A resistência da Alemanha a ciberataques russos: aborrecimento ou resiliência?

Terá a Alemanha conseguido driblar uma possível interferência russa nas eleições de Setembro, ou a Rússia desistiu? Terão os russos falhado porque os deputados alemães são aborrecidos? Ou terá sido a votação da Alternativa para a Alemanha o sucesso que Moscovo queria?

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Há meses que vários actores políticos e de segurança da Alemanha esperavam “a surpresa” russa: uma divulgação de emails, um boato, qualquer manobra que visasse influenciar o resultado das eleições do mês passado. A interferência de russos nas eleições nos EUA e França foi “directa e espectacular”, nas palavras de Joerg Forbrig, especialista em Europa Central e de Leste do German Marshall Fund em Berlim; na Alemanha, essa intervenção directa e espectacular não aconteceu.

A Alemanha antecipava algo semelhante desde 2015, quando houve um ataque informático ao Parlamento alemão – suspeita-se que foi levado a cabo pelo mesmo grupo que organizou o ataque informático que roubou emails do Comité Nacional Democrata nos EUA, e o conteúdo acabou divulgado pela WikiLeaks antes das eleições americanas. Nestes emails, via-se como o campo de Clinton tentou prejudicar a campanha de Bernie Sanders.

Em Julho, o responsável dos serviços de segurança internos da Alemanha, Hans-Georg Maassen, disse aos jornalistas que esperava tentativas russas de influenciar o resultado das eleições dali a meses, e que o Presidente russo, Vladimir Putin, certamente preferiria outra pessoa na chancelaria alemã.

A actuação de Angela Merkel foi essencial para a imposição de sanções à Rússia na sequência da anexação da Crimeia (2014), o seu partido democrata-cristão é o que na paisagem política alemã é mais duro para com a Rússia, e assim o grande prémio poderia ser conseguir afastá-la.

No caso alemão, não houve, no entanto, qualquer divulgação de informação relacionada com o ataque informático ao Parlamento. “Isto está a deixar-me preocupado”, dizia ao Washington Post, dias antes das eleições, Maksymilian Czuperski, director do Digital Forensic Research Lab do centro de estudos Atlantic Council, com sede em Washington. “Por que estão tão quietos? Parece estranho.”

Há várias teorias a explicar porque isso não aconteceu – pelo menos, de modo directo.

A quantidade de dados levada do Bundestag “é enorme”, nota Joerg Forbrig quando o P2 o entrevistou em Berlim. Mas isso não conta a história toda. São 16 GB, onde pode estar informação valiosa, ou quase nada, diz, notando que os alemães têm uma utilização do email diferente dos americanos – menor e mais seca.

Os deputados alemães poderão ainda ter um uso “mais disciplinado” dos seus computadores e das suas comunicações electrónicas depois de um escândalo, há cerca de quatro anos, envolvendo um político do SPD (Partido Social Democrata, centro-esquerda), que foi apanhado com pornografia infantil no seu computador.

Os hackers russos “podem ter ficado desapontados com o que conseguiram, pode ser seco, comedido, burocrático”, diz Forbrig. “O meu trabalho é ler estes documentos”, comentava Annegret Bendiek, do Instituto Alemão para Questões Internacionais e de Segurança, ao Washington Post. “Nem imaginam. São tão chatos.”

Mais tarde, houve outros ataques, incluindo um a uma forte aliada da chanceler, Julia Kloeckner, da Renânia Palatinado, que é ainda a vice-presidente da CDU. “Isso sugere que poderiam ainda estar a tentar encontrar coisas, especialmente de pessoas do círculo próximo de Merkel”, diz Forbrig, ou seja, “uma repetição do Comité Nacional Democrata”.

Pode ainda ter sido, simplesmente, uma opção: a dinâmica geral era já mais favorável à Rússia, com Merkel em queda (afinal caiu mais do que o antecipado e teve o seu pior resultado nas quatro eleições a que concorreu), a extrema-direita da Alternativa para a Alemanha (AfD) entra no Parlamento, as franjas estão fortalecidas, há conversações demoradas à vista para concluir um governo. “A situação já está a ir ao encontro do desejado”; assim, interferir seria criar mais um problema. “E os russos são avessos ao risco”, sublinha Forbrig.

A interferência russa nos EUA está a ser analisada ao pormenor pelo FBI e a trazer inconvenientes, e nenhuma vantagem directa. Já a interferência nas eleições francesas (uma série de emails da campanha de Emmanuel Macron publicados online a dois dias da votação, o boato de que seria homossexual) a não ter tido qualquer efeito, poderia não valer a pena arriscar.

Isto não quer dizer, no entanto, que não tenha havido interferência, de vários modos menos espectaculares, na Alemanha.

