Os 10 dias que deixaram de abalar o mundo
A revolução é cada vez mais vista como um acidente anacrónico cujo legado convém rejeitar. Não haverá nesse processo lições para os tempos turbulentos e incertos que vivemos?
Nos dias de brasa que se sucederam ao assalto do Palácio de Inverno, à demissão do Governo provisório de Alexander Kerensky, à tomada do poder pelos bolcheviques e aos primeiros passos para a instauração de uma ditadura do proletariado, Leon Trotsky estava exultante. “O que se está agora a passar na Rússia ficará para sempre registado na História como um dos seus maiores acontecimentos. Os nossos filhos, netos e bisnetos falarão destes dias como o começo de uma nova era na História da Humanidade”, dizia o personagem que, ao lado de Lenine, mais contribuiu para a Revolução de Outubro (25 de Outubro no calendário juliano então em vigor na Rússia, 7 de Novembro no calendário gregoriano).
John Reed, um jornalista militante cujos restos mortais estão depositados no mausoléu de Lenine em Moscovo, e autor do célebre Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, certamente concordaria. A Rússia mudara e, por contágio, os proletários de todo o mundo unir-se-iam para universalizar a revolução, matar o capitalismo e acabar com a exploração do homem pelo homem.
Mas havia quem duvidasse. O historiador Rui Tavares lembra a propósito o cinismo do Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa, escrito em 1922, que a propósito dos acontecimentos em Petrogrado (hoje São Petersburgo) dizia: “E v. verá o que sai da Revolução Russa… Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre”.
Cem anos depois, e olhando à forma fria e algo distante como o mundo celebra esse evento crucial da História do século XX, parece óbvio que Fernando Pessoa foi mais visionário do que Leon Trotsky. A revolução mudou o mundo, mas fê-lo de forma efémera. Criou uma das correntes políticas mais poderosas do seu tempo, mas foi incapaz de a conservar depois da queda do regime soviético em 1991. Mobilizou as crenças de milhões de pessoas, mas foi incapaz de as alimentar por mais do que 70 anos.
Por estes dias em que se cumprem 100 anos da Gloriosa Revolução Socialista, o mundo deixou de abalar. O que entre 1917 e 1991 foi visto como um acontecimento fulcral do século passado parece hoje um exotismo incidental, insusceptível de festejo ou de condenação. Os acontecimentos que John Reed conta com empenho e entusiasmo fazem parte de uma memória distante.
A revolução caótica, violenta e sonhadora que levara pela primeira vez na história do mundo a classe operária, os soldados e os camponeses ao poder de uma grande potência europeia deixou de ser uma memória incómoda. Em 1917, o mundo ficara de facto abalado e as chancelarias europeias assustadas, os sonhos mais radicais e jacobinos da Revolução Francesa tinham sido finalmente cumpridos, as utopias socialistas do século XIX tornaram-se realidade, as profecias de Karl Marx e de Frederich Engels aconteceram mesmo, a Primavera dos Povos de 1848 realizou-se, as barricadas da Comuna de Paris de 1870 pareciam ter finalmente vencido. Durante três gerações, essa paleta de vitórias deu origem à crença na marcha irreversível do comunismo. Para depois do colapso da Perestroika se dissipar nas prioridades de um novo tempo com novos desafios, ameaças distintas e respostas por encontrar.
Experiência do "socialismo real"
Apesar de estarem fora de moda, as visões que profetizavam uma sociedade sem classes ou o poder popular ainda são capazes de suscitar devoção. “A revolução socialista é o acontecimento mais marcante na História da Humanidade, um acontecimento que simboliza a luta pela emancipação dos seres humanos”, diz Manuel Rodrigues, membro do Comité Central do PCP e director do jornal Avante. Do outro lado da barricada ideológica, Paulo Rangel regista essa “utopia positiva”, mas não encontra nada mais para comemorar. “Esse evento não é um momento libertador como a Revolução inglesa de 1649, ou as revoluções francesas e americana do século XVIII. Não foi a vitória do povo sobre o autoritarismo, mas de um autoritarismo sobre outro”, diz o eurodeputado eleito pelo PSD e colunista do PÚBLICO.
