Ainda é possível reunificar a Coreia?
O objectivo de reunificar a península existe desde o fim da II Guerra Mundial, mas o que isso implica tem significados diferentes a Sul e a Norte do Paralelo 38. Depois de seis décadas separadas, a integração das Coreias seria um empreendimento único na História mundial.
“Têm mesmo de se reunificar?” Foi em Novembro do ano passado que o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, lançou esta pergunta simples, durante um encontro privado com o homólogo sul-coreano, Moon Jae-in. Nos meses anteriores, a Coreia do Norte tinha testado dezenas de mísseis balísticos, alguns com capacidade para atingir o território norte-americano, e a bomba nuclear mais potente do seu arsenal, tornando-se na principal preocupação do chefe da Casa Branca. A agressividade do regime norte-coreano tornou a convivência na península quase insuportável. As relações entre as duas Coreias foram reduzidas a zero e as provocações tornaram-se diárias – os discursos belicistas de Kim Jong-un encontravam resposta nas emissões de propaganda sul-coreana junto da fronteira com o objectivo de semear discórdia entre a população.
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“Têm mesmo de se reunificar?” Foi em Novembro do ano passado que o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, lançou esta pergunta simples, durante um encontro privado com o homólogo sul-coreano, Moon Jae-in. Nos meses anteriores, a Coreia do Norte tinha testado dezenas de mísseis balísticos, alguns com capacidade para atingir o território norte-americano, e a bomba nuclear mais potente do seu arsenal, tornando-se na principal preocupação do chefe da Casa Branca. A agressividade do regime norte-coreano tornou a convivência na península quase insuportável. As relações entre as duas Coreias foram reduzidas a zero e as provocações tornaram-se diárias – os discursos belicistas de Kim Jong-un encontravam resposta nas emissões de propaganda sul-coreana junto da fronteira com o objectivo de semear discórdia entre a população.
Neste contexto, a pergunta aparentemente inocente de Trump pareceria até razoável. Porém, a realidade é bem mais complexa, e Moon – que é filho de refugiados norte-coreanos que fugiram para o Sul – teve de perder alguns minutos com uma lição de História para responder “sim” à pergunta que o Presidente dos EUA lhe tinha colocado, conta o jornal americano The Washington Post.
A cada ciclo de reaproximação diplomática, como o que se inicia agora com a participação da Coreia do Norte nos Jogos Olímpicos de Inverno organizados pelo Sul, o tema volta a pairar. Apesar dos altos e baixos nas relações entre as duas Coreias nas últimas seis décadas, a “reunificação pacífica” nunca esteve fora dos objectivos de ambos os governos, embora ninguém saiba bem em que moldes – nem se pode realmente vir a ser pacífica.
Praticamente desde que a península foi dividida, como consequência da II Guerra Mundial, que a reunificação foi um desígnio. Kim Il-sung, o líder do Partido dos Trabalhadores da Coreia, colocado à frente dos destinos do sector norte da Coreia, controlado pela União Soviética, lançou em 1950 uma ofensiva precisamente com esse objectivo, acabando por abrir as portas à Guerra da Coreia. Os combates entre norte-coreanos, apoiados pela China, e as forças norte-americanas, que controlavam o sul da península, arrastaram-se até 1953, quando um armistício fixou a divisão que persiste até hoje.
Nas mentes dos líderes a Norte e a Sul do Paralelo 38, este arranjo seria sempre temporário. A identidade nacional coreana está ancorada nos séculos de resistência face a opressores estrangeiros, nomeadamente a China e o Japão, que foram ocupando aquele território. Nas constituições das duas Coreias está abertamente fixado o objectivo da “reunificação pacífica” e ambos os governos têm ministérios com esta pasta, que também acumulam com as relações inter-coreanas.
Nas últimas seis décadas, foram várias as tentativas de desenhar os moldes desta reunificação. O principal progresso aconteceu no início dos anos 1970, após negociações intensas, com a assinatura de um comunicado conjunto – o primeiro subscrito pelos dois governos após a partição – em que foram elaborados os três princípios que deveriam nortear a reunificação: a independência em relação a poderes estrangeiros, o carácter pacífico do processo e a “grande unidade nacional”.
Mas rapidamente se percebeu que as divergências quanto à interpretação destes princípios eram insanáveis, especialmente depois de, em 1972, o general Park Chung-hee – pai da futura Presidente Park Geun-hye, destituída no ano passado – ter instaurado uma ditadura militar em Seul. A iniciativa não saiu do papel, mas a aproximação diplomática rendeu alguns frutos que se mantêm até hoje, como o estabelecimento de uma linha de comunicação directa que foi recentemente reactivada, após quase um ano de interrupção.
