João Salaviza recomeça em Cannes junto dos índios krahô
Realizador português regressa a um festival que, provavelmente, não o vai reconhecer. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos é um documentário que fez com Renée Nader Messora e mostra que Salaviza tem agora outro cinema e outra vida.
O João Salaviza que o Festival de Cannes premiou com a Palma de Ouro, em 2009, o Salaviza da curta-metragem Arena, não é já o Salaviza que a secção Un Certain Regard da 71.ª edição recebe com o documentário Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, um dos títulos que os programadores do festival vieram esta quinta-feira acrescentar à selecção oficial e que fixa em três o número de cineastas portugueses no maior festival de cinema do mundo (antes tinham sido anunciados os nomes de Gabriel Abrantes e de Duarte Coimbra, presenças na Semana da Crítica, secção paralela, com, respectivamente, a curta Amor Avenidas Novas e a longa Diamantino).
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O João Salaviza que o Festival de Cannes premiou com a Palma de Ouro, em 2009, o Salaviza da curta-metragem Arena, não é já o Salaviza que a secção Un Certain Regard da 71.ª edição recebe com o documentário Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, um dos títulos que os programadores do festival vieram esta quinta-feira acrescentar à selecção oficial e que fixa em três o número de cineastas portugueses no maior festival de cinema do mundo (antes tinham sido anunciados os nomes de Gabriel Abrantes e de Duarte Coimbra, presenças na Semana da Crítica, secção paralela, com, respectivamente, a curta Amor Avenidas Novas e a longa Diamantino).
Cannes, que gosta de convocar os seus cineastas, a sua família, aqueles que revelou ou que coroou, não vai reconhecer o Salaviza de 2018. Há quase uma década, o cineasta transportou, com os colegas da Escola de Cinema, a “felicidade”, a “euforia de uma experiência única” – e foi única a sensação de uma Palma de Ouro portuguesa, entregue por John Boorman. Quase dez anos depois, e após Montanha (2015), filme que fazia a súmula da sua odisseia pela adolescência – Arena (2009), Rafa (2012), Cerro Negro (2012) – e que foi também obra “de esgotamento” de Lisboa, dos prédios e dos jovens – as palavras são todas de Salaviza –, nunca mais veremos neste realizador aquele cinema e aquele modelo de produção. É o que ele nos diz hoje ao apresentar o resultado de dois anos de vida e contacto, em família, com os krahô, povo indígena do Brasil, numa das suas aldeias no estado de Tocantins, terra árida a quase mil quilómetros de Brasília.
“Foi redescobrir o prazer de viver e de filmar. Montanha foi um filme cheio de melancolia, por razões que também tinham que ver com o peso de uma maneira de fazer um filme. Com Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos o cinema não foi imposto ao ritmo de um grupo de pessoas, o cinema fez parte desse ritmo de vida e, se calhar, até foi a parte menos importante. Foram mais os dias em que a câmara de filmar esteve dentro da caixa do que fora dela. Dificilmente vou voltar a outra forma de fazer filmes”, diz Salaviza. É que Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos foi feito na intimidade, vivendo e filmando numa aldeia krahô, “sem cair numa relação voyeurística” com as pessoas, filmando como parte do viver. “Aqui, é agora um casal a fazer um filme, é a vida e o cinema.” O casal, com uma câmara, é João Salaviza e Renée Nader Messora, co-autores.
A luz no fim da rodagem
Foi Renée quem permitiu que João, 34 anos, fugisse da ressaca de Montanha. Assistente de realização nesse filme (os dois tinham-se conhecido anos antes em Buenos Aires, onde ele estudou), levou-o com ela para a aldeia de Pedra Branca. Foram recebidos e integrados pela família krahô. O primeiro movimento nessa direcção aconteceu há quatro anos. “Eu queria fugir para algum lado”, diz o realizador. Repetir-se-ia, enquanto a pós-produção e a estreia de Montanha decorriam, por temporadas. Tinha nascido a ideia de um filme. A rodagem processar-se-ia ao longo de nove meses, em película 16mm e sem equipa, com o casal já a viver na aldeia numa casa que lhe foi emprestada. “O filme passou a ser uma coisa que ia acontecendo.” A luz eléctrica só aconteceu mesmo no final da rodagem.
Para Salaviza os krahô representaram, no total, dois anos de vida (duas estadias, uma de quatro meses, outra de três, depois a rodagem de quase um ano), para Renée oito. É ela que conta: conheceu os krahô em 2009, quando fez a fotografia de um documentário sobre os rituais de luto desse povo. Apaixonou-se, regressaria várias vezes, com projectos audiovisuais, oficinas de fotografia e montagem dirigidas aos jovens. “Em 2012 deixei mesmo a minha casa em São Paulo e fui viver para a aldeia.” Pedra Branca tem 500 habitantes é a maior das 33 aldeias onde foram fixados os três mil krahô, povo que começou por ser seminómada e que nos anos 40 foi perseguido e chacinado por fazendeiros. É hoje uma comunidade que Renée diz que se organiza “de forma horizontal”, onde “ninguém acumula riqueza”. Quando se vive com os krahô, “apanha-se” o nome de uma família, ocupa-se o seu lugar nessa comunidade. Ela apanhou o nome “de uma espécie de rainha da aldeia, uma conselheira, uma provedora”.
É João quem diz que, quando fez Alta Cidade das Ossadas, a sua curta de 2017, logo a seguir a Montanha, já se notava aí uma transição. Sendo inspirada pela vida do rapper Karlon, nascido na Pedreira dos Húngaros, sendo a história de uma personagem que decide “sair dos prédios” e da cidade, num movimento de regresso às origens familiares, Cabo Verde, que está trabalhado no seu hip hop crioulo, “esse filme introduz elementos novos” na sua cinematografia. “É a primeira vez que filmo a natureza, é a primeira vez que filmo uma relação menos materialista com as coisas”, reforça.
Alta Cidade das Ossadas era, então, a concretização da deslocação para outro território do cinema por que ele ansiava e que continua visível na curta Russa (em competição, dentro de dias, no IndieLisboa 2018). Aqui temos de dizer que talvez seja a deslocação para outro território da vida. Como se as personagens desses filmes e o seu movimento espelhassem a mudança – existencial – que buscava Salaviza. O encontro com a aldeia krahô, e os moldes em que isso se processou, sendo introduzidos por Renée, facilitaram a nova vida.
Afinal, tal como aconteceu com Arena, provavelmente a 71.ª edição de Cannes vai ver um novo cineasta. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos vai ser uma primeira vez, um começo. E não é nada contraditório que, depois de ter dito numa entrevista que, se calhar, com Montanha, tinha filmado pela última vez o desejo de cruzar a adolescência, João Salaviza revele que o protagonista do seu documentário, Ihjãc, que após um encontro com o espírito do seu falecido pai se vê obrigado a realizar a sua festa de fim de luto... é um adolescente.