Se na origem da revolução há a marca de um sonho e a exigência da justiça no combate contra a “opressão tirânica dos czares”, como a define Manuel Rodrigues, o resultado final do processo justifica para muitos o seu enterro na memória. Jaime Nogueira Pinto, politólogo, empresário e escritor lembra que é difícil haver qualquer ponta de “orgulho” na reafirmação da experiência do “socialismo real”. “É o terror vermelho começado já com Lenine e Trotsky e consumado por Estaline, são milhões e milhões de vítimas de fomes políticas, de torturas, de campos de morte. É um fracasso histórico e uma grande mentira”, nota. “Com excepção do PCP, que não quererá muito reclamar o legado, os partidos comunistas praticamente desapareceram da Europa. E as ‘utopias reais’ que restam – Cuba, Coreia do Norte (…) – são risíveis ou assustadoras”, acrescenta o politólogo. À esquerda, o historiador Rui Tavares, colunista do PÚBLICO, concorda: “Não há quem seja capaz de defender o legado da revolução, ou o regresso ao que se fez na altura”.
Para lá dos olhares de defesa ou de condenação, a “Gloriosa Revolução Socialista” impõe-se pelas marcas que ainda hoje se conservam na geopolítica, que se consagram na geografia ou resistem no campo das ideias. Durante toda a “breve história do século XX”, na famosa definição do historiador britânico de inspiração marxista Eric Hobsbawm, o exemplo da Revolução de Outubro de 1917 chegou a ser mais do que um abalo. Foi uma esperança que mobilizou as paixões e os ódios de milhões de pessoas. Foi uma inspiração para progressistas ou uma aflição para conservadores e liberais. A expansão do comunismo no pós-Segunda Guerra Mundial ameaçou tornar-se um destino. Mais de um terço da humanidade chegou a viver em regimes moldados ou inspirados na fórmula vitoriosa dos bolcheviques. Nem a barbárie das fomes impostas que levaram à morte de milhões de camponeses ucranianos, nem as purgas estalinistas, nem o Gulag, nem o novo imperialismo soviético, nem o esmagamento da revolta húngara de 1956 ou da Primavera de Praga de 1968 foram capazes de matar no Ocidente a crença num destino com “amanhãs que cantam”. Foi o fim da Guerra Fria, o colapso soviético em 1991 e o augúrio de um “fim da História” que imporia o triunfo generalizado da democracia liberal a esvaziar irreversivelmente o poder dessa ideia.
Separar os "brancos" dos "vermelhos"
O registo frio com que se comemoram os 100 anos da revolução é o sinal inequívoco desse triunfo. Pelo menos na Europa Ocidental. Em Bruxelas, os países que ficaram do outro lado da Cortina de Ferro invocam os tempos sombrios da era soviética. Nas outras capitais europeias, organizam-se conferências e pouco mais. Para lá da reedição de A Tragédia de um Povo de Orlando Figes (edição Dom Quixote), a obra seminal da Revolução publicada pela primeira vez em 1996, da publicação de uma nova biografia de Lenine da autoria do historiador Victor Sebestyen (Lenin the Dictator: An Intimate Portrait) ou uma nova interpretação dos eventos revolucionários de Sean McMeekin (Russian Revolution, a New History), a efeméride passou ao lado do universo editorial.
Na Rússia, a pátria da Revolução, as justificações vão no entanto muito para lá da noção sobre a decrepitude de uma ideia. Ou da rejeição do legado que ela gerou. A era soviética é ainda uma ferida aberta que o regime tenta cicatrizar com o esquecimento. Nesse esforço, tudo é feito com cautela e precisão, até porque o Partido comunista é ainda hoje a segunda força política (obteve 13% dos votos em 2016). O Governo nomeou uma comissão para organizar as comemorações da efeméride e entregou a sua liderança a Sergey Naryshkin, que dirige a Sociedade Histórica da Rússia e os serviços secretos no exterior do Governo (a SVR). O seu programa consiste em promover conferências, numa recriação da tomada do Palácio de Inverno e pouco mais. Falar da revolução, sim, desde que se evite a fractura que há 100 anos separa os “brancos” (igreja, nobres, conservadores) dos “vermelhos”. Ao contrário do que aconteceu há dez anos, a televisão ausentou-se em sintonia com o desinteresse que se instalou na sociedade russa.
