Administração Pública tem de "ganhar a batalha" pelos trabalhadores certos

Daniel Gerson, gestor de projectos de emprego público na OCDE, defende que só investindo na formação, na motivação e nas oportunidades de desenvolvimento na carreira será possível reter os trabalhadores adequados a uma Administração Pública cada vez mais digital.

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Nuno Ferreira Santos

Daniel Gerson, gestor de projectos de emprego público da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), esteve nesta semana em Lisboa para falar sobre “Percursos Profissionais na Administração Pública” e deixou algumas pistas sobre as competências que devem ser desenvolvidas para responder a uma crescente digitalização dos serviços. Deixou também um aviso: é preciso garantir que o Estado tem condições para ganhar a batalha pelos trabalhadores que querem, de facto, causar impacto social. 

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Daniel Gerson, gestor de projectos de emprego público da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), esteve nesta semana em Lisboa para falar sobre “Percursos Profissionais na Administração Pública” e deixou algumas pistas sobre as competências que devem ser desenvolvidas para responder a uma crescente digitalização dos serviços. Deixou também um aviso: é preciso garantir que o Estado tem condições para ganhar a batalha pelos trabalhadores que querem, de facto, causar impacto social. 

As Administrações Públicas confrontam-se com vários desafios, em particular a necessidade de reduzir as despesas e, ao mesmo tempo, conseguir atrair e reter trabalhadores qualificados. Como é que se enfrenta esta contradição?
Reduzir custos e atrair e reter os melhores trabalhadores podem parecer objectivos contraditórios, mas deviam ser vistos como parte de uma estratégia integrada. Se o sector público está a encolher, isso obrigará a um esforço extra para garantir que ele é composto por trabalhadores altamente eficientes. Por isso, é aconselhável que, quando se reduzem as despesas, se ajuste a dimensão [da Administração Pública], em vez de simplesmente se reduzir e congelar salários. O ponto é que tem de se garantir que a redução da dimensão é acompanhada por um investimento nos trabalhadores certos – dando formação aos que ficam e assegurando que os novos trabalhadores têm as competências adequadas para o futuro da organização.

Na conferência organizada pelo INA (Direcção-Geral da Qualificação dos Trabalhadores em Funções Públicas) referiu que a OCDE está a desenvolver um guião destinado aos países que queiram avançar com reformas no sector público, no qual Portugal já disse que tem interesse em participar. De que se trata exactamente?
O Comité para a Governança Pública da OCDE está a desenvolver o primeiro guião internacional para a gestão de pessoas no sector público. A Recomendação sobre Liderança e Capacitação do Serviço Público servirá de orientação aos países-membros para que as reformas dos serviços públicos sejam equilibradas, permitindo obter uma boa relação custo-benefício e um retorno dos investimentos feitos nos funcionários públicos.

Há alguma fórmula mágica que permita atrair trabalhadores altamente qualificados para a Administração Pública sem lhes garantir melhores salários?
Não há fórmulas mágicas na governança do sector público. Mas há evidências, em vários países, que sugerem que as pessoas que procuram emprego não valorizam apenas o salário. O compromisso com os valores do serviço público, o equilíbrio entre o trabalho, a vida pessoal e as oportunidades de formação, assim como as oportunidades de desenvolvimento da carreira podem justificar salários um pouco mais baixos, desde que a remuneração seja suficiente para assegurar uma vida confortável.

A questão é saber se a Administração Pública está preparada para competir por esses motivos. Os dados que temos mostram que, geralmente, os cortes nos salários também foram aplicados nos programas de formação. Por outro lado, em muitos casos, a imagem da Administração Pública é muito marcada por regras burocráticas, o que acaba por fazer com que outras organizações ganhem a batalha pelos trabalhadores que querem causar impacto social.

Na sua apresentação colocou muito a tónica no papel das lideranças na motivação dos trabalhadores.
A liderança é extremamente importante, mas o conceito de liderança tem de ser expandido além dos líderes de topo. Os dirigentes intermédios são muito relevantes e não devem ser negligenciados, porque tendem a estar numa posição onde o confronto e o stress das reformas e da inovação é mais sentido nas organizações públicas.  

Temos trabalhado com líderes de alto nível em vários países da OCDE para discutir o seu papel na construção da força de trabalho do futuro. Estruturamos essa discussão em torno de três temas: as competências, a motivação e as oportunidades. Em última análise, o papel de cada dirigente é garantir que esses três elementos são maximizados, mas esse papel é frequentemente desvalorizado nas administrações públicas.

O primeiro-ministro português disse recentemente que preferiria contratar mais trabalhadores para suprir as necessidades dos serviços, em vez de dar aumentos salariais transversais. É possível motivar trabalhadores que não têm aumentos há uma década?
Não posso comentar as especificidades do sistema português, dado que a OCDE não o analisou. Contudo, e de uma forma geral, a motivação pode vir de um trabalho interessante, da oportunidade de trabalhar em novas equipas, de implementar projectos interessantes e de melhorar os serviços públicos.

O desenvolvimento da carreira pode ser muito motivacional. Uma forma de rastrear a motivação é através de inquéritos aos funcionários que, quando bem desenhados, podem ser ferramentas poderosas para entender melhor os factores que reforçam ou impedem a motivação. O Reino Unido e os Estados Unidos recorrem a estes inquéritos de forma interessante e estamos a discutir com os países-membros como harmonizar alguns dados para efectuar comparações internacionais.

Como é que as organizações públicas podem criar uma cultura de aprendizagem ao longo da vida de modo a responder a um mundo em rápida transformação?
Em primeiro lugar, investindo na qualidade da gestão e assegurando que os dirigentes entendem que têm um papel essencial no desenvolvimento dos trabalhadores. A expectativa é que cada chefe de equipa integra a aprendizagem na sua gestão diária, para que ela possa ser feita no dia-a-dia e não apenas em sala de aula ou nas formações oficiais.

Em Portugal, assim como noutros países, o envelhecimento da população cria uma pressão acrescida sobre os serviços públicos, que têm de realocar os recursos às novas necessidades. Que tipo de medidas podem ser tomadas para permitir que os trabalhadores executem outras tarefas?
Precisamos desenvolver um mercado de trabalho interno para os funcionários públicos, com oportunidades adequadas de requalificação para os que querem mudar de área. Isso implica pensar em competências horizontais que podem ser geridas e aproveitadas em várias áreas.

Que tipo de competências devem os funcionários públicos desenvolver para responder ao futuro, em particular à robotização?
Neste processo, sugerimos que se olhe para as competências que permitam ao sector público trabalhador em rede com outros decisores, em particular os políticos, os cidadãos, as organizações ou entidades que prestam serviços ao Estado.  

Precisamos de explorar as competências necessárias para responder a uma administração cada vez mais digital e identificámos várias áreas: a capacidade de análise de dados; a capacidade de interagir com os utilizadores, para perceber como é que eles interagem com o serviço; ter curiosidade para conseguir colocar as questões certas às pessoas certas e para procurar informações e ideias em lugares novos e diferentes; e, finalmente, desenvolver a capacidade de comunicar os benefícios e os riscos de se fazerem as coisas de forma diferente.