Agnès vê desfocado, JR vê escuro, Godard rouba-lhes o filme
Um fotógrafo/graffiti artist e uma cineasta/fotógrafa enchem a paisagem francesa de colagens ao vivo, de colagens vivas. Para que as pessoas que encontram não morram na memória. Mas alguém se intromete na escrita da paisagem.
Os dois cantam, mas ela vê desfocado e ele vê escuro. É daqueles encontros que, no momento em que acontecem, cada um exclama: “Como é que não nos tínhamos encontrado antes?” Entretanto, o fotógrafo/graffiti artist e a cineasta/fotógrafa cantaram com Madonna Imagine, de John Lennon, “concerto” improvisado na Praça da República em Paris — há dois anos. Mas agora, JR, 33 anos, e Agnès Varda, 88, fizeram mesmo um filme: viajam pela França com uma carrinha photomaton (é dele), enchendo a paisagem de retratos gigantes das pessoas que encontram, colagens ao vivo, colagens vivas, para que os rostos e encontros não desapareçam por entre os buracos da memória. É dos dois fazerem uma imagem, uma palavra desabrochar, torná-la outra(s) para incluírem os outros, investirem-na de sentidos — nada se grita por aqui, no entanto, é tudo em murmúrio.
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Os dois cantam, mas ela vê desfocado e ele vê escuro. É daqueles encontros que, no momento em que acontecem, cada um exclama: “Como é que não nos tínhamos encontrado antes?” Entretanto, o fotógrafo/graffiti artist e a cineasta/fotógrafa cantaram com Madonna Imagine, de John Lennon, “concerto” improvisado na Praça da República em Paris — há dois anos. Mas agora, JR, 33 anos, e Agnès Varda, 88, fizeram mesmo um filme: viajam pela França com uma carrinha photomaton (é dele), enchendo a paisagem de retratos gigantes das pessoas que encontram, colagens ao vivo, colagens vivas, para que os rostos e encontros não desapareçam por entre os buracos da memória. É dos dois fazerem uma imagem, uma palavra desabrochar, torná-la outra(s) para incluírem os outros, investirem-na de sentidos — nada se grita por aqui, no entanto, é tudo em murmúrio.
Ele desespera-a por nunca querer tirar os óculos escuros; ele, que gosta de pessoas idosas, vai directo ao assunto: tens medo da morte, Agnès? Não, responde: tem a sensação de que cada pessoa que conhece vai ser a última, mas não tem medo, embora não saiba o que vai acontecer quando a morte acontecer — essa ignorância enche-a de uma vontade de despachar o assunto, para saber.
Visages Villages/Olhares, Lugares é a encenação do feliz (des)encontro entre Agnès Varda e JR. Os dois começam por mostrar onde é que se falharam ou perderam para melhor realçarem como é musical o que se acertou entre eles. Mas essa narrativa é-lhes roubada, o que não pode cair mal a uma artista — Varda — que deixa que as obras encontrem o seu estilo à medida que se escrevem — cinécriture, Varda dixit.
Mas é isso: o que os dois conceberam como encenação, nesta espécie de miniatura sociológica sobre a França de hoje, é-lhes roubado nos minutos finais do filme pela realidade. Varda gosta de dizer que o acaso sempre foi o seu “melhor assistente”. Nunca adaptou nada, livro algum, ao cinema, sempre quis que os filmes “saíssem do nada”. Então agora acontece-lhe isso mesmo: saído do nada um ladrão-mor chamado Jean-Luc Godard altera o plano de trabalhos. Como se pode comprovar num encontro entre Varda e a imprensa em Paris– “e Godard?” “Ficou furiosa com ele?” “E Godard já viu o seu filme?” — Jean-Luc impõe-se a Agnès e JR, o que é, se calhar, uma forma de cruzamento de escritas.
Godard, então, e para despachar o assunto, anunciando desde já que é com ele que Visages Villages acaba: a coisa começa antes, quando, depois de tanto insistir com JR para que ele tirasse os óculos escuros, JR faz-lhe a vontade e Agnès é fulminada pela memória dos olhos tristes de Jean-Luc, também escondidos atrás dos óculos escuros, quando o filmou e a Anna Karina em Les fiancés du pont Mac Donald ou (Méfiez-vous des lunettes noires) (1961). Esse gesto de JR — que tem a idade que Godard tinha quando tirou os óculos no filme de Varda — desencadeou a nostalgia em Agnès, que se lembrou de si própria, de Jacques Demy de Jean-Luc e de Anna, bando feliz ao sol, com livros e com Anna a deambular, Qu’est-ce que je peux faire ? Je sais pas quoi faire.
Agnès faz então uma surpresa a JR, fanzoca de Jean-Luc (JR e Agnès repetiram no Louvre a correria de Bande à Part — em cadeira de rodas): marca encontro com o amigo que não vê há cinco anos, na sua nova casa na Suíça. E para lá vão, com bolos comprados na pastelaria favorita de Jean-Luc. Aí chegados, encontram a porta fechada. Há uma mensagem, código para Agnès entender que ele pensa nela, que ele pensa em Jacques, que pensa no dia em que Jacques morreu, 27 de Outubro de 1990, mas ele, Godard, não está lá para o encontro — ficam as desculpas à maneira dele. Agnès é então sacudida pela emoção — nesse momento, atrás da câmara estava Mathieu Demy, filho de Agnès e Jacques.