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Gleb Garanich/ reuters

“A nossa Lisa”

Em 2016, o “caso Lisa” tornou-se um exemplo de um ataque oportunista – se foi um embaraço para a Rússia ou teve algum resultado ainda está em discussão.

Lisa, 13 anos, alemã de origem russa, não apareceu uma noite na sua casa em Marzahn, Berlim, uma zona de forte comunidade russófona (a maioria dos cerca de 3,1 milhões de imigrantes de países da antiga União Soviética são de etnia alemã e quando vieram para a Alemanha, muitos nos anos 1990, tiveram direito à cidadania por causa da ascendência).

Quando regressou, Lisa disse aos pais que tinha sido agredida e violada por três homens que pareciam ter origem árabe. No entanto, a polícia percebeu pelo telemóvel que ela tinha estado em casa de um amigo, e Lisa acabou por contar que após ter tido problemas na escola, com medo da reacção dos pais, não tinha voltado para casa, e tinha então inventado a história.

Mas mesmo que prontamente desmentida pela polícia, três canais russos puseram-na logo a circular.

Um canal russo muito popular entre russos alemães, conta o New York Times, o Channel One, apresentou a história como um exemplo dos perigos da política de Merkel deixar entrar refugiados. “Os pais de Lisa dizem que a polícia simplesmente se recusa a procurar os criminosos”, dizia o repórter, Ivan Blagoy, num vídeo entretanto visto mais de um milhão de vezes.

No dia seguinte, a RT (antiga Russia Today, canal criado para melhorar a imagem da Rússia no estrangeiro) fez uma reportagem de uma manifestação de apenas uma dúzia de pessoas promovida pelo partido neonazi NPD, e o site noticioso Sputnik (serviço de notícias do Governo russo) ia mais longe, explorava o filão de “encobrimento da polícia”: o caso de Lisa não era o único, e haveria mais refugiados violadores à solta, com a conivência da polícia.

O porta-voz do Ministério Público da cidade de Berlim, Martin Steltner, contou ao New York Times como deu várias entrevistas, incluindo à RT e ao Sputnik, explicando que a menina tinha voltado atrás na acusação e confessado que apenas tinha passado a noite fora.

Para complicar ainda mais a história, descobriu-se no decurso da investigação que Lisa tinha tido, meses antes, relações sexuais com dois homens, apesar de consensuais, como ela não tinha ainda idade para consentimento (que é 14 anos na Alemanha), os dois foram investigados por abuso sexual – um não foi acusado pois não sabia a idade de Lisa, o outro foi acusado e condenado, com pena suspensa.

A família manteve sempre a versão original e as pequenas manifestações tornaram-se maiores. “Os nossos filhos estão em perigo”, diziam os cartazes. Passadas duas semanas, estavam 700 pessoas em frente à chancelaria a protestar.

Mas só quando o ministro russo dos Negócios Estrangeiros falou sobre o assunto, mesmo após os desmentidos da polícia, é que os responsáveis alemães perceberam que o caso estava a ser usado como arma: “É óbvio que a menina não desapareceu por vontade própria durante 30 horas”, disse Sergei Lavrov. “Espero que estes problemas não sejam varridos para baixo do tapete e não haja mais casos como o da nossa Lisa.”

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, foi directo na reacção, acusando o seu homólogo de “propaganda política”.

Forbrig vê o caso como “um embaraço” para os russos, apanhados a promover uma história comprovadamente falsa. Há quem veja na reacção alemã uma lição, de maior transparência: foi dada toda a informação sobre o caso, e foram divulgadas as tentativas de interferência. As acções de desestabilização tendem a funcionar apenas se ninguém as antecipar.

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FELIPE TRUEBA/ reuters

Comunidade russófona cortejada pela AfD

A maioria dos alemães confia nos media tradicionais e tendem a informar-se, e formar a sua opinião, pela televisão, rádio, e jornais, e não pelas redes sociais.

Apesar disso, nas comunidades com raízes fora da Alemanha há excepções; assim como imigrantes de origem turca consomem sobretudo media turcos, os russófonos consomem muito media russos sobretudo nas redes sociais: segundo dados de 2016, 40% apenas usam meios de comunicação online, em língua russa, como fonte de informação.

A comunidade russófona foi ainda activamente cortejada pela AfD. O partido de extrema-direita, diz Forbrig, foi o primeiro a fazer um esforço de se dirigir a estes eleitores, muitas vezes em russo, e procurando candidatos russófonos para as suas listas. “Foram o primeiro partido a dizer aos russos: ‘vocês são parte da nação alemã’”, disse à revista norte-americana Time Alexander Reiser, fundador de um grupo russófono de Berlim (que não apoia a AfD).