Se na Rússia há condescendência ou apoio ao legado do regime que nasceu da revolução de 1917, principalmente entre os mais velhos, também há contestação e intolerância. “Há muita gente que considera a revolução um desastre para a Rússia. Como a extrema-direita ou a Igreja Ortodoxa Russa”, diz José Milhazes, jornalista e historiador que viveu 38 anos em Moscovo. “Há quem considere o czar Nicolau II um santo e diga que a revolução de Outubro foi uma obra do diabo, da maçonaria, dos judeus”, acrescenta o jornalista. A saudade do tempo imperial, em que a “Rússia Sagrada” se manifestava numa aliança inabalável entre a Igreja, a nobreza e o czar permanece. Este Verão, o anúncio da estreia de um filme de Alexei Uchitel que contava uma relação amorosa entre o czar Nicolau II e uma bailarina polaca (Mathilda Kschessinska) gerou uma vaga de protestos entre os ortodoxos que culminaram no lançamento de cocktails molotov contra o estúdio do realizador. A relação que está na base do guião aconteceu antes de o czar se casar com Alexandra. Mas nem essa factualidade impediu que o extremismo da direita admitisse uma “afronta” à imagem imaculada do imperador.
O cuidado com que o Governo pretende organizar as comemorações pretende afinal continuar uma linha de reconciliação do país que Boris Ieltsin inaugurou e que Vladimir Putin e o seu fiel companheiro Dmitri Medvedev tentam há anos consolidar. Em 2005, a data que celebrava o dia do assalto ao Palácio de Inverno (8 de Novembro) deixou de ser feriado. O Kremlin usa agora essa data para celebrar com paradas militares a partida dos soldados que, em 1941, saíram da Praça Vermelha para travar o avanço dos alemães que estavam às portas de Moscovo, na II Guerra Mundial. Em vez da revolução, a Rússia comemora hoje no dia 4 de Novembro o “Dia do Acordo e Reconciliação”, feriado que celebra a expulsão das tropas polacas em 1612, o primeiro passo para a criação do estado moderno na Rússia com a subida ao poder dos Romanov.
Para um homem como Vladimir Putin, um ex-agente do KGB que chegou à presidência em 2000, a revolução foi um acidente de percurso, mas a queda da União Soviética “foi a maior tragédia geopolítica do século XX”, como afirmou há anos no Parlamento. “Putin tem uma relação muito ambígua em relação ao passado soviético. Elogia uns factos, condena outros. Isso cria alguma confusão”, diz José Milhazes. Por um lado, a Rússia que ele quer personificar é uma entidade una e indivisível que vem dos czares, abarcou a era soviética e se prolonga naturalmente sob o seu comando. Nessa linha fluida do tempo, não pode haver lugar para nódoas, nem revoluções. Com a sua subida ao poder, os livros escolares deixaram de denegrir o passado soviético. Em 2007, numa conferência com professores de História, Putin declarou que “sim, nós tivemos algumas páginas terríveis; lembremo-nos dos acontecimentos iniciados em 1937, não nos esqueçamos deles” (nesse ano ocorria o auge da grande purga que culminou nos infames “julgamentos de Moscovo”, onde Estaline dizimou a velha guarda do bolchevismo condenando à morte líderes históricos como Zinoviev, Kamenev, Radek ou Bukharin). “De qualquer modo”, continuou, “nós não lançamos mais bombas sobre um pequeno país de que todas as bombas largadas na II Guerra Mundial, como os americanos fizeram no Vietname”.
Comemorar a revolução pode fazer sentido para sublinhar as conquistas soviéticas na ciência ou para celebrar o esforço titânico da Rússia na II Guerra Mundial e homenagear os 20 milhões de russos mortos na vitória contra os alemães. Não para homenagear vanguardas revolucionárias ou movimentos de massas em desafio às autoridades. Putin acolhe nas suas pontes com o passado figuras como Estaline ou Ivan, o Terrível, porque eles ajudaram a projectar e a consolidar o sonho da Grande Rússia. No que, de resto, é acompanhado por uma parte significativa da população russa. Na sua introdução à edição comemorativa dos 100 anos da revolução da obra A tragédia de um povo (a mais abrangente e profunda obra historiográfica sobre o período), o historiador Orlando Figes lembra um concurso de 2011 na televisão chamado o “Tribunal do Tempo”, em que se discutiam os crimes humanos praticados na era de industrialização de Estaline. Nas suas respostas, 78% dos espectadores consideraram que esses crimes se justificavam à luz de uma “terrível necessidade”.
