Viajar sem sair do mesmo lugar
Em Xangai, as janelas dos autocarros interpelaram Tatiana Macedo por aquilo que não conseguiam mostrar. Orientalism and Reverse tem o condão de não pretender levar-nos a lugar nenhum.
Na transição do milénio, dizia-se que era preciso alterar o mapa de Xangai de três em três meses. A modernização e a velocidade do progresso obrigavam a reconfigurações constantes do espaço; o contexto urbano era o de uma mudança incrivelmente rápida, voraz, imparável e inclemente. A imponência desta megalópole, a maior cidade da China e uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, galgou terreno até transformar os sinais do mundo velho em zonas caricaturais, jardins alegóricos, representações de um quotidiano esmagado; espaços tornados feiras de antiguidades; lugares visitáveis com o engodo do arcaico, do ancestral ou do matricial.
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Na transição do milénio, dizia-se que era preciso alterar o mapa de Xangai de três em três meses. A modernização e a velocidade do progresso obrigavam a reconfigurações constantes do espaço; o contexto urbano era o de uma mudança incrivelmente rápida, voraz, imparável e inclemente. A imponência desta megalópole, a maior cidade da China e uma das maiores áreas metropolitanas do mundo, galgou terreno até transformar os sinais do mundo velho em zonas caricaturais, jardins alegóricos, representações de um quotidiano esmagado; espaços tornados feiras de antiguidades; lugares visitáveis com o engodo do arcaico, do ancestral ou do matricial.
Quando a artista Tatiana Macedo aterrou em Xangai pela primeira vez, em 2008, impressionou-a a massa de autocarros que circulavam pela cidade. E, dentro deles, a quantidade de pessoas que, com o horizonte bloqueado, procurava apontar o olhar para cima, visitantes espantados e à procura dos limites da construção humana. Ficou desperta para o rasto destes “observadores das alturas” até que percebeu que muitas dessas “lagartas mecânicas” tinham como destino zonas da cidade onde permanecem os restos de um panorama tornado exótico.
Movida por esta revelação numa cidade em constante mudança, descobriu em Pudong (centro financeiro e comercial da China) um descampado em terra batida transformado em parque de estacionamento, uma espécie de terra de ninguém transitória aonde regressou várias vezes e a partir da qual se movimentavam grupos de chineses ansiosos por conhecer o que ainda resta da “cidade velha”. Foi aí, num baldio que provavelmente já não existe, que apontou a câmara para as janelas de autocarros, não para encontrar os turistas chineses que olhavam para cima, mas para observar a riqueza plástica destas cápsulas automóveis de cortinas drapeadas e a contradição simbólica potenciada pela imobilidade de um meio cuja existência se justifica apenas pelo movimento que, ilusoriamente, lhes permite viajar no tempo e os coloca no meio de dois mundos desiguais e em choque.
Xangai é uma cidade onde os contrastes se notam a cada passo, não se cansou de dizer Tatiana Macedo em conversa com o Ípsilon, no meio de uma sala com uma dúzia de fotografias que, à primeira vista, parecem contrariar aquilo que afirma (não têm contexto, mostram um tema repetitivo, pontos de vista muito parecidos.). “A experiência de estar na China, numa cidade como esta, fez-me sentir esse enorme contraste entre a antiguidade e a modernidade. Apesar de toda a ostentação, os hábitos quotidianos ainda têm muito de rudimentar; à noite, as pessoas andam de pijama na rua e fazem uma vida como se estivessem numa aldeia ou num sítio mais pequeno. No entanto, a força do progresso é tão grande que este tipo de vivência acaba por ser esmagada. É importante, no entanto, perceber que há sempre alguém que resiste a tudo isto.”
A artista explica que lugares como este em Xangai são “altamente turísticos” e são sobretudo procurados por chineses vindos de todas as regiões do país. Ou seja, “olhares orientais sobre o seu próprio património”, razão pela qual chamou à série de fotografias que agora mostra na Galeria Carlos Carvalho, em Lisboa, Orientalism and Reverse, título que supõe um olhar em ricochete e que encerra também uma provocação, ao convocar a noção de “orientalismo” no sentido que lhe é dado por Edward W. Said, segundo o qual existe um prisma ocidental sobre o oriental que exagera na diferença, que se presume superior e que aplica modelos analíticos baseados em preconceitos de todo o tipo. A construção dos olhares de um determinado ponto em relação a outro, bem como a problematização das decisões que estão na base da materialização formal desses olhares, é, aliás, tema central não só nesta como noutras obras recentes de Tatiana Macedo (veja-se o filme Seems So Long Ago, Nancy, sobre os tempos da contemplação e sobre as fricções criadas pela presença do olhar de quem controla e de quem é controlado).
Nas fotografias de Tatiana (Lisboa, 1980), que fará parte do leque de artistas que a Carlos Carvalho levará em Novembro à Paris Photo, a solidez e a rigidez das formas plasmadas numa superfície plana, bidimensional, tendem a transformar-se numa realidade mais liquefeita, sugestivamente mais profunda e de leitura tridimensional. Isto se nos detivermos a observar, por exemplo, detalhes como o ligeiro bafo que embacia uma das janelas numa das fotografias que marca o arranque da exposição. É uma das imagens preferidas da artista (haveria de se intrometer várias vezes na conversa com o Ípsilon) e dá-nos, por um lado, a certeza de um lado de cá e de um lado de lá (uma posição de quem viu) e, por outro, um subtil sinal da presença humana, um lugar de autocarro que acaba de ser desocupado (“É como se o corpo ainda estivesse ali a fazer a respiração”).
Estes sinais de presença e de uso são, aliás, uma constante nesta série (uma camisola abandonada, um par de ténis num parapeito, um alfinete cravado numa cortina...), como o são os reflexos de uma cidade que mal se adivinha (apesar de surgirem à nossa frente, parecem existir apenas nas nossas costas). “A experiência desta exposição é muito silenciosa”, diz a artista, que sublinha a intensa imobilidade sugerida por estas imagens como um trunfo: “Não sentimos que estamos a fazer uma viagem ou a percorrer um território, um lugar. Estamos parados, como estes autocarros, que não nos levam a lado nenhum. Gosto desta ideia, pressupõe alguma auto-reflexividade da parte de quem vê e vai dizendo algo como ‘Não estou a transportar-te para outro lugar que não seja aquele que estás a ocupar agora’.” Ou seja, o espectador preso na sua circunstância, com um bilhete de autocarro na mão que não o leva até lugar nenhum, a não ser até ao seu pensamento. (“Quero que estas imagens estabeleçam uma experiência relacional, pondo o espectador a olhar para dentro, para esta ausência.”)
Em alternativa, podemos ver Orientalism and Reverse como um convite que nos conduz, afinal, por um percurso circular: “Às vezes penso que esta sucessão de janelas pode funcionar como um road movie, mas giratório, como uma viagem que não sai do mesmo sítio.”