Amarante, o “palco natural” da música
Música erudita, tradicional, de garagem. Ela já lá estava, mas não havia consciência dos seus desdobramentos. Porém, agora que a UNESCO a classificou como “Cidade da Música”, Amarante põe a casa em ordem e exibe-se como comunidade musical. Fomos aos bastidores descobrir quem lhe dá vida e quem lhe dará futuro. Dentro e fora da tradição.
Em Amarante, falta de oferta musical é uma queixa quase impossível de se ouvir. Seja da parte do público, seja da parte dos praticantes, que tantas vezes se confundem. Suéli Cunha, 24 anos, conta como teve “acesso fácil” — “a música bate-nos à porta, é mais fácil explorar a parte musical”. Se no seu prédio a música é uma constante porque aí vivem muitos membros da Orquestra do Norte (desde 2001 sediada em Amarante), ela própria tem um percurso musical que mistura as várias valências da cidade. Estudou órgão e piano quando era pequena, “os dois na idade certa, a nível de sensibilidade pessoal”, depois passou para a guitarra e fez parte de uma banda local. Como sempre gostou de cantar — “É a minha forma de expressão mais pessoal” —, faz agora parte do Coro Polifónico de Amarante (fundado em 2014), conta a terapeuta holística e coach mentor. “Tudo para dizer que é fácil desenvolver talentos aqui. Há onde e como as coisas acontecerem.”
Não foi, portanto, por acaso que a cidade foi reconhecida no final de Outubro como Cidade Criativa da UNESCO na área música, juntando-se a Idanha-a-Nova. Amarante faz agora parte de uma rede que “visa promover a cooperação entre cidades que identificam a criatividade, a arte e a cultura como um dos factores estratégicos para o desenvolvimento urbano sustentável, colocando as indústrias culturais e criativas no centro da sua acção governativa”. E ser uma cidade criativa é um processo dinâmico, “é colocar a área da criatividade a ser pensada e trabalhada como eixo estratégico para o desenvolvimento da cidade”, explica Aida Guerra, responsável pela candidatura de Amarante. “Vamos criar algo de novo, não é só preservação como é mais comum na UNESCO”, sublinha. Mas há também que preservar, porque a integração na Rede de Cidades Criativas (RCC) não veio do nada.
Quando a autarquia decidiu candidatar-se à RCC procedeu a uma “prospecção local”, para perceber que área se destacaria. Falando com agentes, analisando as bases, descobriram-se “muitas pessoas já com trabalho desenvolvido, de muito valor”, na área da música. “Foi uma dinâmica interessante de auto-conhecimento”, assume Aida, pois “o município tem contactos com grande parte das instituições, mas não havia consciência clara da multiplicidade existente”. O vereador André Costa Magalhães, responsável pelo pelouro do Turismo, reforça essa ideia: “A música já existia, mas agora passou a ser uma identidade muito mais clara para todos. E agora há um catalisador para tornar esse ecossistema criativo, interactivo e muito vivo do concelho aberto à população.”
Com inegáveis pergaminhos culturais, Amarante é berço, entre outros, de Teixeira de Pascoaes e Amadeo Souza Cardoso, e, naturalmente, mais associada à literatura e à pintura. Mas na prática tudo se baralhou. “Sempre tive muita curiosidade em perceber o passado, o nosso legado”, afirma Gustavo Carvalho, músico e produtor musical, “e a escrita e a pintura são esse legado”. “Percebi então que nós somos os agentes do que será o legado daqui a uns anos.” Essa é uma reflexão que tomou a comunidade musical de Amarante de assalto. “Percebemos logo o interesse existente”, conta Aida. “Na candidatura tivemos a colaboração de 40 agentes, com graus de envolvimento diferentes, agora temos mais de 60. A candidatura abriu a comunidade, mostrou o que está a ser feito” Foi assim que a rede cresceu e “vai crescer ainda mais”. Com a dinâmica de “música erudita, tradicional e de garagem, somos um palco natural”, avalia André Magalhães.
