Nos primeiros dias de Cannes 2018 o filme é Freaks e o preto e branco é a cor
Fizeram o festival falar de “monstros” e confrontar-se com a “diferença” — A. B. Shawky e Ali Abbasi, pela primeira vez na selecção oficial. Do Leste europeu, Kirill Serebrennikov e Pawel Pawlikowski falam-nos de um mundo a preto e branco — é o passado, mas os filmes dizem que ainda é o presente da Rússia e da Polónia.
Há uma propedêutica a que Yomeddine se dedica nos seus momentos iniciais: apresentar ao espectador a personagem de um leproso, que é interpretada por um leproso, e iniciar-se a si próprio na responsabilidade de o filmar. A primeira longa-metragem de A. B. Shawky, austríaco de origem egípcia que chegou à competição do festival como bandeira dos programadores de Cannes 2018 e da abertura do concurso a novos realizadores, vai-se desenrolando depois como uma serena locomotiva: apresentado que está Beshay, iniciado que está o espectador no rosto e nas mãos de Beshay, pode-se olhar para além das aparências.
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Há uma propedêutica a que Yomeddine se dedica nos seus momentos iniciais: apresentar ao espectador a personagem de um leproso, que é interpretada por um leproso, e iniciar-se a si próprio na responsabilidade de o filmar. A primeira longa-metragem de A. B. Shawky, austríaco de origem egípcia que chegou à competição do festival como bandeira dos programadores de Cannes 2018 e da abertura do concurso a novos realizadores, vai-se desenrolando depois como uma serena locomotiva: apresentado que está Beshay, iniciado que está o espectador no rosto e nas mãos de Beshay, pode-se olhar para além das aparências.
Não se consegue dizer “não” ou resistir a sinais de delicadeza. Até porque o percurso do protagonista, que pela primeira vez sai da leprosaria onde o internaram na infância em busca das suas origens para fazer a iniciação ao mundo na companhia de um órfão e de um burro, cruza-se no caminho com momentos de uma graça pícara – e para o espectador os arquétipos e as linhagens que encontra, de Chaplin e do seu Garoto (O Garoto de Charlot, 1921) ao Homem Elefante de Lynch (O Homem Elefante, 1980), funcionam como luzes na aprendizagem para a qual o filme contribui. Mas, verdade seja dita, à medida que caminha para a sua conclusão, Yomeddine começa a impor a sua mensagem humanista à descoberta solitária do espectador – por exemplo, põe Beshay a gritar: “Sou um ser humano”.
Seria algo que não motivaria os “monstros” de Freaks (1932), de Tod Browning, que não vergariam na sua guerrilha de devolver aos que os oprimem a imagem da sua “monstruosidade”. Mas é por aí que vai Border, de Ali Abbasi, dinamarquês de origem iraniana, pela primeira vez em Cannes – secção Un Certain Regard – com um sedutor híbrido de realismo e de folclore nórdico. Abbasi encontra um lugar envolvente para estar com as personagens, não as afastando do mundo (não afastando o filme do realismo, apesar de povoado por criaturas de lendas escandinavas), mas também não as submetendo às regras dominantes.
O caso de Tina: trabalha no serviço de fronteiras porque o seu extraordinário olfacto lhe permite detectar a ansiedade ou o medo nos viajantes. Tina fareja como um cão – por isso ajuda a polícia a desmantelar uma rede de pedofilia. O corpo – os pêlos, o rosto deformado, os dentes protuberantes, o pénis que sai da vagina no momento da cópula – é o resultado de uma desordem de cromossomas. Tina foi sempre uma misfit tolerada pelo mundo que a rodeia, até que inicia o turbulento despertar, uma viagem em direcção às suas origens, como a de Beshay em Yomeddine, mas com violência. É o lugar que Abbasi constrói para ficcionar que seduz. Tal como a prótese que durante horas era trabalhada diariamente sobre o rosto da actriz sueca Eva Melander, Abbasi não atira o filme nem a personagem para as zonas do fantástico, não o segrega cinematograficamente; instala-o para além das fronteiras, ocupa territórios, do realismo mais marmóreo à efervescência da fábula, não negoceia a sua realidade nem a sua existência. Não pede autorização para (ali) existir.
Entretanto, para lá da Cortina de Ferro...
Para além de freaks, de trolls e de política, outras palavras recorrentes nos primeiros dias de Cannes são preto e branco – e música. Leto/Verão não veio à competição acompanhado pelo realizador, o russo Kirill Serebrennikov, desde Agosto em prisão domiciliária, regime em que montou o filme, por suspeita do desvio de fundos públicos – uma acusação que muitos vêem como forma de anular um opositor do regime de Vladimir Puttin. Kirill não veio, apesar dos esforços da direcção de Cannes junto das autoridades russas. E há outro caso análogo, o do iraniano Jafar Panahi, também em prisão domiciliária. O festival pediu ao governo iraniano que lhe seja permitido viajar até França para apresentar Three Faces — pedido reiterado na Croisette pelo seu compatriota que abriu a competição, Ashghar Farhadi.
Mas dizíamos, política, música, preto e branco… no caso de Leto, que recupera um Verão dos anos 80 da cena rock de Leninegrado, podemos também dizer Velvet Goldmine. Não é especialmente favorável para o filme de Kirill Serebrennikov a comparação. Mas é verdade: ao partir de figuras e factos verídicos e alargando-se ao que nunca aconteceu, ao que estava vedado numa sociedade rigorosamente vigiada, Leto/Verão inventa, como o filme de Todd Haynes fez com o glam rock (prémio de melhor contribuição artística em Cannes em 1998), a sua mitologia e a sua historia. Hábil, Serebrennikov, a inventar visualmente, com sentido de trouvaille, a possibilidade de Psycho killer, dos Talking Heads, ou de The passenger, de Iggy Pop, terem sacudido a sociedade soviética (“mas isto nunca aconteceu”), o que inunda o filme de indesmentível sentido de perda (a situação do realizador sublinha que não se trata de filme de época...), o realizador é porém quase sempre poseur, redundante, a encenar o realismo, o que adormece progressivamente este Verão.
O polaco Pawel Pawlikowski chega a Cannes, também primeira vez em concurso, também a dizer-se não querido pelo regime do seu país, que preferia que os seus filmes fossem mais patrióticos. E continua, depois de Ida, Óscar do Melhor Filme Estrangeiro em 2015, a preto e branco. Isso, e o apuro geométrico e a construção de modelos em miniatura, é o mundo de Cold War. Conta-se a história, inspirada nos pais do realizador a quem o filme é dedicado, de uma relação entre um músico e uma cantora através das fronteiras da Cortina de Ferro, ao longo de 15 anos. É a guerra entre eles que é fria, acordo impossível entre as notas de uma pauta. E Pawlikowski faz para não aquecer: vai deixando partes de Cold War em elipse, figura que trabalha com preciosismo mas que impede a manifestação de um tom, nivela emoções e anula passagem de fronteiras, como se as personagens permanecessem sempre peças da engrenagem filme, e este, sem sublevações ou mudanças, sempre um modelo — nas paisagens geladas e oprimidas da Polónia ou nas caves livres e no jazz de Paris.