"O poder político perdeu o receio do que os estudantes possam fazer”

Nas últimas duas décadas o movimento académico perdeu protagonismo. As associações de estudantes passaram a ser sobretudo organizadoras de festas, partidarizaram-se e substituíram as acções de rua pela "política de gabinete". Mas algo pode estar para mudar devido ao que se tornou quase uma missão impossível: conseguir alugar um quarto a preços normais.

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As praxes generalizaram "o espírito de humilhação e submissão" Paulo Pimenta

Já não querem mudar a vida e o mundo como aconteceu com os estudantes de Maio de 68, mas talvez não estejam tão alheados como a sua falta de mobilização faz supor. Afirmam-no dirigentes académicos ouvidos pelo PÚBLICO, que falam de outras formas de se alcançarem objectivos que não passam pelos protestos de rua, embora reconheçam que neste caminho o movimento estudantil acabou por perder protagonismo. O que teve já esta consequência, entre outras: “o poder político perdeu o receio do que os estudantes possam fazer”.  

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Já não querem mudar a vida e o mundo como aconteceu com os estudantes de Maio de 68, mas talvez não estejam tão alheados como a sua falta de mobilização faz supor. Afirmam-no dirigentes académicos ouvidos pelo PÚBLICO, que falam de outras formas de se alcançarem objectivos que não passam pelos protestos de rua, embora reconheçam que neste caminho o movimento estudantil acabou por perder protagonismo. O que teve já esta consequência, entre outras: “o poder político perdeu o receio do que os estudantes possam fazer”.  

Quem o afirma é o presidente da Federação Académica do Porto (FAP), João Pedro Videira. Neste mês em que se assinalam os 50 anos do Maio de 68, quando os estudantes foram os protagonistas de um movimento que mudou muito do que então existia e se fazia, o PÚBLICO foi ouvir académicos e dirigentes associativos para tentar perceber o que se passa nos dias de hoje com o movimento estudantil em Portugal.

E o que se passa é também isto: os estudantes estão aos milhares nas queimas das fitas, cuja nova temporada está agora a decorrer, nas festas das semanas académicas, nas praxes, movem-se em prol da realização de garraiadas, mas já passaram mais de 20 anos desde que saíram à rua em massa para protestar.

Estava-se no início dos anos 90, Cavaco Silva era primeiro-ministro e o PSD tinha a maioria absoluta no Parlamento. Na calha estava o primeiro aumento das propinas de frequência do ensino superior desde 1941. De pouco mais de seis euros anuais ia passar-se, num primeiro momento, para 250 euros e chegar aos mil em poucos anos.

Tudo estava previsto num diploma aprovado pela Assembleia da República, que levou a dois anos de protestos dos estudantes, entre 1992 e 1994, que passaram por cargas policiais, por rabos à mostra e pela demissão de dois ministros da Educação, Diamantino Durão e Couto dos Santos. A este movimento associaram-se os estudantes do ensino secundário em protesto contra a nova Prova Geral de Acesso (ao ensino superior). Este exame de cultura geral, instituído em 1989 como forma de entrada no superior, acabou por ser revogado em 1993, mas o aumento das propinas foi posto em prática. Hoje o seu valor máximo é de 1063 euros.

Curtir e obedecer

Foi o fim de uma história e o princípio de outra que dura até agora. Será que a festa substituiu o protesto entre os estudantes? Que já não existam objectivos comuns pelos quais se mobilizem? Ou terão os estudantes e as associações académicas perdido a vontade de se revoltarem, também por terem deixado de acreditar que tal sirva para alguma coisa?

“Passou a ser fixe ir para a Universidade, porque esta tornou-se também uma cena de copos, de noite, de festividades como as das semanas académicas, um sítio para curtir”, constata o sociólogo e professor da Universidade da Beira Interior, Nuno Augusto, que foi estudante universitário no tempo do movimento antipropinas dos anos 90. Desde então, aponta, as associações académicas, “que dão aos estudantes aquilo que eles querem, tornaram-se sobretudo em organizadores de festas”.

E o que tornou isto possível? “São jovens que encaram a democracia como um dado adquirido e que olham para a retirada de alguns direitos como algo natural. Nas condições em que foram socializados, a ideia de pagar propinas ou a precariedade no trabalho tornaram-se normalizadas”, refere este docente.

O sociólogo e professor da Universidade de Coimbra, Elísio Estanque, aponta no mesmo sentido: “Existe uma naturalização, por parte dos jovens, daquilo que lhes é oferecido, mesmo a precariedade no emprego e a falta de perspectivas futuras. E essa naturalização tem-se desenvolvido muito mais do que a rebelião”.

Para este fenómeno tem contribuído, adianta Estanque, a tão elogiada “capacidade de adaptação dos jovens com mais qualificações” e o espírito de “humilhação e submissão” que se tem desenvolvido nas universidades, por via das praxes, “com o caloiro a ser educado, logo à partida, a ter de obedecer”. “E esse espírito está a contaminar muitos sectores da população mais jovem”, avisa.