Passado e futuro: o legado presente
A cada regresso a Amarante o mesmo encontro inevitável com a ponte e a igreja (e convento) de São Gonçalo, enquanto o rio Tâmega embala guigas – diz-me, Amarante, tens postal-mais-postal do que este? O reencontro, então, mas desta vez com entrada na igreja de São Gonçalo quase directa ao coro alto e ao órgão de tubos ibérico. É muito por culpa dele que estamos aqui — quatro órgãos de tubos ibéricos em Amarante não podiam passar despercebidos e em 2012 fundou-se a Escola de Música Sacra de Amarante (EMSA), uma das poucas que existem no Norte do país. E “a mais terrena”, com alunos que trabalham ou estudam, sublinha Bruno Teixeira, professor de órgão, que constitui um dos “ramos” da EMSA — o outro é o canto. “Um dos objectivos principais desta escola é ajudar a vigararia de Amarante a suprir as insuficiências que possa ter na música litúrgica”, explica.
E é dos diversos coros da vigararia de Amarante que chegam “a maioria” dos alunos da escola (cerca de 15). O mais jovem entrou com seis anos, com a irmã e o avô, “por arrasto”, mas quatro anos depois continua na escola abertamente mais voltada para o órgão litúrgico: “Notamos que é uma das áreas mais desprezadas a nível nacional, mesmo no ensino universitário.” Nesta escola, as salas de aula são as três igrejas de Amarante que têm órgãos de tubos ibéricos, instrumentos que “fazem parte do património e cultura portuguesa”.
Não é à toa que falamos da música sacra. A evolução da música em Amarante tem na sua base uma forte componente religiosa, também esta na génese da cidade e na concentração de igrejas e mosteiros. Ao longo dos séculos, a música sacra foi veículo, documentado, de expressão, a juntar-se à música profana, popular, que nunca foi registada mas sobrevive na tradição dos “zés pereiras” (os grupos de bombos que pululam em Amarante) e nos ranchos folclóricos. A partir da segunda metade do século XIX, surgem as bandas filarmónicas e já no século XX vários agrupamentos que não só divulgam a música como a ensinam. Na viragem do milénio, a cidade floresce com escolas de música, grupos e a Orquestra do Norte instala-se — reflexo e catalisador dessa cidade musical.
São, portanto, muitos séculos de música, nas suas declinações erudita, etnográfica e amadora, que convergem em Amarante. E muita da música da cidade começa, ou passa, pelo Centro Cultural de Amarante (CCA), a antiga cadeia comarcã. No palco do CCA, uns poucos elementos da Orquestra Energia de Amarante (OEA) Fundação EDP tocam Para sempre, dos Xutos & Pontapés. “É totalmente diferente, falta a música”, lamenta Sónia, referindo-se à ausência de quase todos os colegas nesta espécie de improviso. São 58 elementos na OE, estão apenas quatro a tocar (dois violinos, um violoncelo e uma flauta transversal), com Vânia Rodet na direcção perante a concentração das executantes. Concentração é elemento-chave, da música e do antes e do depois da OEA. “No início, não conseguia estar 15 minutos concentrada”, diz Elsa, 18 anos, violoncelo. Sónia, 17 anos, violino, concorda: “Tudo mudou, até na escola, concentro-me muito. A música traz tranquilidade.” Vânia Rodet, directora musical da OEA, confirma: “Quando começámos, eram mais agitados, era quase necessária uma escolta. Agora, fazem tudo sozinhos, carregam as estantes, afinam os instrumentos.”
Vânia Rodet assumiu a direcção musical da OEA desde a sua criação, em 2010 (e com direcção artística e pedagógica da Casa da Música desde 2015). Foi a primeira a ser fundada no Norte de Portugal e é baseada no modelo do Sistema Nacional de Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela (de onde saiu, por exemplo, o “maestro-prodígio” Gustavo Dudamel) de inclusão social através da música. O objectivo é “a reintegração em ambiente escolar dos jovens que se encontram em maior vulnerabilidade educativa e social”.
Dos elementos que aqui estão, quase todos querem seguir os estudos na universidade — Elsa é a única que já procura emprego, na área de turismo (recepção) — e Teresa, 18 anos, flauta transversal, até está a fazer melhoria de notas, quer seguir serviço social. “Cheguei a pensar em seguir música, mas era preciso conservatório e eu não posso”, afirma. Quando veio para a orquestra “queria violino ou clarinete” (ficou com a flauta “sem saber o que era”), depois percebeu que “só queria tocar música”. “A orquestra é como uma grande família, há valores que aprendemos e a nossa auto-estima melhora, fazes parte de um projecto.” “E o facto de as pessoas gostarem de ouvir faz-nos sentir valorizados, orgulhosos”, acrescenta Elsa, que está na OEA desde o seu início. “Andamos a espalhar a cultura da música por muitos sítios”, dizem, “São Paulo, Casa da Música, Aula Magna, Gulbenkian, Mirandela...” E uma cultura musical variada. “Tocamos um pouco de tudo para não sermos rotulados.” O pop-rock é o que mais gostam. “E A Grande Porta de Kiev?”, pergunta Vânia Rodet — pelas reacções foi memorável.