As causas e as consequências
Para restaurar o significado original do imparável “movimento de massas” que entre Fevereiro e Novembro de 1917 derrubou a dinastia Romanov que durava há três séculos e seguiu Lenine e Trotsky no destino que levaria a um mundo melhor, talvez faça sentido olhar para as causas, perceber a lógica do movimento e, por um instante, parar no momento da tomada de poder dos bolcheviques. Em Fevereiro, a falta de pão em Petrogrado (na época a capital imperial) origina uma série incontrolada de greves e de conflitos com a polícia. Os soldados, vítimas de uma cadeia de comando insensível e incompetente que conduzira à matança na frente leste da Primeira Guerra Mundial, colocam-se ao lado da população. O poder do czar e da oligarquia fica nu. Daí a seis meses, seria a vez do ensaio de democracia parlamentar conduzido pelo Governo de Kerensky ser dizimado pelo radicalismo imparável dos bolcheviques.
A primeira etapa da revolução, em Fevereiro, pode ser vista como a repetição dos protestos de 1905, que forçaram o czar Nicolau II, o “grande autocrata da Rússia”, como se intitulava, a resignar-se a uma leve abertura do regime, autorizando a criação de um parlamento (a Duma). Era, afinal, o corolário de uma longa luta entre as aspirações de uma sociedade cada vez mais urbana e aberta aos avanços do constitucionalismo, dos direitos e liberdades fundamentais e da democracia burguesa que se haviam espraiado um pouco por toda a Europa durante o século XIX. Na Rússia, porém, todas as tentativas de abertura acabaram por ser violentamente reprimidas. Em 1860, Alexandre II, avô de Nicolau, ensaiou uma tímida liberalização: libertou os servos (a Rússia foi o último país europeu a fazê-lo), permitiu a organização de partidos, relaxou a censura e ensaiou um programa de reformas na administração para acolher a dissidência e demolir um regime anacrónico e fossilizado. O seu assassinato em 1881 pelo grupo extremista Vontade do Povo deitaria tudo a perder.
O seu filho Alexandre III e, depois de 1894, Nicolau II dispuseram-se a enfrentar os liberais e os socialistas e fizeram regressar o modelo musculado da tradição autocrática “moscovita”. A insensibilidade do último czar perante as carências do seu povo era extrema – na celebração da sua coroação, em 1896, 1300 pessoas morreram esmagadas, mas nem isso impediu a família imperial de ir ao baile organizado pelo embaixador francês nessa noite. A repressão era continuada e brutal e a violência política que fez germinar os socialistas revolucionários ou os operários social-democratas (os bolchevistas são o ramo radical deste partido) tornou-se uma forma de vida. Em 29 de Janeiro de 1905, dia que ficaria conhecido por “domingo sangrento”, as forças de segurança puderam disparar livremente para travar o avanço de manifestantes indefesos, entre os quais mulheres e crianças. Morreram mais de mil pessoas. Em Junho, no esmagamento do motim da tripulação do couraçado Potemkin, dois mil civis perderam a vida.
Nicolau II “foi o pior czar da História da Rússia e levou o país para a catástrofe”, diz José Milhazes. A sua cedência destaparia um pouco a pressão política e social, mas a abertura do regime que anunciou num manifesto colidia com a sua vontade e não passou de um gesto de dissimulação. A Duma tinha apenas um poder decorativo. A passagem pelo cargo de primeiro-ministro de políticos reformistas como Piotr Stolypin revelou-se inútil perante as forças conservadoras congregadas em torno do czar (Stolypin seria assassinado na ópera de Kiev por um esquerdista radical e o seu nome acabaria eternizado nas “gravatas de Stolypin”, que Lenine citava para descrever os seus métodos repressivos). O poder oculto de um místico como Grigori Rasputin na corte imperial (a imperatriz Alexandra, de origem germânica, acreditava que ele tinha poderes para curar a hemofilia do príncipe herdeiro, Alexei) causava revolta. Os escândalos financeiros em que Rasputin se envolveu e os seus deboches sexuais tornaram-no num personagem odiado – acabaria assassinado a tiro por dois homossexuais próximos da corte em Dezembro de 1916, depois de o veneno servido com vinho Madeira não ter resultado.