O progresso mais recente neste âmbito aconteceu em 2000, durante uma época de melhoria de relações, em que se fixou a hipótese de um futuro Estado unificado de acordo com o modelo federal. Mas, mais uma vez, o problema é como lá chegar.
Dois mundos diferentes
“As diferenças ideológicas fundamentais entre as duas Coreias tornam difícil conceber uma estratégia de reunificação credível”, diz à CNN a analista da Economist Intelligence Unit, Anwita Basu. Quando foi assinado o primeiro memorando sobre a reunificação, no início dos anos 1970, os dois países não eram tão diferentes como hoje. Ambos eram governados por líderes autoritários, as liberdades da população eram reduzidas e as suas economias eram fechadas e muito controladas pelo Estado. No entanto, a democratização dos anos 1980 e a liberalização económica que se seguiu revolucionaram a Coreia do Sul.
Hoje, a península não podia ser partilhada por dois países mais diferentes. Apesar de ter uma área menor, a população da Coreia do Sul é praticamente o dobro da do Norte, o PIB per capita é vinte vezes maior para um sul-coreano e a esperança média de vida tem uma diferença de dez anos entre cada lado do Paralelo 38. Para além disso, a Coreia do Sul é hoje uma democracia consolidada, com vários partidos e uma imprensa forte, bem como um eleitorado cada vez mais exigente – como ficou provado no caso da destituição da Presidente Park.
“Nunca houve uma época em que o objectivo oficialmente declarado – uma unificação pacífica, gradual, negociada, e recíproca – pudesse sequer ser remotamente possível”, disse ao jornal britânico The Guardian o especialista da Universidade de Kookmin em Seul, Andrei Lankov.
Eventualmente, um dos sistemas políticos em vigor teria de se impor – e isso traduzir-se-ia num conflito armado. Um dos cenários mais benevolentes é o colapso interno do regime norte-coreano, por via de uma revolução que depusesse o líder, e abrindo caminho a um novo regime interessado numa reunificação sob a égide de Seul. Porém, mesmo nessa situação, não há garantias de que a violência pudesse ser evitada, fosse através de uma intervenção externa por parte da China (para impedir a emergência de um Governo pró-Washington em toda a península) ou de guerrilhas organizadas.
“Se o colapso da Coreia do Norte acontecer, será à maneira alemã, mas muito mais violento, muito mais sangrento, muito mais alucinante do que qualquer coisa que tenhamos visto na Europa”, acrescenta Lankov.
Neste contexto, mesmo que a reunificação pacífica pudesse ser concretizável, os desafios que a nova Coreia unificada iria enfrentar seriam colossais. Os cálculos dos custos económicos que a integração iria acarretar variam entre os 40 mil milhões de euros e os 2,5 biliões. A experiência histórica mais aproximada é a reunificação alemã, mas, apesar das diferenças que existiam entre os dois lados do muro, entre as Coreias o abismo é ainda mais profundo. E não se resume à economia.
Sumo ou água doce?
“Neste momento, médicos norte e sul-coreanos não podem realizar uma cirurgia juntos e os arquitectos não podem fazer um projecto em conjunto”, dizia em 2010 ao Financial Times Han Yon-ung, que na altura iniciava uma compilação de palavras diferentes para publicar um dicionário “unificado” de coreano. O idioma oficial nas duas Coreias é o mesmo, mas décadas de padrões de desenvolvimento divergentes e influências assimétricas deixaram marcas nas formas como norte e sul-coreanos comunicam.
A Sul, a população integrou muitas palavras anglo-saxónicas, fruto da influência cultural norte-americana, enquanto o Norte permaneceu mais impermeável a importações – com algumas excepções para o mandarim ou o russo. As diferenças provocam situações embaraçosas que os dissidentes norte-coreanos costumam enfrentar. Os sul-coreanos têm um termo para “sumo”, mas os norte-coreanos utilizam uma expressão que significa literalmente “água doce”, e que os denuncia de imediato. Vários norte-coreanos que fugiram para o Sul relatam episódios de discriminação assim que os seus interlocutores notam as diferenças na língua.
Apesar das dificuldades, as sondagens mostram que os sul-coreanos continuam a desejar a reunificação. Porém, entre as gerações mais novas, o sentimento parece estar em recuo, com uma grande quantidade de jovens a recear o impacte económico e a competitividade pelo emprego que a reunificação iria provocar.
A favor da unificação estão os laços familiares e sentimentais. A guerra deixou milhares de famílias separadas e a reunificação é a única maneira para que voltem a ser reunidas. E, depois, há sempre a ideia de um futuro melhor, como demonstrava numa reportagem do Korea Herald uma sul-coreana de pouco mais de dez anos: “Quero trabalhar como bióloga numa Coreia unificada, porque ouvi dizer que muitas crianças norte-coreanas ficam doentes por não terem comida suficiente.”