Sócrates acusado de receber seis milhões de Salgado para travar OPA da Sonae à PT
Sócrates terá arrecadado 34 milhões de euros de proveniência ilícita, 24 milhões dos quais foram encaminhados para contas na Suíça detidas pelo amigo Carlos Santos Silva. Dinheiro regressou a Portugal no início desta década e terá sido usado por Sócrates para as mais diversas despesas.
O ex-banqueiro Ricardo Salgado, que dirigiu o Grupo Espírito Santo e o banco com o mesmo nome, terá pago seis milhões de euros ao então primeiro-ministro José Sócrates para este usar o seu poder para impedir o sucesso da OPA que o grupo Sonae (proprietário do PÚBLICO) lançou em Fevereiro de 2006 à Portugal Telecom, na altura o gigante português das telecomunicações.
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O ex-banqueiro Ricardo Salgado, que dirigiu o Grupo Espírito Santo e o banco com o mesmo nome, terá pago seis milhões de euros ao então primeiro-ministro José Sócrates para este usar o seu poder para impedir o sucesso da OPA que o grupo Sonae (proprietário do PÚBLICO) lançou em Fevereiro de 2006 à Portugal Telecom, na altura o gigante português das telecomunicações.
Esta é a tese sustentada nas 4083 páginas do despacho final da Operação Marquês, assinada por sete procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal na passada segunda-feira, mas só conhecido esta quarta-feira. Os seis milhões de euros terão chegado a Sócrates através de uma conta do seu primo, José Paulo Pinto de Sousa, que já tinha aparecido referido no processo Freeport, que se centrou na forma como foi licenciado um outlet em Alcochete na altura em que Sócrates era ministro do Ambiente.
Segundo a acusação, foi a partir de 2008, já eram conhecidas as suspeitas do caso Freeport, que Sócrates decidiu deixar de usar o primo como testa-de-ferro, temendo que os esquemas que manteria fossem descobertos. Terá sido então que terá montado um novo circuito para receber luvas através de um empresário amigo, Carlos Santos Silva, que o Ministério Público acredita ser um dos testas-de-ferro do antigo primeiro-ministro.
Esta é a primeira vez na história do Portugal democrático que o Ministério Público acusa formalmente um antigo primeiro-ministro de corrupção, imputando a Sócrates um total de 31 crimes. No rol estão incluídos três de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada. O Ministério Público especifica que o antigo primeiro-ministro acumulou na Suíça 24 milhões de euros “com origem nos grupos Lena, Espírito Santo e Vale de Lobo”, dinheiro que nunca esteve em seu nome, mas do qual era o real beneficiário. A acusação sublinha que, apesar de os milhões não estarem em nome do antigo governante, o dinheiro era utilizado no “interesse de José Sócrates”. E servia para financiar todo o tipo de gastos deste, como a aquisição de imóveis, obras de arte, viagens ou exemplares do seu livro.
A acusação sustenta que José Sócrates recebeu 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015, a troco de favorecimento de interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no Grupo Espírito Santo (GES) e na Portugal Telecom (PT), bem como a garantia de financiamentos pela Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento de Vale do Lobo e favorecimento de negócios do grupo Lena.
Os 34 milhões de euros integram fundos de diversas origens: 21 milhões em entidades do GES, pagos para contas na Suíça, entre 2006 e 2009; 2,8 milhões com origem no grupo Lena, pagos através do arguido Joaquim Barroca, entre 2007 e 2008; um milhão de euros em receitas desviadas de sociedades do grupo Vale do Lobo, por ordem dos arguidos Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa, em 2008.
Os valores mostram as voltas que os quatro anos de investigação deram à tese inicial do Ministério Público, que centrava a corrupção a Sócrates no grupo Lena. A reconstituição dos circuitos financeiros das alegadas luvas permitiu ao Ministério Público perceber que a esmagadora maioria do dinheiro que veio ter às mãos do empresário Carlos Santos Silva provinham na realidade do Grupo Espírito Santo, liderado por Salgado.
Daí que depois de Santos Silva, acusado de 33 crimes, e de Sócrates, acusado de 31, apareça o antigo banqueiro Ricardo Salgado a quem são imputados 21 crimes, três de corrupção activa e três de abuso de confiança. Depois de ouvir mais de 200 testemunhas, recolher dados bancários de mais de 500 contas em Portugal e no estrangeiro e de constituir mais de 30 arguidos (só 28 foram acusados: 19 pessoas singulares e nove empresas), a equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira chegou à conclusão que os milhões que passaram pelas contas do fundador do grupo Lena, Joaquim Barroca, tinham origem no Grupo Espírito Santo e que aquela passagem só tinha o intuito de ocultar a verdadeira origem do dinheiro e o motivo que estava na base da transferência.