Esta comunidade é a maior de alemães com ascendência estrangeira em termos de população com direito de voto (mais do que a comunidade turca), estimando-se que, com 2 a 2,4 milhões de eleitores, represente cerca de 3% do total de votantes.

Quando a AfD se transformou de um partido eurocéptico para um partido sobretudo islamófobo e anti-migração, encontrou nesta comunidade um público muito receptivo à mensagem: a entrada de refugiados muçulmanos era vista com apreensão por muitos.

“Os russo-alemães têm um medo profundo do islamismo”, sublinhou Alexander Reiser, que tem tentado desfazer mitos como o de Lisa na comunidade (e por isso foi ele próprio alvo de difamação). “Este medo é alimentado pelas notícias nos media russos que apresentam a entrada de refugiados como uma catástrofe para a Europa”.

A colaboração entre a AfD e alguns responsáveis do círculo de Vladimir Putin não é escondida: Alexander Gauland, um dos cabeças de lista a estas eleições, foi o primeiro de vários líderes a visitarem a Rússia; Frauke Petry, antiga figura de proa do AfD, que entretanto saiu procurando formar, ela própria, um novo partido, também esteve em Moscovo.

Esta cooperação (que culminou mesmo com um acordo entre as alas jovens da AfD e do Rússia Unida para cooperação formal) ajuda ambos os lados: os responsáveis russos apresentam os políticos alemães (muitos deles de um partido acabado de formar e portanto sem grande experiência) em conferências como prova de que a Rússia não está isolada, o grau de apoio russo à AfD não é claro: houve materiais de campanha doados à AfD por um generoso anónimo; muitos suspeitam que possa ter sido um russo. Muitos dentro da AfD partilham de alguns aspectos da ideologia do Kremlin: anti-liberal, anti-americana, homofóbica.

Outra vantagem para Putin em influenciar os russos-alemães é que como a maioria tem dupla nacionalidade, podem também votar nas eleições na Rússia.

Fake news para descredibilizar Merkel

A voz menos entusiasta pela Rússia da AfD veio de Alice Weidel (que com Gauland fazia a equipa de candidatos principais). Não pela posição da Rússia face aos homossexuais (Weidel é lésbica), mas sim pela oposição à NATO que a economista considera essencial para a paz e prosperidade da Alemanha. Na campanha da AfD, no entanto, a sua voz sobre o assunto não se ouviu.

O apoio à AfD é uma das duas estratégias da Rússia para a Alemanha a mais longo prazo. A outra é descredibilizar Merkel em países onde isso é mais fácil do que na Alemanha, nota Joerg Forbrig.

Isto tem vindo a ser feito com o uso de notícias falsas sobretudo em relação a resultados da sua política de refugiados, com o objectivo de dividir os europeus e alienar o apoio de alguns. “Se virmos na Europa Central – Hungria, Polónia, República Checa – há muita informação falsa a desacreditar Merkel por causa da sua política de refugiados. Qual é a ideia por trás disso? É basicamente dividir os europeus entre si.”

Num testemunho ao Senado norte-americano a analista Constanze Stelzenmüller, da Brookings Institution, explicava que as chamadas “medidas activas” da Rússia “são destinadas a uma audiência interna tanto quanto ao Ocidente: mostrar que a Europa e os EUA não são alternativa à Rússia de Putin”, declarou. “A vida sob Putin, segundo esta mensagem, pode ser menos do que perfeita, mas pelo menos é estável”.

Num relatório no European Council on Foreign Relations, o coordenador do Centro para Segurança Europeia, Mark Galeotti, sublinha que nada disto é resultado de um plano muito coordenado. “A campanha da Rússia tem uma base alargada e a maioria das iniciativas vem de pessoas tanto de dentro como de fora do aparelho do Governo, guiadas pelo que acham que o Kremlin quer, e não por um plano detalhado”.

Putin nega que a Rússia leve a cabo ataques – “nunca interferimos na vida política e nos processos políticos de outros países” – embora viesse a admitir, em Junho, que “patriotas” possam estar a fazê-lo de modo independente.

Um relatório recente da Alliance for Securing Democracy, do German Marshall Fund nos EUA, indicava que a Rússia interferiu em pelo menos 27 países da Europa e América do Norte desde 2004, com estratégias desde ataques informáticos a campanhas de desinformação.

Os alvos começaram por ser antigas repúblicas soviéticas próximas do ocidente e passaram depois para a Europa Ocidental, e depois EUA e Canadá. “Para muitos americanos, a questão da interferência russa nas eleições americanas veio do nada”, comenta Laura Rosenberg, directora da organização. “A maior parte das pessoas acha uma loucura que isto seja parte do guião russo há mais de uma década.”