Não mostrou agressões e dizia ser feliz. Por isso Carrilho foi ilibado
Ministério Público vai recorrer de absolvição de ex-ministro da Cultura e Bárbara Guimarães também. Juíza diz que uma mulher auto-suficiente e determinada protegeria os filhos de um homem violento.
Se a apresentadora Bárbara Guimarães queria ver o ex-marido Manuel Maria Carrilho condenado por violência doméstica devia ter ido ao Instituto de Medicina Legal mostrar as mazelas resultantes das agressões de que dizia ser vítima.
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Se a apresentadora Bárbara Guimarães queria ver o ex-marido Manuel Maria Carrilho condenado por violência doméstica devia ter ido ao Instituto de Medicina Legal mostrar as mazelas resultantes das agressões de que dizia ser vítima.
Esta é uma das conclusões da sentença proferida nesta sexta-feira no Campus da Justiça, em Lisboa, em que o antigo ministro da Cultura foi ilibado tanto de ter humilhado a apresentadora televisiva, como de lhe ter dado pontapés nos últimos anos de casamento. A sentença fundamenta-se também nas numerosas entrevistas em que Bárbara Guimarães dava uma imagem idílica da sua vida familiar. Ministério Público e queixosa vão recorrer.
A única coisa por que Carrilho foi nesta sexta-feira condenado foi por difamar a ex-mulher, quando aludiu publicamente aos seus alegados hábitos alcoólicos. Um deslize que não lhe irá sair barato — 3900 euros entre uma indemnização à ex-mulher e uma multa fixada pelo tribunal —, mas que a juíza Joana Ferrer justifica de alguma forma com o facto de após a separação, em 2013, o ex-governante ter ficado três semanas impedido por Bárbara Guimarães de ver os dois filhos do casal.
Durante o julgamento, que começou em Fevereiro de 2016, tanto o advogado da apresentadora como o Ministério Público pediram um novo magistrado para este processo, por entenderem que Joana Ferrer demonstrava uma parcialidade favorável ao antigo governante socialista. E a própria acabou também por o fazer, mas sem sucesso: o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu mantê-la no caso.
O retrato que fez da personalidade do arguido difere em muito daquele que foi traçado pelos seus colegas magistrados que, no final de Outubro, o condenaram a uma pena suspensa de quatro anos e meio exactamente pelo mesmo crime, violência doméstica contra a mulher. Joana Ferrer fala de “uma pessoa perfeitamente integrada na sociedade, muito querido dos seus alunos e com obra reconhecida”, enquanto os outros juízes descreveram Carrilho como tendo nalgumas ocasiões “uma postura agressiva, violenta, ameaçadora, autoritária e totalmente desrespeitadora” para com a mãe dos filhos.
A única diferença é que o primeiro julgamento dizia respeito a factos passados já após a separação do casal, enquanto o que terminou nesta sexta-feira era referente aos dez anos de matrimónio.
Uma mulher auto-suficiente
A acusação alegara episódios em que Bárbara Guimarães fora pontapeada, empurrada e humilhada pelo marido, que teria chegado a dizer que ia acabar com a vida dela e com a dos filhos e suicidar-se de seguida. Mas nesta sexta-feira o tribunal entendeu que nada disso ficou provado, uma vez que a apresentadora só apresentou fotos das equimoses provocadas por supostas agressões. “Um relatório pericial de dano corporal seria, seguramente, um fortíssimo e decisivo elemento de prova a apresentar num julgamento por crime de violência doméstica”, observou Joana Ferrer, a quem o argumento da vergonha que a apresentadora dizia sentir não comoveu. A partir do momento em que decidiu desencadear uma queixa-crime contra o marido por violência doméstica sabia que o caso viria necessariamente a público, referiu a juíza.
O advogado de Bárbara Guimarães, Pedro Reis, diz que a queixosa ficou indignada e ele próprio profundamente chocado com aquilo que classifica como preconceito da juíza, uma vez que é comum que as vítimas de violência doméstica não se exponham publicamente, recorrendo ao Instituto de Medicina Legal.
Não foi apenas esta a única incoerência que a Justiça viu no comportamento de Bárbara Guimarães. Joana Ferrer disse também que, sendo ela uma mulher destemida e dona da sua vontade, não é plausível que na sequência das agressões tenha continuado com o marido, em vez de se proteger a si e aos filhos. E mostrou estranheza pelo facto de, apesar de dizer que sentia pavor do marido em certas alturas, se ter mudado após a separação para uma casa próxima da dele. Ainda hoje moram “apenas separados por escassas centenas de metros”, assinalou, apesar de ser, além de determinada, uma pessoa auto-suficiente do ponto de vista financeiro.
A juíza estranhou também as numerosas entrevistas que Bárbara Guimarães deu, nas quais descrevia a vida feliz que tinha com o marido e os filhos entre 2011 e 2013, “período temporal em que, segundo as suas actuais declarações, já estaria a ser sujeita a agressões psicológicas e físicas”. Quando as analisou, Joana Ferrer não teve dúvidas: foram “declarações espontâneas, dotadas de genuinidade e verosimilhança, nas quais não são perceptíveis — particularmente nas registadas em vídeo — quaisquer vestígios de simulação”.
O tribunal considerou muito relevante o depoimento em tribunal de um psiquiatra que tratou Carrilho após a separação, colega de curso do irmão do ex-governante, e que lhe diagnosticou uma depressão profunda. Quando chegou à primeira consulta, recordou, Carrilho não só já tinha pensado em matar-se, como “já tinha ideia de como iria executar o suicídio”.
O professor universitário de 66 anos já no ano passado tinha sido multado em 1800 euros noutro processo judicial, por ameaças de morte a uma amiga da apresentadora televisiva. Sempre negou tudo. Também foi condenado em 2015 por difamação a outra multa de 31.400 euros, por ter dito em entrevistas que Bárbara Guimarães tinha sofrido abusos sexuais do padrasto. Joana Ferrer desvaloriza estes antecedentes criminais por terem sucedido “apenas no contexto” do conflito com Bárbara Guimarães e contra “um grupo de pessoas circunscrito”.
O sofrimento dos filhos
Durante a leitura da sua decisão, na qual Bárbara Guimarães não esteve presente, a juíza pediu ao casal para se centrar no sofrimento dos filhos: “Este tribunal não consegue alhear-se e apela, se tal lhe for permitido, em nome das duas crianças que sofrem no meio de todo este conflito que não dá sinais de querer abrandar. Descentrem-se um pouco de vós, adultos, e atentem no sofrimento destas crianças.”
Reagindo à decisão, Carrilho disse que chega finalmente ao fim para ele “um calvário de quatro anos em que tantas falsidades se espalharam, assentes em provas que não existiam”, porque Bárbara Guimarães era “uma falsa vítima”, acrescentou. Seja como for, o seu advogado tenciona recorrer da condenação por difamação.
Ciente da polémica que a absolvição poderá vir a gerar, a juíza terminou a leitura da sentença com uma explicação: “Os tribunais de hoje não são os tribunais plenários de má memória, onde as pessoas entravam já condenadas.”