Alojamento a próxima bandeira

O presidente da Federação Académica de Lisboa (FAL), João Rodrigues, reconhece que “a imagem do movimento estudantil que passa para o público se limita às festas” e aos excessos que geralmente lhes estão associados, mas insiste que “existem excepções à regra”. Diz que, por exemplo na FAL, estão dispostos a deitar mão a “todas as formas”, mesmo as que foram seguidas no Maio de 68, para conseguirem ultrapassar os principais problemas que identificaram no seu Livro Negro do Ensino Superior, lançado em Abril passado. O que passará por o Estado assegurar alojamento a preços acessíveis aos estudantes, pelo fim gradual das propinas e pela democratização do acesso ao ensino superior, elenca.

Devido à explosão do turismo e do alojamento local que lhe é destinado, alugar um quarto por menos de 300 euros tornou-se uma missão quase impossível nas grandes cidades, sobretudo em Lisboa e no Porto. Para o presidente da FAP, esta situação “incomportável” poderá levar em breve a uma nova viragem do movimento estudantil. “Não tem havido necessidade de se ir para acções de rua porque fomos conseguindo resolver os problemas por via da política de gabinete, em negociações com os ministros. Mas esta via negocial está a esgotar-se e se for preciso voltamos à rua. Se for necessário estamos cá”, adianta João Pedro Videira.

A dificuldade em conseguir alojamento vai aliás ser o tema de protesto durante a Semana Académica, que decorre até ao próximo dia 19. “Este protesto surge como a última gota em relação à forma como o Governo está a liderar a temática da falta de alojamento para os estudantes em Lisboa”, explica João Pedro Louro, presidente da Associação Académica de Lisboa. que organiza aquele evento.

O presidente do Conselho Nacional de Juventude, Hugo Carvalho, que foi dirigente académico, lembra que foi “à mesa dos ministros” que conseguiram, por exemplo, aumentar os apoios da Acção Social Escolar e o número de bolsas. Este dirigente considera também que está na altura de uma “viragem”, mas que esta não passará por acções do tipo das empreendidas no Maio de 68.

“Não queremos deitar tudo abaixo, mas há coisas que queremos mudar para conseguirmos ter a nossa vida, e isso passa muito por mudar o mercado de emprego e da habitação”, afirma Hugo Carvalho, acrescentando que o movimento estudantil tem sobretudo de empreender “acções criativas, que captem a atenção da sociedade e dos decisores políticos”. “Precisamos de reconquistar o capital político que a juventude perdeu”, frisa.

Partidarização das associações

Para o sociólogo João Mineiro, que entre 2011 e 2015 foi dirigente associativo, o adormecimento do movimento académico pode também ser explicado por “mudanças de fundo” que entretanto ocorreram no ensino superior, de que são exemplos o processo de Bolonha, “que reduziu o tempo de permanência nas instituições, aumentando a pressão para se acabar rápido o curso” e o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, aprovado em 2007, “que mitigou a participação democrática, reduzindo a participação dos estudantes” no governo das faculdades , o que conduziu a “um desinteresse crescente dos estudantes por órgãos de gestão onde não têm influência”.

A também crescente “partidarização” das associações de estudantes neste período é outra das “grandes” causas que estão na base das mudanças operadas no movimento académico, aponta Mineiro. E porquê? Porque se há coisa que os jovens têm hoje em comum é a sua desconfiança face ao sistema partidário actual, lembram os sociólogos Elísio Estanque e Nuno Augusto.

“Os inquéritos mostram que são, ao mesmo temo tempo, dos que mais se identificam com a democracia e dos que menos se reconhecem nos partidos políticos existentes, o que neste último caso acontece com 70% dos jovens portugueses”, refere Nuno Augusto, para reforçar que esse afastamento em relação aos partidos é também uma das razões que tem contribuído para os estudantes se afastarem das associações académicas, já que estas “têm estado dominadas muitas vezes pelas juventudes partidárias”.

Os dados de um inquérito realizado em 2005-2006, no âmbito do livro Do Activismo à Indiferença. Movimentos estudantis em Coimbra, coordenado pro Elísio Estanque, são reveladores a este respeito. Quando questionados de qual era a sua opinião sobre a Associação Académica de Coimbra (AAC), 49% dos estudantes consideraram que esta “é um organismo elitista que promove o acesso à política”. Foi a resposta mais votada. O mesmo inquérito dá conta de que quase 70% dos estudantes nunca tinham participado numa manifestação.

“Historicamente a partir dos anos 90, e pelo facto de muitos dirigentes associativos serem também dirigentes das juventudes partidárias, passou a existir um problema de representação. As associações representam os estudantes ou apenas aqueles que pertencem à organização dos seus dirigentes? O que é um facto é que esta influência das juventudes partidárias acabou por desvirtuar o movimento académico”, aponta João Rodrigues, presidente da FAL.

Da sua experiência na Universidade de Coimbra, Elísio Estanque refere que muitos dos estudantes que aceitam participar em listas para as associações o fazem sobretudo “pela ânsia de um cargo e do estatuto respectivo” do que propriamente pela vontade de resolver os problemas dos estudantes. Também João Mineiro refere que hoje “a participação associativa é vista como uma experiência para o currículo” e que “muitas associações se tornaram satélites dos partidos do poder, que as usam, por um lado para controlar o movimento estudantil, e por outro para recrutar dirigentes partidários, assessores e funcionários”. “Tudo isto conduz à perda de protagonismo reivindicativo das associações”, frisa.