A entrada da Rússia na I Guerra Mundial colocaria o regime sob um stress insustentável. A revolta de Fevereiro de 1917 obriga o czar, perplexo e queixoso dos “traidores”, a abdicar. Um Governo provisório dominado pela esquerda radical sob a presidência de Kerensky toma o poder. A dinâmica da revolução entra então numa espiral de descontrolo. Ao lado do poder do Governo ergueu-se um novo poder centrado no Soviete de Operários e Soldados de Petrogrado. Os sovietes (conselhos) tinham aparecido na revolta de 1905, mas 12 anos depois mostraram uma capacidade de mobilização e de influência que em breve esvaziaria o Governo. Principalmente depois de Lenine ter feito a sua longa viagem num comboio pago pelo Governo alemão (interessado na desestabilização do país) e ter desembarcado na Estação da Finlândia, em Abril de 1917.
Ao contrário das expectativas, o Governo não acaba com a guerra. Nem avançou com a entrega de terras aos camponeses. Nem foi capaz de gerir a máquina administrativa do Estado para garantir alimentos básicos à população ou aos soldados da frente. No final de Outubro, a Rússia urbana era o caos. No culminar da tensão desses dias, Lenine e Trotsky forçam o golpe, apesar da oposição interna no partido. O apelo a “todo o poder aos sovietes” estava a dar frutos. A sua “dinâmica revolucionária” era imparável. O escasso poder do Governo baseado no Palácio de Inverno ruíra. A ditadura do proletariado estava para breve.
O passado talvez presente
Mais do que as consequências trágicas do terror leninista e estalinista, a grande lição que se pode extrair da Revolução de Outubro está principalmente na sua dinâmica. Um líder determinado e ousado como Lenine, capaz de organizar uma vanguarda revolucionária para derrubar o poder, faz sentido nos nossos tempos? O descontentamento generalizado das massas populares é capaz de promover na actualidade abalos sísmicos que obrigam à mudança de regimes? No seu prefácio à actual edição de A Tragédia de um Povo, Orlando Figes deixa pistas para estas interrogações. Para o historiador, as similitudes entre a Revolução de Outubro e o Euromaidan na Ucrânia, em 2013, ou a Primavera Árabe são evidentes. Depois, os métodos do ISIS (Estado Islâmico), “o uso da guerra e do terror para criar um estado revolucionário, a devoção fanática e a disciplina militar dos seus seguidores, e o seu brilhante uso da propaganda foram aprendidos com os bolcheviques na guerra civil russa”.
Fazer pontes entre o passado e o futuro é um exercício cheio de riscos e de dúvidas. “1917 foi 1917. A revolução resultou de um exército de camponeses desmoralizados pelas derrotas sofridas, com uma elite político-social mais ou menos desacreditada em termos de legitimidade, e da teimosia de Kerensky em querer prosseguir a guerra ao lado dos Aliados anglo-franceses a quem a Rússia era devedora de grandes somas”, nota Jaime Nogueira Pinto. “Havia um operariado forte nas áreas de Petrogrado e Moscovo e havia Lenine, que percebia de técnicas de golpe de Estado e de revolução, como se viu nas Teses de Abril e no que fez depois”, acrescenta o politólogo. Manuel Rodrigues segue de perto esta análise quando diz que “nenhum acontecimento é repetível sem as condições exactas em que se desenvolveu”. E explica: "A revolução aconteceu no contexto objectivo da velha Rússia, um país oprimido, num tempo de guerra, com grande miséria e um povo com mais de 75% de analfabetos. E depois havia os factos subjectivos, como o papel notável de Lenine, a teoria revolucionária de Marx e Engels, a formação dos sovietes ou do partido bolchevique”.
Mas não se perde nada em fazer cenários e em retirar dos acontecimentos de há 100 anos lições que podem antecipar os desafios do presente. “Marx e a revolução Russa têm interesse, dada a crescente clivagem que hoje existe entre as classes sociais. O que é evidente na ascensão dos populismos é a clivagem entre uma classe globalizada e uma classe não globalizada. Não sei se aí não há o risco de a qualquer momento haver a vingança de uma classe sobre a outra”, explica Paulo Rangel. “Só temos de pegar na nossa imaginação e regressar no tempo 100 anos, num contexto diferente, com guerra, carências, etc., para entendermos como é que as massas podem virar de um momento para o outro”, diz Rui Tavares. Olhando o presente, poderá haver um novo cataclismo com este? “Eu digo que sim. A revolta e indignação são reais. Estamos num período de grande imprevisibilidade política. O populismo é uma ameaça”, considera este historiador.
