Kanye West e Kid Cudi são ghostbusters

Sim, os fantasmas existem – mas West e Cudi, amigos e colaboradores de longa data, decidem enfrentá-los de mãos dadas, tremendo de medo ao mesmo tempo que puxam dos galões.

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Kids See Ghost junta dois músicos que, mais do que geracionalmente próximos, o são no plano musical, cultural, na sua transversalidade criativa e “iconoclástica”, ambos tendo revelado desde o primeiro momento um gosto pela desviância e experimentalismo Scott Dudelson/Getty Images e Andrew Kelly/REUTERS

Não há duas sem três: ao contrário do que a instabilidade mental e emocional de Kanye West poderia indiciar, a promessa que fez recentemente de cinco lançamentos durante o presente ano pela GOOD Music — editora por si fundada em 2004 (Good como acrónimo para Getting Out Our Dreams) — parece ser mesmo para cumprir. Depois de DAYTONA, de Pusha T (por si produzido), e Ye, o seu LP em nome próprio, eis que o seu novo — e muito aguardado — projecto colaborativo com Kid Cudi vê a luz do dia — e que luz (à data em que escrevemos, foi também já editado, entretanto, o novo disco de Nas, ficando apenas a faltar o de Teyana Taylor, todos eles com o mesmo número de sete faixas).

Num 2018 que ficará, desde já, indelevelmente marcado pelo ressurgimento em força de West e da sua editora, Kids See Ghost é, simultaneamente, o nome da dupla e do álbum homónimo que junta dois músicos que, mais do que geracionalmente próximos em termos etários (West é sete anos mais velho), o são no plano musical, cultural, na sua transversalidade criativa (West desenhando moda, Cudi como actor) e “iconoclástica” (West, estrela planetária megalómana e problemática, mais do que Cudi, claro), ambos tendo revelado, desde o primeiro momento das suas carreiras, um gosto pela desviância e experimentalismo, desafiando as convenções do terreno-mãe de onde partem (o hip-hop). Se Kanye tem trazido a pop, a electrónica, o tecno ou o indie rock para a sua obra (808s & Heartbreak, My Beautiful Dark Twisted Fantasy, Yeezus), Cudi, que também é guitarrista, tem no rock alternativo, no psicadelismo e na electrónica algumas das paisagens adjacentes aos seus trabalhos — Speedin’ Bullet 2 Heaven (2015) é um estranho objecto rock/grunge fora-de-época (sem qualquer ligação ao hip-hop, de resto). Não é por acaso, portanto, que, logo a seguir à estreia de Cudi no formato mixtape, West o tenha chamado para editar o seu primeiro álbum (Man on the Moon: The End of Day, 2009) pela GOOD Music (quem não se lembra dessa maravilhosa canção, com um não menos maravilhoso videoclip, Make her say?), assim se juntando no mesmo poleiro duas mentes tão inventivas quanto complexas e torturadas — recentemente, West e Cudi, por motivos diferentes (ou não tanto assim, no fundo: a fama, a ansiedade, as dependências, a solidão), enfrentaram depressões graves (bipolaridade, pensamentos suicidas, etc.) que os forçaram a internamentos e ao afastamento temporário da música.

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Kids See Ghosts tem, desde logo, essa funda marca solidária, fraternal, de dois amigos dando as mãos com força para não caírem. Enfim, dois brothers in arms a voltarem ao estúdio para tentarem retomar a sua arte enquanto lutam com os seus demónios e fantasmas — esses, os tais que eles vêem (como os que se vislumbram na lindíssima artwork do disco, autoria do artista plástico japonês Takashi Murakami, que já fora o responsável pela de Graduation, um dos mais aclamados trabalhos de West). São eles, portanto, os kids — West e Cudi a tentarem voltar a um estado (a infância) a que, como se costuma dizer, só os loucos, na idade adulta, logram regressar (uma “regressão” que, na realidade, é, dizem os nostálgicos, progressão.), idílico espaço-tempo de irresponsabilidade, inconsciência, enfim, da liberdade celebrada na formidável Freee: ”I don’t feel pain anymore/ Guess what, baby? I feel free/ Nothin’ hurts me anymore” (não por acaso, Ghost town, canção de Ye e de que Freee aparece oficialmente designada como sendo o segundo tomo, já terminava por aí: ”Once again I am a child/ I let it all go, of everything that I know, yeah/ And nothing hurts anymore, I feel kinda free/ We’re still the kids we used to be”).

Os homens que viveram duas vezes

É desta cápsula de inocência, portanto, que sai toda esta “Beautiful madness” tornada música, como ouvimos Cudi sussurrar assustadoramente em Fire, batida marcial samplada de uma obscuríssima canção do não menos obscuro Napoleon XIV (They’re coming to take me away, ha-haaa!), secundada por uma linha de guitarra muito “faroesteana” que, estranhamente, tão bem se harmoniza com o soberbo arranjo de sopro que medeia os versos de West e Kudi.