“Godard talvez não tenha sido desagradável”, concede Agnès. “Ele falou em Jacques Demy. Não se pode falar em Jacques Demy sem eu começar a chorar. Mas talvez com isso ele tenha acrescentado algo ao argumento. O meu filho Mathieu estava comigo e estava contente por rever Godard, a ideia era ir lá, saber como ele estava, como era a nova casa em que ele vivia, talvez ele perguntasse pela minha — seria sempre tudo sobre ele, no entanto [risos]. Ao faltar ao encontro, criou alguma coisa nova” (isto pode servir de síntese do movimento do cinema de Varda).
“Tivemos que filmar o que se estava a passar, é o verdadeiro pedaço de documentário do filme. Tudo o resto pudemos preparar. Ali, não, fiquei chocada, fomos apanhados de surpresa, eu, JR e Mathieu, que não era suposto estar a filmar, mas naquela parte da viagem ele tinha dito que vinha comigo. Era o meu próprio filho a filmar a minha dor.”
Agnès mandou o DVD de Visages Villages a Jean-Luc. Não teve resposta. “Ele é um inventor solitário. Um filósofo. Inventa o cinema. Como fez com o 3D, um dos mais belos 3D que alguma vez vimos — não percebemos o filme [Adeus à Linguagem], mas não interessa. É um experimentador. E tem todo o meu respeito e amor. Amo-o como quando ele era novo. Não posso cortar, dizer que já não o amo. Amo-o à distância. É um pesquisador, isso é importante. Mas muitas vezes não é fácil, não era fácil em Filme Socialismo, em que vai à procura de algo. Se só umas 10 pessoas o perceberam, é para ser assim.”
Jeannine, o carteiro, o agricultor...
E agora regressamos ao início de Visages, Villages, a Jeannine, a última habitante de uma rua de mineiros, que em criança comia com maravilhamento os restos do pão que o pai trazia do fundo da mina. “Quero que as pessoas gostem de Jeannine, pusemo-la no início do filme para o espectador ter logo acesso à emoção. E depois o carteiro”..., que abastecia as casas de melões e tomates. E o agricultor solitário, ele e o seu tractor comandado a computador: chegam para as encomendas e para 800 hectares de cultivo, é a exaltante experiência da solidão do novo tempo.
“A vida mudou, é como se fizéssemos aqui um pouco do trabalho de sociólogos. Não Sociologia a sério, Sociologia a brincar, mas ainda assim Sociologia sobre a França hoje”, diz Varda. Há ainda aquele pedaço de pedagogia conjugal e de género quando JR investe junto dos trabalhadores em greve dos estaleiros do Havre e Agnès junto das mulheres deles, operárias na fábrica, e reposiciona-lhes os advérbios (porque é que elas dizem que estão na “rectaguarda” dos maridos?). Os dois edificam para elas um altar de contentores.
“Adoro essa sequência, adoro quando na fábrica as empregadas se juntam e tomam decisões juntas... os maridos, que trabalhavam no porto e estavam em greve, ajudaram-nos a construir aquela celebração às mulheres, às suas mulheres. Foi bonito: quando abrimos os contentores e eles viram as imagens delas, sentiram-se orgulhosos. As coisas mudam quando os homens ajudam as mulheres. Há um deles que diz ‘ao fazermos isto estamos a afastar um pouco mais o cliché e os preconceitos’. Isso é belíssimo, porque este é um mundo de homens. E tenho a convicção de que, de forma suave, risonha, dizemos algo de sério sobre as pessoas. Nunca perguntei em quem é que votam, não sei qual é a política delas. Se há uma conexão com as pessoas, isso não passa pelo seu dinheiro, pela sua política”.
Há, em Visages Villages, uma profilaxia contra o esquecimento. Que é também um gesto de devolução, coisa de implicação didáctica e amorosa, da energia de que Varda se alimentara em Mur Murs (1981), o documentário que fez em Los Angeles, cidade que, descobriu, para além dos amigos famosos e das refinadas ervas, sonhava em conjunto: os murais, rostos e corpos gigantes, os esquecidos das histórias oficiais, figuras não maquilhadas, os gangs, por exemplo, era o “everybody dreaming together”.
LA foi uma encontro consigo mesmo do cinema de Varda. As imagens davam-se conta desse reconhecimento, vibravam com ele. As imagens e também as palavras, a musicalidade de uma enunciação, as possibilidades de aventura e de inclusão que abriam. O vigoroso Mur Murs — filme decisivo para o street artist JR — é um receptáculo ávido de energia, faz-se colagem e caleidoscópio. Visages Villages (a tradução portuguesa, Olhares, Lugares, interrompe a continuação de uma melodia...) promove o que aprendeu.
“A maior parte das vezes não tenho plano”, conclui Varda. “Espero, espero que algo me empurre, uma espécie de emergência. Por exemplo, quando descobri que havia mulheres jovens vagabundas on the road, e não apenas homens, e que uma delas tinha sido encontrada morta, atirei-me ao assunto e fiz um filme [Sans toit ni loi, 1985]. Escrevi Le Bonheur (1965) em dois dias. Tento concretizar o filme o mais perto possível do momento em que pensei nele. Há cineastas que esperam dois ou três anos para arranjarem dinheiro para os seus projectos. Não tenho essa coragem. Preciso de fazer depressa, preciso de estar na exactidão do momento. Quero que o filme saia a partir do nada e que a inspiração me empurre.”
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E a morte, Agnès? Já com os gravadores a desligarem-se, ela diz, serena: “Dying in peace is my dream”.