Um movimento de massas revolucionário “é mais provável do que aquilo que todos julgamos. Uma revolução no sentido mais mítico do termo não é improvável. A simples sucessão de acontecimentos nos últimos três anos, com o 'Brexit', a eleição de Trump, os regimes da Hungria ou da Polónia ou a Catalunha, mostram-nos que algo pode estar a acontecer. Não sabemos o quê, mas que pode acontecer alguma coisa, isso pode”, nota Paulo Rangel. Numa terminologia de inspiração marxista, pode dizer-se que o mundo actual estará a criar “condições objectivas” para novos abalos como o de 1917. O que consagraria a fatalidade do materialismo dialéctico. “O rumo da História é este: uma sociedade com classes antagónicas, com oprimidos e opressores, levará sempre os oprimidos a desenvolverem lutas no sentido de se libertarem”, argumenta Manuel Rodrigues.
Se a revolução de 1917 nos mostra como a injustiça, a opressão ou a carência de bens básicos são capazes de mobilizar multidões, a energia desse protesto só se concretiza se houver uma organização capaz de a exponenciar e uma ideia para a cimentar. Para os comunistas, o programa de Lenine e dos bolcheviques permanece actual. “A luta pelo ideal de uma sociedade onde não haja exploração do homem pelo homem continua e dará origem a novos projectos”, diz Manuel Rodrigues. Mas, essa visão não será hoje ainda mais utopia do que era há 100 anos? Afinal, não foi o próprio regime soviético a instituir que todos os homens são iguais, mas que há homens mais iguais do que outros, na célebre definição do estalinismo feita pelo britânico George Orwell no seu seminal O Triunfo dos Porcos?
O romantismo de uma sociedade perfeita, sem classes, sem exploradores e explorados, “tem a ver com a utopia e com a radicalidade da utopia. Ou dos mitos. É a ideia de uma sociedade perfeita que transforma a condição humana”, diz Jaime Nogueira Pinto, que avisa: “No fundo é a ideia – romântica e anti-cristã – que a sociedade pode, por voluntarismo, mudar a condição humana. Resultou mais em distopia do que em utopia. Não tem dado grandes resultados práticos, mas também é preciso manter essa ideia de mudança, sem a qual ainda estaríamos nas cavernas ou nas pirâmides”.
“A utopia faz falta”, avisa Paulo Rangel. E um instrumento para se ensaiar, também. Se há muitos pensadores a fazerem diagnósticos profundos sobre a realidade, como o alemão Ulrich Beck com a sua “sociedade de risco”, ou como o fez o polaco Zygmunt Bauman com o conceito de “sociedade líquida”, nota Paulo Rangel, nenhum pensador ajustou as ideias a um código de acção para deixar de se pensar apenas no mundo mas para o transformar, como fez Karl Marx. E aí, uma vez mais, o exemplo soviético, com a sua indiferença pela pessoa humana, é dissuasor. “O sonho da sociedade justa é um projecto que procede a revolução de Outubro e espero que sobreviva muitos anos ao final do comunismo”, diz Rui Tavares. Porque, afinal, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade são anteriores a Lenine e há uma corrente no pensamento socialista que vai resistindo aos humores do tempo. “Deve continuar a pensar-se o socialismo como começou a ser pensado na revolução Industrial. A revolução russa não conseguiu estragar essa ideia”, nota Tavares.
Até por isso, regressar a Novembro de 1917 é uma forma de afinar ideias para a direita e para a esquerda e enquadrar os acontecimentos de 1917 num tempo que talvez não esteja tão distante desses dias como se pensa. “O que me preocupa é que estejamos a repetir o que aconteceu antes da Primeira Guerra Mundial”, diz Paulo Rangel. Na Primavera de 1914 a Europa vivia descontraidamente e a guerra era para a generalidade dos europeus uma miragem. Em Agosto tinha começado o horror que matou mais de 10 milhões de pessoas. E em Fevereiro de 1917 rebentou a primeira etapa de uma revolução que abalaria o mundo pelo seu radicalismo, pela sua violência e pelos custos humanos que provocou. Talvez, por isso, o regime soviético possa ser esquecido; mas as causas e os processos que o instituíram, não.
Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO