Em cada Brasil uma história, em cada design um projecto
Exposição Como se pronuncia design em português: Brasil Hoje mostra objectos sem fetiche nem estrelas, mas com contexto – de Lula a Dilma. Há tornozeleiras para vigiar presos, champô para todos e sim, algum calçado de borracha.
O Brasil não cabe numa sala ou numa peça-ícone, nem a sua identidade pode ser contida numa exposição ou num parágrafo eficazmente explicativo. Mas cabe em parte num frasco de champô. Um champô que pode falar de classes sociais, de inovação, do estado do design num país que é um mundo e que por isso mesmo, na exposição Como se pronuncia design em português: Brasil Hoje, é olhado a partir de alguns objectos, mas sem fetiches, e sobretudo pelo prisma dos projectos.
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O Brasil não cabe numa sala ou numa peça-ícone, nem a sua identidade pode ser contida numa exposição ou num parágrafo eficazmente explicativo. Mas cabe em parte num frasco de champô. Um champô que pode falar de classes sociais, de inovação, do estado do design num país que é um mundo e que por isso mesmo, na exposição Como se pronuncia design em português: Brasil Hoje, é olhado a partir de alguns objectos, mas sem fetiches, e sobretudo pelo prisma dos projectos.
“Não procuro a identidade brasileira, que é uma coisa em que não acredito”, diz logo Frederico Duarte, que tem nesta exposição para o Museu do Design e da Moda (Mude), como o próprio admite, a sua “big break” como curador. Estuda e visita o Brasil e os seus designers desde 2009, trabalhou neles na tese de mestrado (School of Visual Arts, Nova Iorque) e no doutoramento em curso (Birkbeck College, University of London e Victoria & Albert Museum). “A prática do design é em si cosmopolita e multinacional”, continua, e o Brasil é tão variado, de tantas cores, estados e possibilidades, que tentar fechá-lo numa identidade é excluir sempre alguém e estabelecer relações de poder.
Brasil Hoje pode ser um retrato, sim, com “o designer como protagonista”, mas é uma “exposição não-icónica de design”, sem irmãos Campana nem a busca de cargas semióticas nos objectos, explica o investigador português ao PÚBLICO. Procuram-se as histórias de bastidores, as necessidades de uma população, a vontade de uma empresa, o desenrascanço de um designer, um protesto. Há bancos Caipira da Marcenaria Baraúna, uma bomba de água Hacker para resolver problemas de abastecimento, roupa colaborativa ou muletas. Todos contam a sua história e uma história sobre o Brasil hoje – ou melhor, desde o início do século XXI.
Para a sua tese, e para esta exposição integrada na programação do Mude Fora de Portas, e por isso instalada até 31 de Dezembro no Palácio dos Condes da Calheta, em pleno Jardim-Museu Agrícola Tropical em Belém, Frederico Duarte entrevistou dezenas de pessoas. Das viagens traz na fala termos do português mais bolado do Brasil. Tem na ponta da língua os últimos casos, as grandes empresas, aquele filme ou as estatísticas saídas do país. Sabe detalhes sobre os impostos ou os duches dos brasileiros, porque eles são importantes para falar sobre o seu design. “Como é que os designers estão a trabalhar sobre o contexto” é o grande mote de uma mostra que quer “trocar o foco da identidade para o contexto”, resume. É importante perceber que a muleta permanente feita por jovens designers, por exemplo, fala também de como “o Brasil vai envelhecer em 25 anos o que França envelheceu em 180”, dispara o curador.
Em 2009, na sua primeira visita, nascia uma nova oportunidade. “Eu era ao mesmo tempo um estrangeiro, mas que falava a língua”, descreve o investigador e docente que já escreveu sobre design no PÚBLICO, na Artecapital ou na Architecture Review – e que assim chegava mais facilmente aos profissionais brasileiros que, muitas vezes, não falavam senão português. O momento coincidia também com um outro nascimento, a que a propaganda chamou de Novo Brasil, forjado pela presidência de Lula da Silva, em que até os políticos queriam o design brasileiro ao seu lado. Na campanha desse ano, Dilma Rousseff, Marina Silva e José Serra debatiam os temas do design e da moda à São Paulo Fashion Week, num caminho já indiciado, três anos antes, pelo regresso da Bienal Brasileira de Design "com o apoio federal" (e com um catálogo em que se incluía "um texto do próprio Lula”).
