Moreira Salles: uma varanda sobre a revolução
No Intenso Agora é um home-movie que o cineasta esconde ou resguarda de forma púdica debaixo do ensaio de iconografia política. Não escolhe veementemente o seu território. Conforta-se (e conforta-nos) na melancolia.
Sobre o sentimento de revolução no horizonte mas já a capitulação à vista, a personagem de Fabrizio de Prima della rivoluzione/Antes da Revolução (Bernardo Bertolucci, 1964) pode ter algo a testemunhar. Disse-o, jovem marxista em curto-circuito com a alta burguesia a que pertence, ao falar das febris saudades do presente: o tempo esvai-se logo quando se experimenta, o presente está logo a ir-se embora. Por isso Fabrizio não se transcende. Não muda. Apesar dos complexos de culpa e de classe — na verdade, por causa deles — capitula operaticamente no final de Prima della rivoluzione. Filme que começara, no genérico, a anunciar: “Quem não viveu os anos anteriores à revolução não pode saber o que é a alegria de viver” (Talleyrand).
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Sobre o sentimento de revolução no horizonte mas já a capitulação à vista, a personagem de Fabrizio de Prima della rivoluzione/Antes da Revolução (Bernardo Bertolucci, 1964) pode ter algo a testemunhar. Disse-o, jovem marxista em curto-circuito com a alta burguesia a que pertence, ao falar das febris saudades do presente: o tempo esvai-se logo quando se experimenta, o presente está logo a ir-se embora. Por isso Fabrizio não se transcende. Não muda. Apesar dos complexos de culpa e de classe — na verdade, por causa deles — capitula operaticamente no final de Prima della rivoluzione. Filme que começara, no genérico, a anunciar: “Quem não viveu os anos anteriores à revolução não pode saber o que é a alegria de viver” (Talleyrand).
João Moreira Salles podia ter começado dessa forma No Intenso Agora. É intensa a sensação de o filme poder cruzar dilemas bertoluccianos — ou, cedendo ao estímulo de um desvario, de poder ser um documentário realizado por uma personagem do cinema de Bertolucci, apanhada pelas contradições de classe, imobilizada por elas. Realizado por alguém prisioneiro de uma melancolia paralisante.
Descendo à terra: não seria necessário esse delírio para filiar No Intenso Agora no sentimento que imobiliza depois de uma revolução, depois da felicidade, esse de que na realidade nos fala a inscrição em Prima della rivoluzione — “Quem não viveu os anos anteriores à revolução não pode saber o que é a alegria de viver” — ao referir-se aos momentos antes dela. E é esse sentimento do fim entrevisto na intensidade que impede que fique sublinhado o forçado da divagação, da errância, pelas imagens de arquivo (fabuloso trabalho de pesquisa de Intenso Agora) sobre as quais Moreira Salles exercita o seu olhar de ensaísta mas de que sobretudo alimenta a sua melancolia: as imagens do que a mãe, Elisa, filmou numa viagem, em 1966, à Revolução Cultural chinesa integrada num grupo da alta burguesia e indústria e as imagens dos estudantes e operários em Paris, Maio de 1968, e, também de 1968, Praga na sua Primavera. Há uma questão lancinante no filme porque é uma dúvida de filho que não será apaziguada: a de saber se em algum momento Elisa (1929 -1988) experimentou a alegria de viver que inundou os revolucionários de Paris — o que se seguiu, no rescaldo de Paris e de Praga, e na vida de Elisa, foi a perda da alegria, foi o suicídio. Isso, como se disse, justifica a coabitação, salva in extremis da excentricidade e do exotismo, entre a experiência estética da mãe numa China de Mao a milhares de quilómetros da sua mundivisão sensualista e a política das ruas de Paris e Praga, a milhares de quilómetros também de uma privilegiada família brasileira.
No Intenso Agora é então um home-movie que Moreira Salles esconde ou resguarda de forma pudica debaixo do ensaio de micro-história e de iconografia política. Não é certo que o filme escolha decididamente ou veementemente o seu território. Podemos dizer, aliás, que não há escolhas de cineasta veementes aqui e que isso — reserva, pudor ou dificuldade em rasgar, em agir sobre as imagens e em fazer a revolução com elas — marca o filme. Marca o seu cinema, aliás. Mesmo quando decidiu virá-lo para si mesmo.
The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/VIDEO_CENTRAL.cshtml' was not found. The following locations were searched:
~/Views/Layouts/Amp2020/VIDEO_CENTRAL.cshtml
VIDEO_CENTRAL
Sentindo-se culpado por, filho de família privilegiada, andar a documentar a vida dos menos privilegiados e de ser demasiado fácil chegar a eles e deles sair, decidiu entrevistar o mordomo da sua família, Santiago. Isso foi em 1992. As imagens ficaram guardadas durante anos. Salles achou que nada funcionava ali. Até que em 2007 a elas regressou para nelas trabalhar o home movie que estaria escondido, para fazer sobressair a diferença de classes, o patrão a dirigir o empregado, as imagens que não sabemos que filmamos Não poderemos dizer se Santiago é melhor filme em 1992 do que em 2007 - ou se são iguais. É um documento sem violência, sem luta – mesmo se se declaram ali as classes. Tal como o bonito No Intenso Agora: é um filme que se conforta e nos conforta na melancolia, que se deixa levar por ela — pensando numa das imagens de Maio de 68 em Intenso Agora: com este cinema estaremos sempre na segurança de uma varanda.