Regime treme mas não está prestes a cair

Teocracia “perdeu a sua legitimidade”, mas 39 anos depois da Revolução Islâmica os “reformistas não apoiam” outra revolução e muitos iranianos têm medo de uma nova Síria. Há quem acredite que serão as mulheres a liderar o caminho.

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A cada 11 de Fevereiro, manifestantes bem organizados saem à rua nas grandes cidades com bandeiras iranianas e slogans gastos de anos como “Morte a Israel” ou “Morte à América”. Desta vez, o recém-nascido movimento de protesto contra o regime promete para o mesmo dia “protestos maciços por todo o Irão”. A promessa chega via redes sociais e é preciso esperar para ver: afinal, este movimento não tem liderança conhecida nem é certa a sua capacidade de organização.

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A cada 11 de Fevereiro, manifestantes bem organizados saem à rua nas grandes cidades com bandeiras iranianas e slogans gastos de anos como “Morte a Israel” ou “Morte à América”. Desta vez, o recém-nascido movimento de protesto contra o regime promete para o mesmo dia “protestos maciços por todo o Irão”. A promessa chega via redes sociais e é preciso esperar para ver: afinal, este movimento não tem liderança conhecida nem é certa a sua capacidade de organização.

Este domingo, completam-se 39 anos desde o início da Revolução Islâmica que instaurou o regime dos mullahs na antiga Pérsia, o primeiro de 11 dias de protestos que agora são feriado nacional. Nesses dias de manifestações contra a monarquia e o xá Mohammad Reza Pahlavi (convencido a regressar pelos Estados Unidos, depois de a CIA derrubar Mohammad Mosaddeq) o hijab (véu islâmico) foi um símbolo de protesto e solidariedade, independentemente da religiosidade das mulheres que o usavam.

Estava-se em 1979 e só em 1985 (durante a guerra com o Iraque, usada como pretexto para perseguir a oposição e introduzir leis restritivas) o véu se tornaria num acessório de uso obrigatório e no que é hoje, “o mais visível símbolo de opressão” de um regime desligado do seu povo e das suas necessidades. A descrição é da jornalista Masih Alinejad, fundadora do site My Stealthy Freedom (A Minha Liberdade Furtiva), que promove há quase um ano as “quartas-feiras brancas”, dias em que as mulheres usam e deixam cair véus brancos e que quem se quer solidarizar com elas veste branco.

Quarta-feira, dia 27 de Dezembro, Vida Movadeh, de 31 anos e com um filho de 19 meses, pôs-se em cima de uma caixa com o cabelo negro solto enquanto agitava o seu hijab branco como uma bandeira, preso a um pau. O gesto foi fotografado e o seu impacto ampliado pelo cenário: a rua Enghelab (ou Revolução) da capital, Teerão. Movadeh foi detida e entretanto libertada, a 26 de Janeiro. Em solidariedade com ela, outra activista, Narges Hosseini, fez o mesmo na mesma rua. Detida, teve de pagar 88 mil euros de fiança.

Assim, do movimento #WhiteWednesdays nascia o que agora é conhecido por Raparigas da Rua da Revolução. Por coincidência, na quinta-feira, 28 de Dezembro, chegavam notícias dos primeiros protestos contra o Presidente Hassan Rohani na cidade-santuário (e dominada pelos conservadores) de Mashad. Alguns milhares de iranianos saíram à rua para gritar contra o aumento dos preços, a inflação e a corrupção. Alguns gritaram “morte ao ditador, morte a Rohani”.

Com a proximidade dos acontecimentos, a fotografia de Movadeh chegou a ser usada como símbolo do que se tornou uma nova vaga de manifestações, a maior deste a contestação brutalmente esmagada de 2009 – o Movimento Verde, contra as eleições fraudulentas que reelegeram Presidente o ultra-radical Mahmoud Ahmadinejad, escolhido pelo homem mais poderoso do país, o Guia Supremo, ayatollah Ali Khamenei.

Centenas de protestos

Nos dias seguintes a 28 de Dezembro, houve manifestações em pelo menos 85 cidades, dos chamados centros urbanos às capitais de província, mas com pouca dimensão em Teerão. E de repente, caía um tabu e ouviram-se gritos de “abaixo o ditador, morte a Khamenei” (o Guia Supremo nunca era criticado) ou outras palavras de ordem impensáveis como as que apelavam ao regresso da monarquia (curiosamente em Qom, considerada a capital islâmica do país).

A polícia pôs fim à contestação, deixando 25 mortos e fazendo pelo menos 3700 detenções. As palavras de incentivo do Presidente dos EUA, Donald Trump, e do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, não ajudaram, com o seu “apoio ao povo iraniano” que quer tudo menos ser visto como “agente estrangeiro” (epíteto que o regime usa contra qualquer opositor). Entretanto, as mulheres continuaram com os seus protestos e a polícia anunciou a semana passada que deteve 29 nos dias anteriores por terem retirado o seu hijab na rua.

