ter tido algumas reuniões com o procurador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP). Mas quer um, quer outro desmentiram frontalmente aquilo que garante o agora ex-magistrado suspeito de corrupção: que foi contratado pelo banqueiro para que deixasse o departamento do Ministério Público que investiga a alta criminalidade económico-financeira e fosse trabalhar para Luanda, para o grupo do Banco Privado Atlântico.
Já o MP tem neste momento ainda outra tese: diz que Carlos Silva mais não foi do que um testa-de-ferro do então vice-presidente de Angola Manuel Vicente, tendo sido por seu intermédio que o governante angolano corrompeu o procurador. Ter-lhe-á pago, diz ainda, 760 mil euros, entre salários e um empréstimo bancário simulado, para que arquivasse uma investigação em que o magistrado do DCIAP tentava perceber se era lícita a origem do dinheiro que usara na compra de um apartamento de luxo no Estoril.
“Ou estamos perante corrupção para acto ilícito ou então Orlando Figueira teve uma postura de mentirolas perante Manuel Vicente”, fazendo crer ao antigo governante que precisava de lhe pagar luvas para que o ilibasse no processo da casa de luxo, observou a procuradora Leonor Machado.
A tardia decisão de investigar Carlos Silva e Proença de Carvalho pode radicar no facto de a investigação do MP já estar terminada e a acusação proferida quando Orlando Figueira e outro arguido, o advogado Paulo Blanco, revelaram o seu alegado envolvimento na contratação do magistrado — muito embora negando a existência de corrupção.
Porém, isso não explica por que razão os investigadores tomaram como válidas pistas que davam conta de ligações da petrolífera angolana Sonangol, liderada por Manuel Vicente, à empresa que contratou o procurador para ir trabalhar para Luanda, mas não as informações oficiais, que davam conta de essa firma pertencer antes ao universo de Carlos Silva. E nenhuma testemunha confirmou em tribunal as relações de proximidade entre o banqueiro e o ex-vice-presidente angolano de que fala a acusação do MP.
“A principal prova do processo é uma pesquisa feita pelos investigadores no Google”, criticou o advogado Rui Patrício durante as alegações finais, numa referência ao facto de um inspector da Polícia Judiciária ter admitido aos juízes que foi desta forma que validou o teor da denúncia anónima que esteve na origem da Operação Fizz. A procuradora Leonor Machado defendeu-se dizendo que aquilo que esteve na base destas deduções foi “jornalismo de investigação”, sem mencionar a que notícias aludia.
Não fosse a decisão de Leonor Machado de mandar extrair certidões e o processo poderia morrer no próximo dia 8 de Outubro, data marcada para a leitura de uma sentença que dificilmente condenará os arguidos: o ex-procurador Orlando Figueira, Armindo Pires, empresário português amigo do ex-“vice” de Angola Manuel Vicente, e Paulo Blanco, advogado que representava o Estado angolano em Portugal em vários processos.
Por muito que existam vários aspectos neste caso difíceis de explicar, uma coisa é certa, sublinhou Rui Patrício quando pediu a absolvição de todos os suspeitos: as coisas não se podem ter passado da forma que o MP as relata. E é sobre esse relato que compete aos juízes pronunciar-se, condenando ou ilibando os suspeitos à luz dele. O próprio MP não arriscou, nas alegações finais, a ir além de um pedido de penas suspensas para dois dos arguidos, tendo mesmo pugnado para que um terceiro suspeito seja ilibado.
Quanto a Manuel Vicente, o MP viu-se obrigado pelo Tribunal da Relação de Lisboa a remeter para Luanda a parte deste processo que lhe diz respeito, e que tem vindo a inquinar as relações diplomáticas entre os dois países há mais de dois anos. A Procuradoria-Geral da República anunciou nesta-sexta-feira que já tinha enviado para Angola uma cópia digital do mesmo, devendo proceder à remessa da sua versão em papel na semana que vem. Como o ex-vice-presidente goza de imunidade devido ao cargo que desempenhou, um eventual julgamento seu não poderá ter lugar antes de 2022. E esta é uma das razões pelas quais o Ministério Público queria fazer julgá-lo em Portugal: os seus magistrados diziam que Luanda não dava garantias suficientes de boa aplicação da justiça neste caso.
Quando terminaram as alegações finais Orlando Figueira pediu aos juízes para falar. Fê-lo num tom mais contido do que aquele a que habituou a sala de audiências. “Hoje percebo tudo o que se passou comigo, embora ainda não tenha provas. Fui um cordeiro inocente, um dano colateral”, proclamou. Segundo alguns dos envolvidos neste caso, Carlos Silva terá usado o procurador para manchar o nome de Manuel Vicente, por forma a impedi-lo de suceder a José Eduardo dos Santos à frente dos destinos de Angola. “Não cometi nenhum crime, fui totalmente ludibriado”, prosseguiu o procurador, que não descarta um regresso à magistratura se vier a ser absolvido. Mesmo reconhecendo que nasceu ingénuo, e que assim há-de morrer.
E se Manuel Vicente vier um dia a ser julgado por corrupção activa em Luanda, Orlando Figueira prontifica-se desde já a deslocar-se à capital angolana para falar em sua defesa — apesar de garantir que não o conhece de todo.