Antes disso, porém, é uma abertura fabulosa, pujantíssima, aquela que Feel the love propicia, sintetizadores e baterias impetuosos a fazerem a cama para as onomatopeias insanas que West e Cudi gritam aos quatro ventos (só mesmo numa canção de West é que isto resultaria tão demencialmente bem), o mesmo registo desgovernado caro aos psicadélicos risos de 4th dimension, momento superlativo do EP em que o texto sexual e “egotripesco” de West (mas, outrossim, humorístico, atributo de que os seus detractores frequentemente se esquecem quando condenam a sua postura) contrasta com o cunho introspectivo imposto por Cudi ("All the evils in the world, they keepin’ on me for real/ I really hope the Lord won’t hurt me, we all live in sin”), sempre com aquele estupendo coro em fundo (sample jazz, muito big band, do trompetista Louis Prima). Maioritariamente cantado por Cudi e rappado por West (embora este último também vá cantando, felizmente sem recorrer a manipulações digitais: temos para nós, e não é de agora, que West podia e devir investir ainda mais no canto), e com a produção repartida a quatro mãos (acompanhados de uma extensa equipa de colaboradores, do habitual Mike Dean ao “OutKastiano” Andre 3000), todo o álbum anda à volta de uma ideia-desejo de restabelecimento, pacificação, de vida-depois-da-morte (ou, pelo menos, de um coma prolongado).

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Pacificação, sim, mas já não, necessariamente — como também frisámos anteriormente a respeito de Ye —, de redenção (não obstante o registo proeminentemente confessional do discurso): antes a consciência de que os erros, as falhas, a culpa, longe de serem matéria irrepetível, constituem, inelutavelmente, aquilo de que é feita a nossa carne, e que o mais que daí podemos retirar é um redobrar de força e perseverança para voltar a caminhar. Que West, particularmente, processe isto ora recriminando-se, ora abusando de toda a sua jactância (indícios da tal bipolaridade mental que lhe terá sido diagnosticada recentemente), só deve merecer uma leitura cuidada, em vez do juízo fácil e epidérmico de censura (e há uma enorme mágoa sua por essas condenações sumárias, razão pela qual também o ouvimos, por vezes, a contra-atacar). "I’m so reborn, I’m movin’ forward/ Keep movin’ forward, keep movin’ forward/ Ain’t no stress on me Lord, I’m movin’ forward” é, então, o renascimento postulado por Cudi no refrão de Reborn, seguido de alguns dos mais intensos versos que escutámos a West nos últimos tempos: "Soon as I walk in, I’m like, ‘Let’s be out’/ I was off the chain, I was often drained/ I was off the meds, I was called insane/ What a awesome thing, engulfed in shame/ I want all the rain, I want all the pain/ I want all the smoke, I want all the blame” (Cudi montage, canção que encerra o disco, permitirá o encontro com um Kanye menos auto-ruminativo, antes se debruçando sobre a violência endémica da sociedade americana). É a canção mais pop (mas não menos melancólica por isso) de um trabalho globalmente tão soturno quanto esperançoso e enérgico, e também aquela que, sensivelmente a meio do disco, marca um corte com o registo rockeiro até então prevalecente, o qual denota, em relação aos discos de Pusha T e do próprio West, um maior e mais determinante investimento nas guitarras.

É uma opção acertada, porquanto se harmonia com a textura vocal grungy de Cudi, a qual, na sua densidade e aspereza, contrasta, maravilhosamente, com o flow líquido, lustroso, escorreito, de West. Esta diferença-complementaridade — formal (texturas, timbres, abordagens vocais distintas) e substancial (West sempre selvagem e espalhafatoso na escolha das palavras e ideias, Cudi mais contido, abstracto, misterioso) — constitui um dos pontos mais interessantes de Kids See Ghosts, que logra soar verdadeiramente como um disco de um grupo (e não, como por vezes acontece, a uma mera colaboração em que os contributos dos seus elementos permanecem perfeitamente destacáveis). A faixa que dá título ao álbum tem a particularidade de contar com Mos Def, nem de propósito um dos mais “fantasmáticos” (e históricos) rappers norte-americanos, não só pelo seu (voluntário) apagamento mediático nos últimos anos (voltou, em 2016, com December 99th, que tivemos oportunidade de analisar no Ípsilon), como pelo seu discurso críptico, abstractizante, mesmo místico ("Civilization without society/ Power and wealth with nobility/ Stability without stasis/ Places and spaces”), aqui acompanhado por um instrumental acertadamente minimalista, as fugidias linhas dos synths a jogarem perfeitamente com a imagem de um inquietante ectoplasma (“Spirit movin’ around/ Just movin’ around”). Ver fantasmas, caçar fantasmas: quais ghostbusters, West e Cudi não se limitam a contemplar (e a sofrer com) a sua presença, antes procurando combatê-los, “caçá-los”, com essa certeza de que se, provavelmente, nunca os conseguirão matar, a possibilidade de, por alguma forma, os domesticar, domar, é já meio caminho para uma aquietação da alma que não dispensa, porém, um referencial supra-humano.

Forma, afinal, de os dois — ambos cristãos — humildemente reconhecerem, depois de os termos ouvido a fazer gala da sua megalomania (sobretudo West, claro), a sua imensa pequenez, como transparece deste pedaço literário maior de Cudi Montage (com um angustiado riff de guitarra genialmente samplado de Burn the rain, canção póstuma de Kurt Cobain): "If I’m goin’ alone, I’ve been gone for so long/ Ain’t nobody, you can’t hear a word/ Perched in the night, lookin’ out nowhere/ Where’s home on this hidden earth?/ Pain in my eyes, in the time I find, I’m stronger than I ever was/ Here we go again, God, shine your love on me, save me, please”.