Os três “pecados” de D. Manuel Clemente
Falando no celibato, o patriarca de Lisboa meteu-se na cama, quando devia falar da vida. Perdeu o momento — e deixou que se perdesse uma voz. Se não é um pecado, é pelo menos uma perda.
Do alto do seu discernimento, o papa Francisco sabia que estava a abrir uma revolução quando publicou a exortação apostólica Amoris Laetitia. Com ela, o Papa abriu uma janela na Igreja Católica: a que permite regular o acesso aos sacramentos de pessoas em “situação irregular”, àquelas em que ao matrimónio sucedeu a separação e um casamento civil.
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Do alto do seu discernimento, o papa Francisco sabia que estava a abrir uma revolução quando publicou a exortação apostólica Amoris Laetitia. Com ela, o Papa abriu uma janela na Igreja Católica: a que permite regular o acesso aos sacramentos de pessoas em “situação irregular”, àquelas em que ao matrimónio sucedeu a separação e um casamento civil.
A janela que se abriu, deixando entrar luz, também abriu espaço às tempestades. Esta semana, com a publicação de uma nota com as orientações para o clero aplicar a exortação do Papa, D. Manuel Clemente deu, sem o querer, a melhor prova disso.
É uma verdade comum que não há uma Igreja, há quase tantas como os membros que a compõem. Daí que o primeiro “pecado” da sua nota tenha sido o formal, da sua comunicação. Numa matéria muito sensível, o modo de aplicar uma mudança tão grande nunca poderia aparecer no site do patriarcado, em formulação equívoca e sem o devido enquadramento.
O segundo “pecado” é mais complexo: é o de uma Igreja que, sabendo quão divisiva é a orientação do Papa, não procure uniformizar uma mensagem. Talvez seja mais fácil perceber se lembrarmos o que disse, apenas há três semanas, D. Jorge Ortiga, o arcebispo de Braga, na conferência de imprensa em que deixou as suas próprias orientações aos sacerdotes: lembrou que a realidade das famílias se alterou muito nos últimos anos e que “a Igreja não pode fechar os olhos” a essa realidade, anunciando um serviço pioneiro para acompanhar os divorciados recasados.
Em Lisboa, dizendo praticamente o mesmo, D. Manuel Clemente acrescentou um ponto: a recomendação aos recasados de uma “vida em continência”. Foi, claro, um vendaval que se levantou na sociedade, tão forte que obrigou o Patriarcado de Lisboa a um esclarecimento: “Não é D. Manuel quem aconselha, é o papa João Paulo II. Esta recomendação já vem da exortação apostólica Familiaris Consortio, de 1981.” É verdade, sim. Como é verdade que foi D. Manuel Clemente quem agora a sublinhou. E eis-nos perante o problema que se vive no interior da Igreja: como estar de bem com João Paulo II e com Francisco ao mesmo tempo, sendo eles de tempos tão diferentes?
Mas é preciso falar do outro “pecado”, o terceiro de D. Manuel Clemente. Hoje, Portugal discute temas decisivos, radicalmente novos, como a aceitação da eutanásia. E foi no momento em que essa discussão começou que o patriarca abriu uma dúvida sobre a sua abertura à sociedade.
Falando no celibato, o patriarca de Lisboa meteu-se na cama, quando devia falar da vida. Perdeu o momento — e deixou que se perdesse uma voz. Se não é um pecado, é pelo menos uma perda.