Dona Emília, uma casa longe de casa
Lá numa cidade cheia de cor/ Nasceu um dia uma casa de hóspedes/ Bem conhecida p’la amizade/ Pela alegria e p’la bondade.
“Lá num país cheio de cor/ Nasceu um dia uma abelha/ Bem conhecida p’la amizade/ Pela alegria e p’la bondade”. À porta da tabacaria, a música da Abelha Maia ouvia-se cada vez que uma moeda caía na ranhura e uma criança se empoleirava na maquineta, deixando-se embalar. Algumas décadas depois, naquele canto da Praça da República, em Viana do Castelo, existe outro mundo encantado — ilustrado e musicado — com lenços dos namorados, flores comestíveis e pratos polvilhados de ouro, um cavalo e uma casa de hóspedes que é uma “casa longe de casa”.
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“Lá num país cheio de cor/ Nasceu um dia uma abelha/ Bem conhecida p’la amizade/ Pela alegria e p’la bondade”. À porta da tabacaria, a música da Abelha Maia ouvia-se cada vez que uma moeda caía na ranhura e uma criança se empoleirava na maquineta, deixando-se embalar. Algumas décadas depois, naquele canto da Praça da República, em Viana do Castelo, existe outro mundo encantado — ilustrado e musicado — com lenços dos namorados, flores comestíveis e pratos polvilhados de ouro, um cavalo e uma casa de hóspedes que é uma “casa longe de casa”.
Descobre-se a Dona Emília se se seguir o cheiro das bolas de berlim da Natário, confeitaria onde Jorge Amado se inspirou para uma das personagens do seu romance Tocaia Grande (Capitão Natário é o “capitão de doces e salgados, comandante do pão-de-ló, mestre do bem-comer”). A entrada da casa de hóspedes fica logo ali, do outro lado da rua Manuel Espregueira. E começa aí o slow check in, o momento em que os anfitriões se apresentam e apresentam, piso a piso, divisão a divisão, projecto a projecto, peça a peça, as partes que fazem o todo, um edifício centenário de três frentes, um espaço expositivo e performativo, uma casa com “oferta internacional numa cidade supertradicional”.
Nuno Freitas e Rute Esteves, dois dos vianenses que se deixam ir no lema “há mar e mar, há ir e voltar”, começaram no Porto. “Dois amigos foram morar juntos e, duas semanas depois, estava a sobrar um quarto”, brinca Nuno. O trabalho de arquitectura (dele) e de dança (dela) “estava complicado” e o dinheiro extra do quarto sobejante serviu de alavanca. “Começamos a gostar da experiência, de receber em casa pessoas, que passavam a ser amigos, de ir com eles a uma tasca, de lhes mostrar a nossa cidade.” O desejo de estar próximo da natureza conduziu-os a um projecto de turismo rural em Vila Verde e, mais tarde, esse mesmo isolamento levou-os a regressarem à cidade natal, que tem, segundo Rute, uma “melhor qualidade de vida” e um ritmo que lhes interessa — e espaço para o cavalo Jardel. “Por ir devagarinho acaba por ser mais sustentado.”
Falta uma apresentação, a de Dona Emília (avó de Nuno), filha de Júlia Marinho e Alfredo da Silva, nascida em 1927, em Ponte de Lima. “Milinha”, que viajou cedo para Viana na companhia de quatro irmãos, cantou fado, fez revista, casou-se com António Freitas, o seu “Toninho”, em 1954 e teve três filhos, “três amores”. “Cozinheira exímia na gastronomia regional, costureira e modista, foi uma excelente administradora na gestão doméstica. Para além do governo da casa e da educação dos filhos, alugou quartos durante vários anos a diversos empregados do comércio e profissões liberais que passaram a ser considerados como família. Viveu grande parte da sua vida sob a ditadura que combateu, fazendo de sua casa um abrigo para resistentes e baluarte pela igualdade de direitos das mulheres.”
Esta casa de hóspedes é para se ir sentindo ao ritmo das nuvens que vão passando pela clarabóia que cobre a ampla escadaria de madeira. No terceiro piso convivem três suítes com três vistas privilegiadas para a “Praça” da República, para o museu do “Traje” e para Santa “Luzia” — e mais uma galeria privada para hóspedes com a exposição Amor Cruzado, uma colectiva com seis artistas ilustradores (Célia Esteves, Ivo Hoogveld, Joana Estrela, Júlio Dolbeth, Lord Mantraste e Rui Vitorino Santos) e seis bordadeiras (Alice Augusto, Céu Cunha, Cristina Lopes, Conceição Pinheiro, Inês Mendes e Vera Cancela). No primeiro, há mais três quartos duplos com as mesmas três vistas (Praça, Traje e Luzia), mas mais versátil na sua tipologia.
Todos os espaços desta casa, do hall de entrada (iluminado por um candeeiro/colchão de molas sobre uma pequena vitrina onde se exibem co-criações da casa, coisas que se usam lá dentro e que se podem levar lá para fora: sabonetes naturais, individuais em linho e junco, chocolate Dona Emília/Avianense) até cada um dos quartos (obrigatório: portadas decapadas como cabeceira da cama, sofá e secretária nórdicos, candeeiro de pé, carrinho de mercadorias industrial transformado em mesinha de apoio, charriot reinventado) contam com as colaborações da Loja Laranja Mobiliário - Möbel e da Noía na criação de novas peças de mobiliário, da OCR (Oficina de Conservação e Restauro) no restauro de algumas peças de mobiliário e do projecto Gur na abordagem contemporânea aos tradicionais tapetes de trapos portugueses.
O mais provável é que “a ligação emocional” de que Rute tanto fala aconteça no hall, ainda sobre o mosaico hidráulico (junto às exposições temporárias com porta aberta das 15h às 19h a partir de Março). Acontecerá certamente quando o visitante der de caras com a magnífica “sala triangular” — que já é um título de um tema do projecto Desligado —, quando for de chinelos Avenida acima desfrutar da piscina, quando descobrir a cozinha e a antiga bancada de trabalho das oficinas da Escola de Monserrate onde uma vez por semana acontece um momento de “degustação ao som de vinil numa casa de família” (sexta-feira à hora do almoço na época baixa; ao jantar de sexta e sábado a partir de Maio).
Por esses dias, tem a palavra a chef Nita, responsável pela transformação de uma página do seu caderno de ilustrações num momento gastronómico de slow food e foodpairing, emparelhando sabores ao ritmo de uma colecção de discos. Natural de Moçambique, Nita (um ano no Nepal, um ano na Toscana, quatro em Paris, oito na Ericeira) passou a vida a cozinhar, a fazer joalharia e ilustração. Foi chef privada de Steve McNamara até se cansar de ondas tão altas. A Fugas provou a sua Ementa da Felicidade (quinoa com cebolada de groselha e mexilhão, caixa de massa folhada com arroz pintado de pernil de porco, crumble de maçã e arando com creme d’ovo). Coloca ouro (“mesmo ouro”) e corações em tudo. “Vim ter à cidade certa.”
A Fugas esteve alojada a convite da Dona Emília