Tirei o Woody Allen do castigo
Hoje podemos sentir em Annie Hall ou em Manhattan mais do que a nostalgia e a comédia romanticamente psicanalizada: o sabor de um apocalipse sentimental e moral. Estamos sozinhos com os nossos crimes e escapadelas — nada nos salva se escaparmos. Woody sempre disse isso: somos nós os monstros.
Não havia Woody Allen lá em casa. Agora há Nem Guerra, Nem Paz (1975), Annie Hall (1977), Intimidade (1978) — ganhou crueldade, não é o exercício de preciosismo bergmaniano com que foi rotulado —, Manhattan (1979), Zelig (1983), O Agente da Broadway (1984), Ana e as Suas Irmãs (1986) e Crimes e Escapadelas (1989). Não havia Woody Allen porque era redundante: encher a casa com a casa, multiplicar sinais de mim, espectador, com aqueles filmes, dos 70s e 80s, com que Woody foi variando a partir de um modelo que era dele e dessa forma nos meteu numa bolha — falando para nós como se nos estivesse a ouvir e assim nós ouvíamo-nos. O espaço público enchia-se de confissões privadas.
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Não havia Woody Allen lá em casa. Agora há Nem Guerra, Nem Paz (1975), Annie Hall (1977), Intimidade (1978) — ganhou crueldade, não é o exercício de preciosismo bergmaniano com que foi rotulado —, Manhattan (1979), Zelig (1983), O Agente da Broadway (1984), Ana e as Suas Irmãs (1986) e Crimes e Escapadelas (1989). Não havia Woody Allen porque era redundante: encher a casa com a casa, multiplicar sinais de mim, espectador, com aqueles filmes, dos 70s e 80s, com que Woody foi variando a partir de um modelo que era dele e dessa forma nos meteu numa bolha — falando para nós como se nos estivesse a ouvir e assim nós ouvíamo-nos. O espaço público enchia-se de confissões privadas.
Meter esse reconhecimento em casa era redundante. Agora, em tempo de “monstros”, quando actrizes consideram um erro terem estado nos filmes de Woody Allen, distanciando-se com o mea culpa e procurando credibilização com reescrita de currículo, quando “clássicos” (Manhattan) são colocados “de castigo” por quem os analisa à procura de provas de um delito, senti necessidade de ter Woody Allen em casa. Não por ele. Pela minha história de espectador. (Estavam a saldo na FNAC, parecia que alguém se estava a desembaraçar deles, eu não quis que, nesta febre de apagar e de reescrever, se desembaraçassem de mim).
Faltam-me alguns dos que quero. Maridos e Mulheres (1992) é um deles. É decisivo. É aquele em que um casal (Judy Davis e Sydney Pollack) anuncia aos amigos Woody Allen e Mia Farrow que se vai separar, perante a incredulidade destes. No fim de uma série de ondas de choque, é o casal Allen/Farrow que se separa (Davis e Pollack, claro, juntam-se). Uma série de ondas de choque: a câmara agressiva, uma voz inquisidora a encostar personagens à parede, uma energia nunca acolchoada por alibi narrativo: não se justifica, impõe(-se).
Apareceu nos ecrãs em 1992, quando rebentava o “escândalo” da separação Mia/Woody, por causa da filha adoptiva dela, Soon-Yi. Era um casal mediático, idiossincrático q.b.(aquela coisa de viverem cada um do seu lado de Central Park era cool antes do cool), mas podia ser adoptado por todos. Recordo uma sessão novaiorquina com diálogo entre o ecrã e os espectadores a cruzar a sala, todos a “falarem” com o filme, retaliação contra a “traição” de que tínhamos sido alvo — ainda para mais, Allen parecia antecipar a vida com a arte, o autor agigantava-se, como a mãe dominadora de New York Stories. Começou ali a ser “monstruoso”. Mas ali, evidentemente, a vida privada tomava a vida artística como refém. Terminou por esses anos o Allen feroz, criativo e vital. Foi algo que nunca mais, ou só episodicamente, existiu. Ficámos orfãos — são posteriores a Maridos e Mulheres as declarações dele de que passaria a ter uma relação mais leve com o cinema, não queria continuar a deixar ali a pele, foi com isso que ficámos.
Hoje podemos sentir em Annie Hall ou em Manhattan mais do que a nostalgia e a comédia romanticamente psicanalizada: o sabor de um apocalipse sentimental e moral. Estamos sozinhos com os nossos crimes e escapadelas — nada nos salva se escaparmos. Woody sempre disse isso: somos nós os monstros. Nós é que olhámos para o lado. Aquela sessão novaiorquina, é hoje claro, faz figura do fim de um certo cineasta — terminava a “lua de mel” com ele — e de um canto de cisne da experiência cinematográfica como lugar de solidão. Estamos sozinhos, é a felicidade desse lugar. Que procuramos por medo, voyeurismo, desejo, culpa — se há espaço onde isso pode florescer é em frente a um filme, tudo é lícito porque é representação, simulacro, fantasma. Mas hoje “dizem-nos” que o que se passa com “eles” nada tem a ver “connosco”. Dizem-nos que o cinema tem de ser espaço “limpo”, reconciliação, SPA emocional. Por isso toca a apagar o que mete medo — ou o que pode ser problemático nas bilheteiras, como Kevin Spacey em All The Money in the World (decisão comercial, coisa cínica). Hoje o lugar do espectador não tolera perturbações e faz-se lugar de vigilantismo. O medo do medo está a acabar connosco. Pior do que os filmes, só nós, espectadores; os filmes apenas nos têm acompanhado por razões de sobrevivência. Mesmo num texto sério de Laure Murat, cronista no Libération, que reencontrou Blow Up, de Antonioni, e descobriu que a “forma” desse filme nos distraiu do seu “conteúdo” (mas como, se em Antonioni a forma já é conteúdo?) e nele encontrou a reiteração da história de violência do “olhar masculino” — deveria Antonioni ter colocado uma legenda a distanciar-se da “misoginia” do fotógrafo? —, a proposta feita de um inventário da História de Arte é um desafio olímpico, sim, mas para chegar a que resultado? Murat diz que não se trata de censura. Mas não diz do que é que se trata. Deixa em aberto, um vazio — o título O Ovo da Serpente, aquele filme nada bom de Bergman, cruza-me o espírito. Mas há dias ouvi e gostei; Isabelle Huppert: “Não concebo ir ao cinema sem ser para me perturbar”.