A sua investigação académica voltou-se para a década 2004-14: “os bons anos do Brasil, segundo governo Lula, primeiro governo Dilma, que corresponde a um período de crescimento económico, de mobilidade social e de conquista de direitos”. Na exposição, alarga um pouco as fronteiras temporais para todo o século XXI existente. Sucedem-se as salas com materiais tão díspares quanto placas com nomes de rua para o Rio de Janeiro, um mapa de transportes para Belo Horizonte ou uma luta entre empresas de transportes municipais concorrentes, mas também a história dos sapatos Melissa feitos pelas suas utilizadoras, o desdobrar de um par de Havaianas noutros produtos. Ou o champô.
Champô para o mundo
É apenas um bloco da exposição, que inclui 49 projectos e uma livraria, mas é fulcral. “A embalagem de champô Natura Sou é o objecto mais importante da exposição e um dos projectos mais importantes da minha tese.” Neste projecto mistura-se uma consequência dos tais anos bons do Brasil – “a ascensão da classe C” – com a reacção (ou não) do design a esse fluxo de novos consumidores. São “40 milhões que saíram da pobreza, cem milhões de uma classe média baixa”, diz o curador, ainda que desconfortável com estas definições estratificadoras. A maioria das empresas e designers “não entendeu” esta oportunidade. “A minha conclusão, um bocadinho trágica, é que foi uma oportunidade perdida.” Ainda assim, entre a banheira e o chuveiro, houve quem chegasse lá.
Em 2011, a conhecida empresa de cosméticos brasileiros Natura “convidou dois dos maiores estúdios de design do Brasil, a Tátil Design, conhecida pela identidade dos Jogos Olímpicos do Rio, e a Questto
Nó para um novo produto disruptivo, que consumisse menos recursos, fosse mais barato e tivesse uma mensagem de consumo consciente”. A forma final do novo champô, suave e mole, não conta metade da história. Pensado para chegar a um consumidor menos abastado, a verdade é que já antes este tinha arranjado maneira de usar a marca, com truques. “Muitos consumidores usavam erradamente uma embalagem de refill, aquelas embalagens moles, como embalagem final, com uma série de gambiarras – um improviso, um jeitinho brasileiro ou português”, conta Duarte. Tudo isso junto, e num contexto em que “o Brasil é o maior mercado do mundo, per capita, para higiene e beleza – tomam mais banho do que qualquer outro povo" –, resultou na "primeira embalagem soft pouch final do mundo, patente brasileira”, que pode tornar-se num novo padrão mundial em materiais e design.
Outra peça feita no Brasil é uma tornozeleira electrónica, uma pulseira de vigilância remota de criminosos condenados e adequada às particularidades do sistema penal brasileiro – os reclusos por vezes fazem limpeza de fossas sépticas e “a tornozeleira tem de resistir a isso”, diz o curador, que mostra o objecto também graças a uma página do diário O Globo que, além de detalhar o sistema, também mostra alguns dos presos por crimes colarinho branco que a usam. A exposição conta ainda a história de uma casa, de jogos de tabuleiro de tom político, da jarra Pós-Tropical de Guilherme Wentz ou de marcas de roupa que fazem de todos nós designers como a Away To Mars. Simula-se uma loja de móveis, fazem-se perguntas sobre o design ou sobre o Brasil.
Brasil Hoje faz parte da programação de Lisboa 2017 – Capital Ibero Americana da Cultura, e vem em parte de uma mostra de 2014 do Mude em que se perguntava pela primeira vez Como se pronuncia design em português. A linha em que se insere esta investigação sobre o Brasil “real, quase caleidoscópico”, como diz a directora do museu, Bárbara Coutinho, terá como capítulo seguinte Tanto Mar. Fluxos transatlânticos pelo design, com curadoria de Coutinho e da jornalista, crítica e comissária brasileira Adélia Borges, prevista para 27 de Janeiro de 2018.