O ensino na OEA faz-se por imitação, mas há jovens da orquestra que depois seguem o ensino articulado de música. E o Centro Cultural de Amarante (CCA), além de ser a casa (e promotora) da OEA, é também a casa do ensino artístico especializado de música e dança na cidade. “Temos contrato de patrocínio do Ministério da Educação (ME) com autonomia pedagógica. Funcionamos em articulação com dois agrupamentos”, explica António “Taí” Laranjeira, o director pedagógico. “É como um conservatório.” O difícil é encontrar equilíbrio entre o público e o privado (com a mesma oferta): “O espaço já é pequeno para a procura do ensino oficial.” De tal forma que se faz selecção — “Há que ter talento para entrar” para o primeiro grau, que acontece no 5.º ano de escolaridade (para alunos do primeiro ciclo há aulas de iniciação — “já estão no circuito do ME”). A partir daí, os alunos podem ter aulas articuladas até ao 9.º ano, gratuitas; depois, se quiserem continuar até ao 12.º ano (o que já dá direito a diploma), passam a regime complementar, o que significa um pagamento — “Se quiserem seguir de forma gratuita têm de ir para outros conservatórios. Há uma fuga significativa no 9.º ano”, nota Taí Laranjeira, que gostaria de ter esta oferta “como oficial”. Certo é, sublinha Taí Laranjeira, que “o investimento no ensino artístico já começou a dar frutos: as melhores turmas regulares são de alunos que frequentam música”.
Cruzamentos musicais
Hoje, existem oito escolas de música em Amarante com cerca de 900 alunos, mas Gustavo Carvalho não estudou música. Tem 30 anos e regressou há poucos a Amarante, de onde tinha saído para fazer o 12.º em Matosinhos. Nessa “ausência”, tornou-se Poeta de Rua (hip hop) e produtor musical. Foi nessa condição que voltou à cidade para montar o estúdio Laboratório Musical, que funciona na Casa da Juventude e onde as bandas locais podem ensaiar das 19h às 24h de forma gratuita. É um observatório privilegiado para a música que se vai fazendo pela cidade à margem de escolas, orquestras, coros. “Há muito hip hop e rock, essencialmente. Depois, alguma música erudita, duos de viola e violino, piano e violino...”, descreve.
O seu estúdio pretende funcionar como uma porta giratória para a convergência das várias artes que contribuem para a música. Se uma banda vier a Amarante gravar, fazer as fotografias e os videoclips, terá o seu sonho realizado. Vê tudo mais ágil em Amarante, diz que a mais-valia da cidade é a proximidade. “Em 20 quilómetros tens tudo e muito bom: orquestra, instrumento, estúdios, produção, aliado à capacidade artística na literatura, pintura, fotografia...”
Gustavo não tem dúvidas de que “a cidade da música”, como gosta de repetir, já “é um organismo muito forte e vivido”. O Band’Arte é um bom exemplo, aponta. O festival de música de que ele é o mentor e produtor é dirigido a músicos, bandas e DJ de Amarante que vêem algumas das suas músicas reunidas em CD anual. Contudo, o Band’Arte, organizado pela autarquia, não se resume a dar visibilidade às bandas. “Passámos para um nível mais alto. Queremos dar competências e experiências às bandas locais, prepará-las para o mundo real.” O impacto do Band’Arte fez muitas bandas saírem do armário. “Há quatro anos, os bares não sabiam que havia bandas aqui e iam buscar fora e o contrário também acontecia. Agora há bares a usufruir do que é feito em Amarante e mais cuidados nos espaços e equipamento.”
O Band’Arte não é o único festival em Amarante. Há vários festivais, inclusive internacionais, e eventos que se distribuem ao longo dos meses e em vários locais, assegurando que em Amarante a oferta musical é constante — o Mercado da Música, que este ano encolheu, está a decorrer durante o mês de Dezembro, integrado no Mercado de Natal. Os festivais e eventos de música mobilizam anualmente cerca de 70 mil pessoas na cidade. No entanto, a autarquia não os vê apenas como montras, mas como elementos de profissionalização para as entidades locais. “Capacitá-las”, resume Aida Guerra, “para que possam criar outra autonomia” — até porque “há agora coisas que acontecem completamente à margem da autarquia, nós só apoiamos”, nota André Magalhães. E isso é também parte da filosofia da UNESCO, que cada elemento se torne mais autónomo no que faz, mesmo financeiramente. Ainda que, refere Aida Guerra, haja “muita coisa que não precisa de dinheiro, só de trabalho conjunto”. E, por isso, “o centro e o coração da candidatura foi e é aglutinação e posterior monitorização dos agentes”, assume Aida.
