O viajante do tempo que desenha o mundo
Hugo Barros Costa anda sempre com três cadernos. Pode fazer oito ou dez desenhos por dia e pára “em média um dia por mês”
Conca Dei Marini, Costa Amalfitana, Itália. A história pode começar aí — qualquer história podia começar aí. Do lado de cá da baía, Jacqueline Kennedy estacionou um Fiat 600 descapotável e aprecia o azul do mar, perfeito para praticar esqui aquático. Ligeiramente à direita, faz-se notar na inclinação da escarpa a casa de Sofia Loren. Hugo está sentado do lado de cá, no terraço da casa onde, em 1962, “Jackie” passou uma temporada. Ao colo tem uma parafernália de lápis, cores e cadernos. Assim consegue ser um viajante do tempo.
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Conca Dei Marini, Costa Amalfitana, Itália. A história pode começar aí — qualquer história podia começar aí. Do lado de cá da baía, Jacqueline Kennedy estacionou um Fiat 600 descapotável e aprecia o azul do mar, perfeito para praticar esqui aquático. Ligeiramente à direita, faz-se notar na inclinação da escarpa a casa de Sofia Loren. Hugo está sentado do lado de cá, no terraço da casa onde, em 1962, “Jackie” passou uma temporada. Ao colo tem uma parafernália de lápis, cores e cadernos. Assim consegue ser um viajante do tempo.
Hugo Barros Costa passou dois meses seguidos no Sul de Itália “a seguir os passos” de Louis Kahn (1901-1974), arquitecto com centenas de desenhos compilados no livro The Paintings and Sketches of Louis I. Kahn. Pegou no livro há três anos. Abre-o e viaja — como se jogasse uma partida de jumanji. Já riscou da lista os desenhos todos de Kahn, “o mestre dos mestres”, no Sul (falta-lhe Verona, Milão e Pavia no Norte), já esteve em Los Angeles, Nova Iorque e no estúdio do arquitecto na Filadélfia. “Esqueço a técnica dele. Desenho o que vejo hoje em dia. Falta-me Egipto e Grécia”, diz à Fugas este desenhador compulsivo que em Setembro venceu o concurso “Sketch 4 Freedom”, promovido pelo Parque Franklin D. Roosevelt Four Freedoms, precisamente com um desenho da envolvente do espaço nova-iorquino projectado por Kahn.
“Normalmente”, Hugo, casado, dois filhos, anda com três cadernos — e isso “implica coordenação e organização”. Tem um “caderno de casamentos”, mais discreto, e uma pasta com “desenhos por acabar” (quando a luz assim o permitir). Usa uma cadeira desdobrável como a dos pescadores e um carimbo redondo como o das malas vintage dos exploradores. Já desenhou com 40 graus à sombra (e habituou-se a desenhar só sombras) e já saltou refeições para desenhar (regime de duas bananas por dia). Tem desenhos de cinco e de 15 minutos. Tem desenhos que demoraram três, quatro, seis horas. Já passou “oito, dez, 16 horas por dia a desenhar”. E pode fazer “oito ou dez desenhos por dia”. Pára “em média um dia por mês” — “em média”. Já fez uma árvore de Natal com cadernos totalmente usados empilhados. E já perdeu cadernos — mas não vamos falar nisso. Está apresentado Hugo, formado em Arquitectura pela Escola Superior Artística do Porto e desde 2005 em Valência, onde lecciona na Escola Superior Técnica de Arquitectura. O desenho “não é um divertimento, nem uma obsessão”, diz, com os cadernos espraiados e os lápis a uma margem de segurança, Hugo, a desenhar todos os dias desde 2010 (nos cadernos, no blogue que mudou a sua vida “a fresh drawing everyday” e no Instagram @yolahugo).
