O pintor capturado na sua pintura
A grande antológica de Michael Biberstein que abre esta sexta-feira nas duas galerias da Culturgest de Lisboa põe em cena uma obra que nunca deixou de equacionar, ou mesmo de marcar, o lugar do espectador.
Delfim Sardo, o curador de Michael Biberstein: X, vai falando enquanto passamos pelas duas grandes galerias do espaço da Culturgest em Lisboa. A exposição que esta sexta-feira ali se inaugura, a primeira grande retrospectiva do trabalho do pintor suíço-americano desde a sua morte, em 2013, é de facto surpreendente, não apenas pela imensidão do trabalho de investigação que lhe está subjacente, mas também por nos proporcionar uma visão completa e abrangente do trabalho deste artista.
Sardo, que é director artístico da Culturgest há pouco mais de um ano, explica que vinha a preparar esta operação há muito tempo. O espaço e as condições de exposição que ela exigia só agora se materializaram, e o facto de a instituição ter duas galerias distintas – uma dos dois lados da rampa de acesso; outra mais ou menos perpendicular a esta –, além de salas com um pé direito imponente que permite a imersão no espaço de algumas das últimas pinturas de Biberstein, foi também a condição essencial para se poder dividir a montagem em dois núcleos distintos. O primeiro corresponde aos anos entre 1974 e 1978, com uma ligação à década de 1980, e à investigação do lugar do espectador no seu próprio campo visual; o segundo vai de 1978 até à morte de Biberstein, em 2013. Ausente da exposição está por isso a grande obra de arte sacra que concebeu para a Igreja de Santa Isabel de Lisboa, Um Céu para Santa Isabel, realizada postumamente, seguindo a maquete idealizada pelo artista.
Michael Biberstein nasceu na Suíça em 1948, de mãe norte-americana e pai suíço. Aos 14 anos mudou-se para os Estados Unidos, onde viria a estudar História da Arte e a seguir as aulas de David Sylvester. Foi este quem o aconselhou a escolher uma profissão mais imbricada com a prática artística do que a de historiador, segundo afirmações do artista numa entrevista inédita a Delfim Sardo, reproduzida no corpo do catálogo da exposição. Nesta, Biberstein conta também que sempre visitou exposições, e – entre outras que refere – assinala uma de Robert Rauschenberg com peças de cartão. Não deverão andar muito longe das que foram mostradas há uns anos em Serralves, e que consistiam na materialização de algo que sempre preocupou este artista: o extravasar das questões próprias à pintura – cor, forma, bidimensionalidade – para o espaço expositivo. Ora, na década de 70, esta é também uma das questões que estão implícitas no trabalho de Biberstein: a definição do lugar do espectador no espaço da sala, e a sua interacção fenomenológica com a obra de arte.
Sucede que este é igualmente o lugar do “X”, um sinal que se marca no chão para determinar o lugar de alguém ou de algo, e que surge também, por extensão, no título desta exposição. Toda a obra de Biberstein obedece a esta interrogação de base: como é que eu me posiciono no mundo, através do pensamento racional, para que os meus sentidos se deixem imergir na beleza e no sublime? A resposta a esta pergunta nunca estará obviamente dada na sua totalidade, e é por isso que é possível ao artista continuar a pintar, sempre e sempre, sem nunca alcançar a obra.
Interrogar o seu próprio lugar no espaço é também, e sobretudo para quem tem uma formação em História da Arte, trabalhar o conceito de pintura de paisagem. Delfim Sardo diz ao Ípsilon que Biberstein estava constantemente a questionar a paisagem, não apenas a paisagem como criação (mesmo quando é representação, e a exposição tem uma dessas pinturas em que o artista mostra paisagem de um modo mais ilusionistíco), mas sobretudo como conceito. Na primeira parte de Michael Biberstein: X, o curador chama-nos a atenção para umas peças de ferro colocadas no chão que possuem o seu contorno projectado desenhado na parede. Há algo ali que nos recorda o site non site de Robert Smithson, esse modo que o artista norte-americano tinha de trazer o espaço exterior para dentro do local de exposição através dos objectos, das fotografias e dos mapas que aí expunha. Contudo, o conceito é diferente: não se trata aqui de abrir indefinidamente o conceito da obra de arte, mas sim de captar o espectador no enredo do campo visual.
Pintura, portanto. Mas também elementos constitutivos da pintura. Na sala seguinte há umas peças feitas em gaze, drapeadas em caniços, que tal como as precedentes datam dos finais da década de 1970. Aqui, trata-se de trazer a transparência da visão do espaço para a própria materialização da obra, que a montagem conjuga, inteligentemente, com uma série de telas onde surge apenas a inscrição de um gesto. Biberstein, que nesta altura se concentrava na própria definição da essência da pintura, materializa aqui as suas conclusões, quase como equações que resolve e às quais apenas voltará mais tarde num contexto já muito diferente.
A sensação do espectador
Em 1979, Michael Biberstein instala-se definitivamente em Portugal. Algures nos anos que se seguem a esta mudança vai para o Alentejo, para o Alandroal, numa casa que ficou conhecida de amigos e artistas mais jovens que ali o visitavam. Mas isso será mais tarde. Por agora, é amigo de um grupo de artistas mais ou menos seus contemporâneos que incluem Julião Sarmento e Fernando Calhau. No começo dos anos 1980, parece chegar, enganadoramente, a um limite do pensamento conceptual sobre a pintura; e, como outros artistas que quiseram essa radicalidade, cria obras que devem ser realizadas pelo destinatário. Na exposição, uma parede pintada de amarelo, já anteriormente mostrada na grande exposição de apresentação da Colecção Julião Sarmento na Fundação EDP, é um bom exemplo deste grupo de peças.
Sardo conseguiu aqui recriar, numa das salas, uma exposição importantíssima na obra de Biberstein que teve lugar no Museu Nacional de Arte Antiga, em 1991. Nesta, o artista analisou e reintrepretou, através da pintura, do ensaio escrito e do desenho, a paisagem de um quadro de Claude Joseph Vernet, pintor romântico do século XVIII. A pintura aproxima-se agora do grande formato, as telas são usadas sem subcapa nem preparo, a pintura dispõe-se em camadas sucessivas, por vezes até 30, segundo nos conta Sardo. O rochedo negro e o barco da pintura são retomados mais uma vez como referência espacial para a apreensão da obra, quer numa grande tela vertical, quer num pequeno desenho esquemático – mas com o mesmo "X" do lugar do espectador que surge no título. Embora esta sala ainda esteja inserida no período mais conceptual da obra do pintor (que tinha boas reservas em relação a este adjectivo), é ela que nos introduz na segunda parte da exposição, onde o fenómeno de ver e os sentimentos que ele provoca dominam os projectos de Biberstein.
Mais longe, encontramos conjuntos de pequenas tábuas de madeira, quase sempre quadradas (uma invocação de Malevitch?) onde Biberstein aplica monocromias a óleo, muito empastadas. Trata-se sem dúvida ainda do trabalho sobre a gramática pictórica, que se esbate mais tarde perante a construção de grandes peças, frequentemente em forma de díptico ou tríptico, pintadas com paisagens ora de memória alemã, ora chinesa. Por vezes, uma tela de tecido negro, sem pintura, acopla-se às outras, tela essa a que Biberstein chamava predela, do nome das tábuas que, nos antigos retábulos renascentistas ou góticos, contextualizavam a estória que via a sua conclusão na tábua principal. Importa aqui, sobretudo, a memória de uma paisagem que nunca é representada, mas também essa convocação da teoria romântica do belo e do sublime que Edmund Burke, também em meados do século XVIII, tinha formulado.
Burke, de facto, é dos primeiros autores a focar-se na sensação produzida no espectador. Para ele, o sublime é efeito do contraste entre o terror da natureza em fúria que encontra eco nos estados psicológicos do espectador. Pela primeira vez, há uma correspondência entre uma imagem – a imagem da natureza, da paisagem – e a emoção de quem vê. Pela primeira vez, a primeira de muitas, há uma tentativa de captar a totalidade da atenção do espectador e de fazer coincidir a sua emoção (o seu corpo) com essa imagem que ele vê. A obra de Biberstein insere-se sem qualquer dúvida nesta linha de pensamento.