Afinal, uma das missões que a autarquia gostaria de assumir é a de proporcionar fusões, cruzamentos, que tragam um valor acrescentado a cada projecto e a projectos conjuntos. “Queremos juntar as várias peças e dar dinâmica, revelar a cultura através de criação, co-criação e cooperação”, declara André Maglhães. “A nossa proposta para a rede é valorizar o que temos e apostar nas novas tendências.” Tal fortalecerá a cidade musical de modo a inseri-la “num contexto de intensa cooperação internacional, tanto no âmbito da Rede, como junto de algumas cidades de África e América Latina, por modo a fazer de Amarante um laboratório de experimentação, de cooperação e de transição, baseado no seu ecossistema criativo, profissional, empresarial e inclusivo ligado à música”, lê-se no programa da candidatura. O Festival MIMO, que veio do Brasil para assentar arraiais aqui e que com apenas duas edições já se tornou incontornável, é disso um paradigma. Não só é uma colaboração internacional, como cruza a música com cinema e poesia.
O extraordinário caso de um renascimento
Há outros cruzamentos a acontecerem em Amarante que renovam a tradição. Quando os dedos de Hélio se movem na viola amarantina para os primeiros acordes de Nothing else matters, dos Metallica, é a renovação que se ouve. A versatilidade sonora é uma das características da viola amarantina — “O reportório é tradicional, mas tem capacidade para acompanhar qualquer tipo de música, a afinação adapta-se”, explica Eduardo Costa —, mas para não entendidos são os dois corações talhados que a tornam imediatamente reconhecível (apesar de variantes com esta decoração terem chegado aos Açores e ao Brasil). A lenda é antiga e ninguém a sabe melhor do que Eduardo Costa, que chegou com a sua viola braguesa a Amarante sem saber o que o esperava. Traz uma t-shirt onde se lê “Viola amarantina, apaixona-te de novo” e essa é a sua história. A da descoberta de um instrumento quase esquecido e a dedicação ao que chama o seu “renascimento”. “Foi muito rápido”, afirma, recordando a criação da associação Propagode em 2011 (uma espécie de segundo fôlego, já que Propagode havia existido na década de 1990 apenas como grupo musical). “O nosso primeiro interesse foi mostrar a viola amarantina”, conta, “mas logo apareceram 30 alunos”.
É na sede da Junta de Freguesia de São Gonçalo, numa rua inclinada no centro histórico, que a viola amarantina, de origem incerta (posterior ao século XVI) e durante décadas votada ao esquecimento, (também) faz o seu regresso. Na sala, há nove tocadores: de um lado os mais velhos, três, do outro os mais jovens, seis. A a aula é informal e quem está a tocar são os mais jovens, em redor de Hélio. Não é o professor, mas, aos 16 anos, é o braço direito dele — e quem o diz é Eduardo Costa, “o professor de todos os que trabalham com a viola amarantina”. “É um bom elemento para dar continuidade”, atreve-se.
A continuidade é uma obsessão para Eduardo Costa, mas essa parece já estar garantida. A Propagode, que dá aulas em três freguesia do concelho, tem cem alunos. Entre eles muitos jovens — e até crianças. Como as gémeas Leonor e Francisca, 11 anos, há três anos de viola na mão. “Vimos um concerto e começámos. O som é muito bonito, o desenho também.” Eduardo Costa parece não ter dúvidas: “Não vão deixar a viola nunca.” O talento, diz, está todo lá — são elas, muito sérias e compenetradas, que acompanham Hélio a tocar El Condor Pasa.
Agora há mais de 150 violas na cidade e a saírem de Amarante, depois de no final do século XIX e início de XX terem passado a ser construídas, sobretudo, no Porto. António Silva é o responsável por elas. “Estudámos juntos”, refere Eduardo Costa, “e ele desenvolveu as violas.”
