Westworld regressa e os seus criadores já foram trolls, deuses e demónios – e nós também
A 2.ª temporada de uma das séries mais vistas de sempre da HBO, uma história de andróides usados para sexo e violência que se revoltam, vai agora ao parque temático do Japão Shogun. Sem spoilers mas com partidas sobre eles, esta madrugada mostra-nos as entranhas da TV.
Westworld foi um momento em 2016, vivido em dois planos - o da televisão e o da discussão. Regressa na noite deste domingo para segunda-feira tão consciente de si mesma quanto um andróide que decide tomar conta do seu destino. Série de prestígio de semblante carregado sobre o que é ser humano, há dias brincou consigo própria e com os spoilers: “É uma nova era e um novo mundo em termos da relação entre as pessoas a fazer séries e a comunidade que as vê”, disse o seu criador omnipotente, lançando um vídeo que prometia revelar todos os segredos desta 2.ª temporada. Era uma partida sobre spoilers, televisão e histórias.
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Westworld foi um momento em 2016, vivido em dois planos - o da televisão e o da discussão. Regressa na noite deste domingo para segunda-feira tão consciente de si mesma quanto um andróide que decide tomar conta do seu destino. Série de prestígio de semblante carregado sobre o que é ser humano, há dias brincou consigo própria e com os spoilers: “É uma nova era e um novo mundo em termos da relação entre as pessoas a fazer séries e a comunidade que as vê”, disse o seu criador omnipotente, lançando um vídeo que prometia revelar todos os segredos desta 2.ª temporada. Era uma partida sobre spoilers, televisão e histórias.
Os criadores da série, Lisa Joy e o marido Jonathan Nolan, foram há dias para o Reddit, uma plataforma de fóruns, prometer que, com base nessa nova relação de “confiança” entre showrunners e espectadores que agora consideram existir, iam dar ao público todas as supresas da temporada. É que em 2016 alguns espectadores dedicaram-se fervorosamente a adivinhar a história de Westworld (e depois queixaram-se da sua previsibilidade). Isso tornou-se parte da história da série.
O post de Nolan e Joy era rematado com uma versão da frase de Che Guevara – “Hasta [sic] victoria siempre!”. E sim, no vídeo lá estavam Bernard (Jeffrey Wright), e depois Dolores (Evan Rachel Wood), no parque temático do Velho Oeste povoado por sofisticadíssimos andróides. Mas ela começa a cantar Never gonna give you up, a música de Rick Astley que é a base de um duradouro meme, e depois um cão senta-se ao piano durante 20 minutos de provocação. Com esta partida - que é também uma forma de promoção - mostraram-nos “uma visão do showrunner como um troll”, um provocador da Internet, como identificou Troy Patterson na revista New Yorker.
“Adoramos o Reddit e quisémos celebrá-lo exactamente da forma como gosta de ser celebrado: numa relação sadomasoquista em que prometemos de mais e damos muito pouco”, disse Nolan há dias numa apresentação da série em Los Angeles. Westworld, uma série com base no filme homónimo de Michael Crichton de 1973 e com alguns elementos da sua sequela Futureworld, também tem funcionado como metáfora para a própria produção de histórias, e das histórias televisivas em particular.
Como qualquer série com alguma popularidade - e a sua é muita -, Westworld não consegue viver no vazio. Nem deixar de ouvir as reveries, como são chamados os devaneios e recordações dos andróides criados para dar prazeres violentos a humanos ricos, e os devaneios do mundo cá fora.
É um bocadinho de televisão a ver televisão – e, como defendia no início do ano o escritor e jornalista Noah Berlatsky no Washington Post, a “visão de um Deus-demónio sádico que opera como um criador de televisão é surpreendentemente comum na televisão contemporânea. Robert Ford (Anthony Hopkins), o génio da robótica que cria o parque temático sobre o Oeste em Westworld é basicamente um showrunner da televisão de prestígio que orquestra um ballet de morte e sexo e reviravoltas da intriga com uma indiferença endurecida”. Para Berlatsky, séries como Westworld, ou sobretudo The Good Place ou American Gods, “sugerem que criar uma série de televisão é muito parecido com criar o mundo” e provocam-nos “com a ideia de que há algo de divino na televisão. Reconhecem que a idiot box se tornou um ídolo – para o bem e para o mal”.
A primeira temporada de Westworld foi profusamente nomeada para todos os prémios importantes (22 nomeações e uma vitória nos Emmys) e é uma campeã de audiências para a HBO natal, que a escolheu como substituta futura de A Guerra dos Tronos. É até hoje a primeira temporada mais vista de sempre do canal e intercalou-se na perfeição com o maior tesouro da HBO - A Guerra dos Tronos deveria acabar em 2018 mas só regressa para o seu canto de cisne em 2019, com um intervalo de um ano entre temporadas.
Westworld fez o mesmo e, depois da estreia em 2016, regressa só neste 2018, e no mês que costumeiramente estava entregue à série dos dragões e reinos de Westeros. A primeira temporada de Westworld terminou numa chacina orquestrada pela andróide rebelada Dolores e com uma viagem de Maeve (Thandie Newton) para fora do parque temático da escravatura robot. Um novo parque, ou o novo mundo que a série vai visitar agora, tem o Japão feudal em pano de fundo – é o Shogun World.
As ideias de Westworld são servidas por uma produção endinheirada e por uma fotografia e design luxuriantes. Mas para os criadores, o foco da série não é nem o seu mistério e surpresas, nem os efeitos visuais. “O espírito da série é todo coração e emoção. É uma história de rebelião, [sobre a capacidade de] nos encontrarmos e de encontrar o amor, [sobre] encontrarmo-nos enquanto mudamos e [sobre] renegociar o que amamos”, disse Lisa Joy, citada pelo Indiewire, site de opinião dedicado às indústrias do cinema e da televisão, na apresentação da série em Los Angeles.
"Um dos seus fortes são as suas personagens atractivas – o rei-filósofo Ford, a Dolores doce e depois homicida, o sádico e esquemático Man in Black (Ed Harris)”, elogia James Donaghy no diário britânico The Guardian. Mas uma das críticas mais comuns sobre a série é que esta discussão sobre o que é a realidade, mas também sobre o que é ser humano, sacrificou a humanidade das suas personagens às mãos dos constantes reboots e recomeços dos andróides. As suas histórias são centrais, mas estão sempre em risco de ser apagadas. “Se a série foi tomada pelos seus fervorosos descodificadores, isso é porque não criou personagens tão envolventes quanto a sua intriga labiríntica”, critica James Poniewozik no jornal norte-americano The New York Times sobre a obsessão pelos spoilers e não pelo destino dos "anfitriões".
Mas no fim de contas, esta mistura de ficção-científica e mistério, de thriller e série de género parece sobretudo perturbar os seus críticos (e não só) pela forma como faz com que quem a vê se veja ao espelho. “O problema de Westworld é a sua insistência em que as almas são inerentemente corruptas”, lamenta Troy Patterson. “Ter uma má opinião da humanidade parece ser um pré-requisito para apreciar inteiramente a série.”
A nova temporada de Westworld estreia-se na madrugada de dia 22 para 23, em simultâneo entre a HBO nos EUA e o TV Séries português, com repetição às 22h45 das segundas-feiras do canal por subscrição.