Há algo de novo a passar-se no regime dos mullahs? É cedo para perceber e os sinais são contraditórios. As mulheres, afinal, sempre mantiveram os seus pequenos protestos, como o chamado “mau hijab” – o lenço usado descaído, de forma a deixar ver parte do cabelo – e manifestações por causa de salários ou subsídios também há com regularidade.

Ao todo, segundo diferentes estudos, houve 400 protestos por motivos laborais em 2015, 350 em 2016 e uns 1700 desde Março do ano passado (os protestos aumentam sempre que há um reformista na presidência). Diferente agora foram as palavras de ordem e o facto de tanta gente ter saído à rua em simultâneo em dezenas de cidades. O suficiente para tornar esta a maior contestação desde 2009, quando o regime enfrentou a maior ameaça desde a Revolução.

“Os pobres de classe média”

Se a comparação for com 2009, quando os protestos foram sobretudo urbanos e liderados por dirigentes políticos, o que há de diferente agora é o tipo de manifestantes. Asef Bayat descreve-os como “os pobres de classe média”, jovens que tiveram acesso à universidade mas não têm emprego, “gente com expectivas altas mas vidas incertas”. São “jovens indignados, sem saída, que arriscaram organizar-se e usar uma linguagem política”.

A descrição transporta-nos para a Tunísia de Dezembro de 2010, um mês antes da queda de Ben Ali e do início de uma vaga de revoltas no mundo árabe. “Sim, na Tunísia os pobres de classe média também tiveram um papel importante, mas depois vieram os profissionais, e as classes médias estabelecidas, como os advogados, professores universitários, funcionários públicos, já para não falar dos sindicatos bem organizados”, recorda Bayat, iraniano que ensina Sociologia e Estudos do Médio Oriente na Universidade de Illinois e colabora com várias publicações.

“Pode acontecer algo assim no Irão? É possível, mas para já as classes médias urbanas e bem estabelecidas estão a abster-se de participar”, diz, numa troca de emails. Ajuda que esteja no poder um reformista – “os reformistas apoiaram Rohani nas eleições [foi reeleito em Maio, com mais votos do que em 2013, e sem o apoio de Khamenei] e não querem um Irão instável agora”. Para além disso, “por princípio, os reformistas são contra revoluções, procuram reformas através de mecanismos eleitorais e institucionais; e como muitas pessoas no país, têm medo de um cenário sírio”.

Hijab como símbolo

Sozinhos, “os pobres de classe média” não chegam para uma revolução. E as mulheres? “Quão significativo e glorioso seria se estas jovens mulheres tivessem a chave para libertar esta terra da ditadura”, escreveu no Twitter o autor Hosein Vahdani. Algumas activistas também defendem que as iranianas serão a vanguarda de uma verdadeira revolução. “Estas pessoas não estão a combater um pedaço de roupa, estão a lutar contra a ideologia por trás do uso obrigatório do hijab”, diz Alinejad, a promotora das #WhiteWednesdays.

Para o sociólogo franco-iraniano Farhad Khosrokhavar, os protestos dos jovens desempregados provam que o fosso entre a sociedade e o regime cresceu tanto que “o regime perdeu toda a sua legitimidade, o sistema está bloqueado”. É o que acontece quando um regime, neste caso, uma teocracia, “não consegue satisfazer as necessidades das classes mais frágeis”, defende, em declarações ao jornal Le Monde.

Os jovens que prometem voltar à rua este domingo querem empregos e melhores condições num país onde as elites religiosas e de segurança (que dependem do ayatollah) controlam as principais áreas da economia e a corrupção é quotidiana. A luta das mulheres é ideológica, contra a opressão; no fundo, ambos saem à rua contra um regime que parece ter-se esgotado.

Rohani está na presidência e manda pouco, por comparação com Khamenei, mas o suficiente para apelar ao diálogo e defender, como tem feito, o direito aos protestos pacíficos. Por isso, a repressão brutal das milícias religiosas de 2009 ainda não se viu nas ruas. “Eles estão a tentar a via do debate. Até lançaram uma sondagem para perceber os motivos e a composição destes manifestantes, convidando políticos e cientistas sociais a discutir o tema publicamente”, diz Bayat.

Neste contexto, o analista de 53 anos não acredita que diferentes vontades se unam a outras para, num futuro próximo, derrubar a teocracia. “Não falta só liderança, falta organização e uma visão do que se quer”, defende, a fazer lembrar as palavras de alguns opositores sírios, críticos tardios de uma revolta que começou sem plano e resultou em violência sem fim. “Qual seria o resultado, sem uma estratégia funcional de transferência de poder ou meios e mecanismos para estabelecer uma ordem social mais justa?”