Na sua oficina, um anexo escancarado na sua casa, António Silva recorda o desafio “do professor”. “Eu fazia cavaquinhos, a viola amarantina saiu pelo entusiamo dos Propagode.”. O “professor” pediu-lhe cinco violas. “Eu disse uma e vamos ver como corre.” Fez muitas tentativas, não aprendeu com ninguém. “Cheguei a abrir violas, ver os seus segredos. Agora estou satisfeito, são boas violas, em qualidade e quantidade.”
Por estes dias anda a fazer tampos. Ainda assim mostra-nos como faz os embutidos que se tornaram a sua imagem de marca (“duas voltas e um capricho” no braço da guitarra), “é um trabalho minucioso”, diz enquanto recorta a madeira com um x-acto.
Se essa é a sua imagem de marca, a marca que já deixou na viola amarantina é mais profunda. É que a viola amarantina “evoluiu muito, quem a tocava não sabia música”. Agora está mais sofisticada, mais delicada. António Silva está “sempre a inovar”, tem “de ser o Stradivarius da viola amarantina” — “Sou muito vaidoso”. Afinal, diz que as violas que faz são mais dele do que amarantinas. “Dei-lhes estética e sonoridade, o balanço entre a estrutura e o som”, avalia, desassombrado.
Só faz instrumentos de corda, que estão expostos no “museu”, uma sala acanhada onde parte das paredes ostentam os seus “troféus”, entre eles o que chama a “família amarantina”: a viola (em várias declinações, como a “mulatinha”, com a inversão de cores), o violão (o “macho”, o maior), a “traquina” (mais pequena), o cavaquinho, o cavacão. Quer aumentar a família com um bandolim amarantino. E queria que alguém lhe seguisse as pisadas. Hélio ainda tem aqui uma caixa e um braço de uma viola amarantina que começou a fazer, porém, a escola intrometeu-se. Ainda na parede, um recorte de uma notícia sobre a fadista Ana Moura a dizer que quer a viola amarantina nos seus discos. “Já me disseram que vinha cá”, conta António Silva, e “o Berg já levou uma”. Enquanto não vêm, é ele quem pega numa para tocar. “Não sou grande músico”, avisa, “só sei dois acordes”. Já dá várias músicas. “É fácil de tocar”, diz, “eu aprendi durante o ano com o professor. Cheguei a fazer instrumentos sem saber.”
O som da comunidade
Não aconteceu o mesmo com Laurentino Sampaio, 23 anos, o mais jovem construtor de bombos em Amarante. “Desde pequeno tenho o sonho dos bombos”, confessa. O pai deu-lhe um bombo e uma caixa, ele aprendeu a tocar e começou a actuar com grupos de Amarante e Baião. Há quatro anos formou um grupo (Bombos de Santo Isidoro, que este ano tocou “pela primeira vez em Amarante”, no festival Há Fest) e construiu os primeiros instrumentos. Foi um construtor da vizinha Freixo de Cima que lhe ensinou “praticamente tudo”. Começou a fazer só para si, por “brincadeira”, “mas logo um colega quis um e logo outro...”.
E hoje tem diante de si na sala onde constrói os bombos (à noite, ao fim-de-semana, aos feriados: trabalha a tempo inteiro na construção civil), parte de uma encomenda de oito bombos e sete caixas. Na noite anterior esteve a pintar; hoje, enquanto eles secam, tem pouco para fazer. Aproveita para “tracejar” (apertar as cordas) alguns, é a etapa final da construção.
Amarante está cheia de cartazes a anunciar o Congresso dos Bombos. Há quem viva por lá e não se tenha apercebido. “Há um congresso de bombos?”, a pergunta sai entre risos. “Pois, os bombos aqui são uma loucura, fazem uns despiques...” Não há como escapar aos bombos em Amarante. Não faltam nas festas que animam o concelho todo o Verão e tudo começa nas Festas do Junho em Amarante, no primeiro fim-de-semana do mês. É a grande festa popular, onde os bombos saem à rua juntamente com as bandas filarmónicas e os ranchos folclóricos — contudo, eles, os bombos, são os reis, pelo menos de sexta-feira, com os despiques épicos.
