Gabriel Abrantes clonou Cristiano Ronaldo
Diamantino talvez salve Portugal – a longa-metragem, assinada pela dupla Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, estará na Semana da Crítica do Festival de Cannes, no dia 11 – , e talvez o sentido de humor de Cristiano perdoe este delírio.
Gabriel Abrantes pega em David Foster Wallace, no texto do escritor norte-americano (1962-2008) sobre Roger Federer as a religious experience (na edição portuguesa: Federer: Carne e não só). É um texto sobre a perda da mão na arte... mas quando Wallace decompõe os movimentos da final Agassi-Federer no Open americano de 2005, imobiliza-se o momento em que, no ténis, no desporto, o espírito humano se eleva.
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Gabriel Abrantes pega em David Foster Wallace, no texto do escritor norte-americano (1962-2008) sobre Roger Federer as a religious experience (na edição portuguesa: Federer: Carne e não só). É um texto sobre a perda da mão na arte... mas quando Wallace decompõe os movimentos da final Agassi-Federer no Open americano de 2005, imobiliza-se o momento em que, no ténis, no desporto, o espírito humano se eleva.
Depois, Abrantes cita How Tracy Austin Broke my Heart (Como Tracy Austin Me Partiu o Coração), ensaio de Wallace a partir da autobiografia da tenista, a partir da frustração que são as biografias dos atletas e o kitsch de lugares-comuns. “O que o Foster Wallace descobre” – é assim que Abrantes lê – “é que o segredo do génio é o vazio.” “Não há alquimia. É algo de trágico. Achei genial esse texto e foi o ponto de partida para Diamantino”, a longa-metragem, assinada com Daniel Schmidt, que leva à Semana da Crítica do Festival de Cannes, no dia 11 – Abrantes/Schmidt, a dupla de A History of Mutual Respect (2010) e Palácios da Pena (2011).
Diamantino é o futebolista que talvez possa salvar Portugal do esquecimento. É o Miguel Ângelo do século XXI, alguém “que mexe com as pessoas como mais ninguém”. Abrantes queria uma personagem “icónica” que permitisse “um reconhecimento imediato a um público mais alargado”. Queria “um novo mito português”. Abrantes – deixa de ser segredo às primeiras imagens – queria um Cristiano Ronaldo.
Diamantino é de uma ignorância fulgurante, tão comovente quanto a sua naiveté. “E a naiveté dá-lhe a liberdade para não ter preconceitos.” Querem clonar Diamantino, um complot está em marcha, os serviços secretos e movimentos de extrema-direita usam-no para desfraldar bandeiras. O corpo de Diamantino – atlético, virginal, gosta de meninos, meninas e puppies felpudos – oferece-se às devastações: carocinhos nascem-lhe no(s) peito(s), efeitos secundários das intervenções de clonagem (mas a apoteose transgénero tem direito a happy end).
Abrantes, nascido na Carolina do Norte, EUA, assume uma relação “extremamente distante” com o futebol. “A minha relação é narrativa, interessam-me os méritos da narrativa e da estética.” Interessa-lhe a ficção e a catarse das multidões dentro dos estádios, como há milénios no teatro grego. Mas a distância no cinema de Abrantes é uma irreversibilidade. Tudo se joga num espaço virtual, onde se projecta uma quimera de géneros – o thriller, o melodrama, a comédia screwball, a fantasia –, onde eles são simulados. Como uma clonagem, na verdade. “O momento em que estamos na História não permite fazer as coisas em primeiro grau.” Aqui o formato é já conteúdo. “O modo de produção é uma estética, uma moral e uma ideologia. Tenho muita dificuldade em abstrair-me disso”, diz.
Isto significa que os seus filmes estão impregnados da forma como consumimos as imagens. O delírio chamado Diamantino, centrifugadora de publicidade, Internet, televisão e do que sobra como memória do que outrora se chamou “cinema”, é um olhar frontal, desapaixonado, sobre o state of the art: nós, no preciso momento em que o excesso de estímulos decorre. Diamantino espelha-nos – a sensação de claustrofobia neste objecto só aparentemente “disparatado” é inegável.
Mas com a personagem de Diamantino Abrantes não prescinde da empatia. Aliás, e é justo ele argumentar assim, nunca antes pudera desenvolver uma personagem desta forma, na duração de uma longa-metragem. Last but not the least, há Carloto Cota. O realizador desfaz-se em elogios sobre o actor, a sua voracidade, a sua rapidez e imaginação a utilizar referências – Charlot ou Keaton ou Forrest Gump ou Cristiano Ronaldo ou o sotaque açoriano do personal trainer que lhe trabalhou o físico para o papel. E como o resultado se eleva acima delas. Faz figas para que o júri da competição da Semana da Crítica de Cannes, que pela primeira vez atribui um prémio de interpretação, seja seduzido pelo actor. E faz figas para que Cristiano Ronaldo tenha sentido de humor.