Estado atrasou verbas e algumas cantinas sociais cortaram refeições

Segurança Social não transferiu verbas no Verão e algumas instituições interromperam a distribuição de comida. Agora, queixam-se de descida de 41 mil para 22 mil refeições antes de arranque de entrega de cabazes.

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Fernando Veludo N/factos

A mudança de paradigma na ajuda alimentar está a ter consequências na mesa de algumas famílias carenciadas. O Instituto de Segurança Social esteve mais de três meses sem transferir verbas para a Rede Solidária de Cantinas Sociais e, nessa altura, houve instituições a interromper a distribuição de comida. Agora, o número de refeições vai cair para quase metade até ao final deste ano e a distribuição de cabazes ainda não começou.

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A mudança de paradigma na ajuda alimentar está a ter consequências na mesa de algumas famílias carenciadas. O Instituto de Segurança Social esteve mais de três meses sem transferir verbas para a Rede Solidária de Cantinas Sociais e, nessa altura, houve instituições a interromper a distribuição de comida. Agora, o número de refeições vai cair para quase metade até ao final deste ano e a distribuição de cabazes ainda não começou.

A Rede Solidária de Cantinas Sociais nunca foi pensada como uma solução permanente. Era uma resposta de emergência à crise que devia durar até ao final de 2014. Subsistiu. E as dúvidas sobre a sua continuidade instalaram-se com a mudança de governo.

A economista Cláudia Joaquim sempre se manifestou contra aquele modelo. Quando se tornou secretária de Estado da Segurança Social, no final de 2015, quis avaliá-lo. A avaliação, feita em 2016, acusou falta de controlo. O número de refeições era excessivo nuns sítios e deficitário noutros. As cantinas sociais serviam muito menos refeições do que o definido em protocolo com o Estado.

Cabazes em vez de cantinas

Já em Janeiro deste ano, Cláudia Joaquim anunciou o novo paradigma. Em vez de cantinas sociais, haveria distribuição de cabazes alimentares, que incluiriam peixe, carne e legumes congelados. O novo programa responderia às pessoas que têm capacidade e condições para conservar alimentos e cozinhá-los. As cantinas sociais manter-se-iam para as outras.

No Compromisso de Cooperação para o Sector Social e Solidário para o biénio 2017-2018, assinado entre o Governo e a União das Misericórdias Portuguesas, a União das Mutualidades e a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade Social (CNIS), ficou assente que haveria um “perfil de diminuição do número de refeições” servidas em cantina social. A aplicação dessa metodologia teria início no segundo semestre, por altura da habitual renovação dos protocolos.

No final de Junho, ainda não era claro o que iria sobrar da Rede Solidária de Cantinas Sociais. A verba correspondente às refeições servidas deixou de ser transferida para as instituições parceiras. Muitas nem sabiam se a Segurança Social iria ou não assinar uma adenda aos textos iniciais dos protocolos.

A Associação Monte do Pedral, por exemplo, distribuía 97 refeições a famílias carenciadas do concelho do Porto no primeiro semestre. O presidente da direcção, Paulo Santos, diz que tentou em vão junto do Centro Distrital de Segurança Social esclarecer se o protocolo iria ou não ser renovado. Sem informação, manteve o serviço ao longo de todo o mês de Julho e metade de Agosto. Chamou então os beneficiários, um a um, e disse-lhes que a partir de dia 15 não haveria refeições para entregar.

De acordo com Paulo Santos, só no final de Setembro foi informado pela Segurança Social de que haveria adenda ao protocolo e que o número de refeições diminuiria para 84 em Outubro, 75 em Novembro, 66 em Dezembro. A decisão, diz, não resulta de um diálogo, foi unilateral. “O que vou dizer às pessoas? Sei lá! Não sei.”

“Decorrente da mudança de paradigma, a intenção de proceder à assinatura das adendas de renovação com as instituições foi formalizada a partir da primeira quinzena de Setembro”, admite o gabinete do ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Vieira da Silva. “Os pagamentos estão a ser efectuados, sendo que nos distritos em que a totalidade dos pagamentos ainda não se encontra regularizada o ISS está a trabalhar para normalizar a situação com brevidade”, refere ainda.

O número de refeições servidas pela Rede Solidária de Cantinas Sociais já estava a diminuir de forma progressiva e neste semestre está a cair para metade. Em Dezembro de 2014, no pico do programa, havia protocolo para 845 cantinas servirem 49 mil refeições diárias. Em Dezembro de 2015, 42.500 mil. Em Dezembro de 2016, 41.300. Agora, com estas 807 adendas que integram uma previsão de redução gradual ao longo de Outubro, Novembro e Dezembro, ficar-se-á pelas 22 mil.

Os indicadores socioeconómicos têm melhorado, o número de desempregados registados nos centros de emprego desceu para o valor mais baixo desde 2008. Há menos pessoas a precisar de ajuda alimentar, mas a diminuição da oferta decretada pela Segurança Social não corresponde à diminuição da procura verificada pelas instituições, entende Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas. 

“Situação ingrata”

O mesmo reparo faz Eleutério Alves, da direcção da CNIS. Tudo porque ainda não arrancou o Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas, que deverá ser complementar. “Não foi acautelada a situação das pessoas”, lamenta. 

A instituição que lidera, a Santa Casa da Misericórdia de Bragança, também recebeu um plano de redução de refeições. Distribuía 80, entrega 64, deve entregar 58 em Dezembro. Aguarda o arranque do novo programa, de que é entidade receptora e mediadora. “Isto não é um brinquedo que se tira às pessoas, é alimentação”, enfatiza. 

O Centro de Reformados e Idosos do Vale da Baixa Banheira, na Moita, serve de exemplo. No início do semestre, o Centro Distrital de Segurança Social informou-o que havia um atraso nas adendas aos protocolos das cantinas sociais e que, por isso, haveria um atraso na transferência da verba correspondente. Pediu-lhes que continuassem a distribuir as refeições, que a dívida seria saldada.

A pretendida redução gradual do número de refeições basear-se-ia numa cuidada análise dos utentes das cantinas sociais, por forma a garantir-se que ninguém ficaria a descoberto. “Com base na informação disponível, foram identificadas as pessoas que têm condições para armazenar e confeccionar alimentos”, conta José Capelo, presidente da direcção daquela instituição. Essas pessoas deixariam de receber refeições confeccionadas e passariam a receber um cabaz alimentar.

José Capelo estava convencido de que a redução do número de refeições e a distribuição de cabazes aconteceriam em paralelo. Dali saíam 100 refeições e esse número ficou reduzido a 85 em Outubro e diminuirá para 74 em Novembro e para 62 em Dezembro. E os cabazes alimentares estão armazenados, à espera de destino. “É uma situação um bocado ingrata”, diz.

O desajuste tem consequências. Algumas pessoas estão a ser apoiadas por familiares ou vizinhos, enquanto a distribuição de cabazes não arranca, refere José Capelo. Nalguns casos, ainda que com esforço, as instituições continuam a apoiar as famílias, torna Paulo Santos. Manuel Lemos diz que já transmitiu o descontentamento que lhe tem chegado à Segurança Social.