Fernanda Ribeiro lembra-se de ficar na rua a ver os despiques até ao último grupo, às vezes até às seis da manhã. Agora os despiques terminam sempre às três e Fernanda já não vê, participa neles. Tem 59 anos, entrou no grupo as Rosas de Santa Maria de Jazente há três. “As Rosas” nasceram em 2009 e foram o primeiro grupo de bombos feminino português; são também um “negócio de família” do qual Maria de Fátima, conhecida como “a Fatinha dos bombos”, e a filha Eugénia carregam a tocha. O pai de Fátima fundou, em 1949, tinha 18 anos, o grupo de Santa Maria de Jazente. Resultado: “A minha mãe nasceu nisto e eu nisto nasci”, resume Eugénia, a maestrina. Há anos, conta, com as palavras disparadas como se saídas de um bombo, que andava a pensar (e a dizer) que um dia faria um grupo só com mulheres. Esse dia chegou estava ela no Porto, a estudar. E foi assim que do grupo de Santa Maria de Jazente, do qual ainda fazem parte, nasceram também as Rosas.
Não surpreende, portanto, que estejamos em casa de Fátima, para o que pensávamos ser um ensaio. O equívoco é desfeito à chegada. “Não fazemos ensaios durante o Inverno. Acalmam as festas e ainda estamos com ritmo”, explica Eugénia. Quando chega o calor, “com os elementos novos que chegam e é preciso ritmar”, os ensaios são feitos no pátio da propriedade, numa grande roda. “É um pagode”, assegura Eugénia, que também faz parte da tuna feminina da Universidade Portucalense, do grupo coral da igreja e foi o elo de ligação entre todos os grupos de tocadores de bombos do concelho e a candidatura à RCC. “Andei nas palestras, a divulgar o projecto.” Aida Guerra confirma: “Rapidamente, estavam todos a trabalhar em conjunto e Eugénia chegou a dizer-me ‘Senti o som da comunidade’”.
A comunidade de música etnográfica, popular e tradicional de Amarante tem cerca de 1200 praticantes. São 11 grupos de ranchos folclóricos, oito grupos de bombos, três tunas rurais, 12 grupos corais e três bandas filarmónicas, duas delas centenárias. Uma delas, a Banda Musical de Amarante (BMA), cumpriu no dia 1 de Dezembro 163 anos, o que até não é invulgar para bandas filarmónicas portuguesas. “É a corrente cultural natural de um país antigo, uma forma de aprender música”, justifica Marta Marinho, presidente da direcção da BMA há cinco anos e sua clarinetista há 20 (tem 36), depois de ter passado pela escola da banda.
A sede da BMA, naquilo que terá sido projectado como um centro comercial agora praticamente abandonado, está vazia. Contraste absoluto com os sábados à noite, altura dos ensaios, quando transborda de gente e animação. Tanto assim é que a loja contígua foi comprada e está a acabar de ser recuperada para receber mais quatro salas. “Já não há muito espaço para ensaios e aulas.” São 50 os elementos da banda (mais 30 na juvenil), com média de idades por volta dos 21 anos. “As bandas voltaram a exercer fascínio”, considera, “sobretudo a nossa, que tem participado em muitos eventos e tido projecção”. “Agora é um orgulho estar na banda, deixam-se namoradas e discotecas pela banda.”
Uma banda como a BMA “interpreta tudo, jazz, rock, rapsódias, tradicional. Depende de quem tem a direcção artística.” Nesta pertence a Hugo Folgar, da Banda Sinfónica Portuguesa, “tem 33 anos e tenta trazer novos estilos, desafios”. Os estágios de Verão são disso prova. “Não conseguimos aceitar todas as inscrições”, refere Marta Marinho, para uma semana com professores e maestros que vêm de fora e não hesitam em lançar “peças com grau de dificuldade grande”. Um ano, tiveram cem músicos, “o nível da orquestra sobe muito”, e, todos os anos, o concerto final é dos eventos que mais gente atrai aos claustros da câmara municipal. Sempre que surge a oportunidade, interagem com outros grupos e instituições para apresentações. No 25 de Abril deste ano, foi o Coro Polifónico de Amarante, com quem interpretaram temas de Lopes Graça. “Sempre que podemos associamo-nos, temos todos a ganhar.”
Este é o tipo de mentalidade que a RCC também quer incrementar. “Partilha” é, aliás, uma palavra constante. “Do que gostei nesta candidatura foi essa abertura à partilha”, afirma Aida Guerra, “mesmo se não entrássemos teríamos ganho, pela disponibilidade encontrada para trabalhar em conjunto.” Agora, há que colocar a comunidade que se conseguiu agregar a pensar em conjunto, defende Aida Guerra. “Coisas concretas, com impacto, mas com sentido para quem cá está.” Sempre pensando, sublinha André Magalhães, que a inclusão na RCC “não se esgota na arte e na cultura”. “A UNESCO salvaguarda coisas boas para a humanidade. Tem sempre impacto positivo.”