Diplomacia e “luvas”
Os advogados de Sócrates reagiram ainda na quarta-feira à acusação, considerando-a “romance vazio de factos e de provas” e anunciando que usarão “todos os meios do direito para a derrotar”. João Araújo e Pedro Delille vêem na investigação do Ministério Público “uma violenta campanha de difamação e condenação sumária na opinião pública” do antigo primeiro-ministro. Já o grupo Lena, que se mostrou convicto de que não será possível provar em tribunal nenhuma das acusações que impendem contra si, anunciou que deverá, à semelhança de outros arguidos, pedir a abertura de instrução do processo, numa tentativa de evitar que o caso siga para julgamento. A defesa de Salgado anunciou uma reacção para esta quinta-feira.
A Parque Escolar e o projecto para desenvolver a rede de alta velocidade e o TGV em Portugal constituem o eixo central das ligações ao grupo Lena, um dos três vértices da corrupção imputada a Sócrates. Para o Ministério Público (MP) foi Sócrates quem, já como primeiro-ministro, em 2005, “aproveitando a sua relação de amizade e confiança” com Carlos Santos Silva, o abordou. Fez dele intermediário para, “como responsável do Governo, poder apoiar a estratégia e o desenvolvimento de negócios do grupo Lena”. Ter um intermediário era fulcral. Não só usava as suas contas, como “evitava contactos directos com os administradores daquele grupo”, sublinham os investigadores. Não queria que qualquer suspeita o associasse aos negócios do grupo de Leiria. Mas se é certo para o MP que assim era, também é certo que nos bastidores, além de promover o grupo – angariando-lhe contratos – por cá e além-fronteiras, intervinha na “definição das regras de procedimento e conformação dos contratos, na [sua] celebração” e na sua “execução”.
Segundo o MP, Carlos Santos Silva firma um pacto com Joaquim Barroca, fundador do grupo Lena: Sócrates beneficiava o grupo, “instrumentalizando” as suas funções de primeiro-ministro, Barroca pagava-lhe. O primeiro-ministro agia como homem de negócios, agindo de forma “contrária à prossecução do interesse público, bem como ao princípio da legalidade e imparcialidade que norteiam e delimitam o exercício legítimo da actividade administrativa do Estado”.
Em troca, Barroca fez pagamentos de 2,8 milhões de euros para uma conta de Carlos Santos Silva na Suíça, entre 2007 e 2008. Já entre 2009 e 2014 terá transferido mais 2,9 milhões através da Lena Engenharia e Construções. Depois permitiu o uso de contas suas e do grupo Lena para a passagem e ocultação de dinheiro com origem em contas de Carlos Santos Silva. Assim foi com 14 milhões entre 2008 e 2009 e com mais 8 milhões de euros em 2011.
No total, diz o MP, passaram pelas contas de Barroca na Suíça e em contas do grupo Lena 22 milhões de euros que “provinham de pagamentos mandados realizar pelo arguido Ricardo Salgado”.
Parte dos fundos transferidos da Suíça para Portugal terão servido para investir, em 2011, em negócios a que estava ligado outro amigo de Sócrates, Rui Pedro Soares, que a acusação diz ter sido colocado pelo antigo primeiro-ministro na Portugal Telecom e já alvo de investigação pelo Ministério Público noutros processos, como o Taguspark e o Face Oculta. Os 2,5 milhões empatados por Sócrates no negócio retornaram mais tarde à sua conta bancária – que estava, como todas as outras, em nome de Santos Silva –, após a Worldcom ter sido adquirida por uma outra sociedade, a Partrouge Media, ligada a Miguel Pais do Amaral.
Voltando ao grupo Lena, com o qual o MP diz ter havido um pacto de diplomacia económica para o promover nacional e internacionalmente – assumindo Sócrates a faceta de homem de negócios –, em 2012 o volume de negócios do grupo passou a depender em mais de 50% do mercado internacional. Em boa medida, ajudaram os contactos com a Venezuela, mais uma vez, diz o MP, através de Sócrates. Conseguiu obter para o grupo a obra Gran Mission Vivena Venezuela, um vasto projecto de engenharia. Os projectos em Angola também foram importantes.
Noutro campo, também foi Sócrates, diz a investigação, que a partir de 2006 fez esforços para que o grupo Lena, no contexto de um consórcio, conquistasse a obra da rede de alta velocidade e o TGV. Existiria mesmo um memorando “confidencial” denominado “Programa de Conquista do TGV”.
O Ministério Público confirma, no despacho de acusação, que a Parque Escolar foi uma das principais financiadoras do grupo Lena. Quase 60% do valor total dos contratos públicos adjudicados, entre 2009 e 2015, ao grupo foram garantidos por esta empresa pública. Segundo o MP, naquele período foram adjudicados cerca de 138 contratos públicos ao grupo Lena, no valor 224 milhões de euros, contribuindo a Parque Escolar, com 11 contratos, para aquele total com 138,7 milhões.