“Numa aula chateei-me com os meus alunos e, para dar o exemplo, disse-lhes que ia desenhar todos os dias. Ficaram admirados, foi como se tivesse dito que ia a Marte”, sorri. O blogue não funcionou como ferramenta colaborativa, mas passou a ser a forma universal de comunicar de uma pessoa “muito distraída”. “Tenho a língua do desenho. Falo em muitas línguas, não domino nenhuma. Os desenhos são uma prisão, mas abriram imensas portas”, admite o professor, que em 2015 conseguiu, via anúncio de Instagram, dar aulas na Parsons School of Design de Nova Iorque, quatro meses que se transformaram em importantes volumes da sua vida ilustrada. Tinha casa em Brooklyn, “uma bicicleta num Inverno especialmente quente” e um diário alternativo. “Não fazia fotos, desenhava. O epicentro não seria Manhattan”, conta Hugo, enquanto percorre os fios entrelaçados dos cadernos carregados que resultaram numa exposição — e no livro NYC Relatos Gráficos, seleccionado para o International Travel Book Award da 18.ª edição do Encontro de Cadernos de Viagem de Clermont Ferrand (França), cujos premiados serão conhecidos a 17 de Novembro.
Hugo apresenta os seus desenhos como “descobertas”. “São viagens dentro do meu próprio quotidiano, dentro da minha própria vida”, sublinha o arquitecto, que ia a Nova Iorque “e desenhava o Guggenheim”. “Achava que era o mais interessante que podia desenhar”, justifica. Até que descobriu que “NY sem pessoas não é NY”. “O primeiro desenho do Guggenheim é o Guggenheim. O segundo já tem mais alguns elementos. E no último o Guggenheim está praticamente em segundo plano. Porque o Guggenheim sem aquela árvore, sem o banquinho, sem os táxis não é o Guggenheim”. Gosta de dizer que os seus desenhos não evoluíram, mudaram. Transmitem sons, luzes e sombras. Mostram as transparências de quem passa ou de quem está onde não estava quando tudo começou (e está lá, num canto, letras miudinhas, a hora do início e do fim do desenho, sempre que ele tem fim), o lixo que foi recolhido e que destapou mais cenário, o enquadramento (que Hugo escolhe com rigor) e aquele elemento que ganha todo um desenho à sua volta. “Gosto de estar desassossegado para desenhar. Nos desenhos mais emotivos estou ligeiramente desconfortável”, diz Hugo, com “três referências”, prontas a serem desconstruídas: Siza Vieira (“Ia com a minha avó às piscinas de Leça e com os meus pais ao Salão de Chá antes de ser uma coisa de luxo”), a caneta Bic (“Deixei de usar nos desenhos porque o traço desaparece com a luz) e Fernando Pessoa (“Quando estou perdido leio três ou quatro linhas”).
Em Nova Iorque, entrou no Village Vanguard e pediu a John Zorn que lhe autografasse o desenho do concerto. Indiferente à primeira abordagem, o saxofonista desculpou-se (“Pensei que eras um crítico... mas os críticos são todos gordos”) e fez com que toda a banda deixasse uma rubrica. Hugo correu os clubes de jazz nova-iorquinos. Desenhou sempre — mesmo daquela vez em que alguém interrompeu o concerto por achar que o desenhador estava a filmar. “Não estou a filmar, estou a desenhar”, respondeu Hugo, iluminado apenas pelo LCD do seu smartphone. “Estava muito frio em Janeiro, muito frio para desenhar cá fora”. Em Nova Iorque, candidatou-se a desenhar o storyboard daquele que viria a ser We The Animals, filme de Jeremiah Zagar baseado na obra de Justin Torres. “São 120 páginas, cada página tem 20 linhas e cada linha eram duas cenas. Imagina quantos desenhos tinha que se fazer... Ficava muito contente quando o realizador mostrava à equipa os desenhos e dizia ‘Estou a ver a cena, estou a ver’”.
Até aos 24 anos, Hugo não tinha saído da Península Ibérica. A primeira vez que apanhou um avião ficou a viver em Paris. Ainda está a descobrir “a potência do desenho” e a sua própria cidade através dos desenhos. Continua a experimentar ferramentas (“quando estou cómodo, mudo para outra, para estar desassossegado”), anda a descobrir o Porto (“Apetece-me desenhar todo o Porto, uma das cidades mais bonitas para desenhar que eu conheço, muito, muito desenhável”), quer voltar ao Rio de Janeiro e a Sarajevo (onde começou a desenhar porque quis o destino que a sua Pentax P30T não registasse o que era suposto registar), subir aos terraços de Valência, perseguir Kahn. “Há sítios que não conhecia antes de desenhar. Passava por eles e não dava por eles. Vão-se abrindo portas visuais.”