Uma casa portuguesa, sem certezas nenhumas
Uma Casa Portuguesa foi escrita em África, num hotel cosmopolita de Moçambique, e nasceu de um episódio picaresco.
A história já foi aqui contada, nestas crónicas, há precisamente uma década (em Março de 2007). Mas porque se falou da canção Uma Casa Portuguesa a propósito de uma polémica recente, a ela voltamos. Até porque muitos não sabem como nasceu. Tal canção, que teve um enorme sucesso depois de ter sido cantada por Amália Rodrigues, no início dos anos 1950, tem alguns versos que ainda hoje a conotam com a defesa de um espírito conformista face à pobreza: “No conforto pobrezinho do meu lar,/ Há fartura de carinho./ A cortina da janela é o luar,/ Mais o sol que bate nela.../ Basta pouco, poucochinho p’ra alegrar/ Uma existência singela.../ É só amor, pão e vinho/ E um caldo verde, verdinho/ A fumegar na tijela.” Isto a par do espírito franco de quem partilha o que tem com quem chega: “Quando à porta humildemente bate alguém,/ Senta-se à mesa com a gente!/ (…) A alegria da pobreza/ está nesta grande riqueza/ De dar e ficar contente.” Mas foi pela música do refrão, de talhe saltitante e folclórico, que a cantiga se impôs aos ouvidos, nacionais e internacionais, tendo a Casa hoje muitas versões, entre as quais a do brasileiro João Gilberto.
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A história já foi aqui contada, nestas crónicas, há precisamente uma década (em Março de 2007). Mas porque se falou da canção Uma Casa Portuguesa a propósito de uma polémica recente, a ela voltamos. Até porque muitos não sabem como nasceu. Tal canção, que teve um enorme sucesso depois de ter sido cantada por Amália Rodrigues, no início dos anos 1950, tem alguns versos que ainda hoje a conotam com a defesa de um espírito conformista face à pobreza: “No conforto pobrezinho do meu lar,/ Há fartura de carinho./ A cortina da janela é o luar,/ Mais o sol que bate nela.../ Basta pouco, poucochinho p’ra alegrar/ Uma existência singela.../ É só amor, pão e vinho/ E um caldo verde, verdinho/ A fumegar na tijela.” Isto a par do espírito franco de quem partilha o que tem com quem chega: “Quando à porta humildemente bate alguém,/ Senta-se à mesa com a gente!/ (…) A alegria da pobreza/ está nesta grande riqueza/ De dar e ficar contente.” Mas foi pela música do refrão, de talhe saltitante e folclórico, que a cantiga se impôs aos ouvidos, nacionais e internacionais, tendo a Casa hoje muitas versões, entre as quais a do brasileiro João Gilberto.
Porém, ao contrário do que os versos possam sugerir, Uma Casa Portuguesa não foi escrita por um propagandista do ruralismo ou do fatalismo lusitano nem nasceu no Portugal profundo. Foi escrita em África, num hotel cosmopolita de Moçambique, e nasceu de um episódio picaresco.
A informação veio de um seu contemporâneo, Rui Novais Leite Monteiro, também ele a viver à época na antiga colónia portuguesa e conhecedor da história. Ele veio contá-la, na altura, ao jornal, e as palavras seguintes tentam reproduzi-la. Certo dia, na década de 40 do século XX, dois homens sentaram-se numa sala do Hotel Girassol, na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, hotel que ainda existe no mesmo local e com a mesma fachada, agora com o nome de Girassol Bahia Hotel. Ora os dois homens eram Reinaldo Ferreira (1922-1959, poeta, filho do célebre Repórter X) e Vasco Matos Sequeira (1903-1973, filho do autor teatral Gustavo Matos Sequeira), que na altura se entretinham a fazer versos… pornográficos. Talvez porque achasse a coisa imprópria para o lugar, o maestro Artur Fonseca, ali presente, recordou aos dois divertidos amigos que estavam numa casa portuguesa, aviso que trazia um “respeitinho” implícito. Reinaldo não se conteve e disse: “Ora aí está um bom título para uma canção!” Ao que o maestro terá retrucado: “Com certeza!” E assim, na vulgar modorra de um hotel português plantado em África, nasceu a Casa. E seria o maestro Artur Fonseca, que na verdade foi involuntariamente o autor do mote (e do refrão), o autor da música.
A canção não foi feita para Amália nem sequer se estreou na voz dela. Difundiu-a na rádio, primeiro, uma cançonetista amadora de Moçambique, Sara Chaves, depois de a ter estreado num sarau em honra da embaixada do Colégio Militar de visita a Moçambique. E depois gravou-a João Maria Tudella, num disco só com músicas de Artur Fonseca (na capa vê-se Tudella ao piano e Fonseca de pé, apoiado no tampo). Amália só a gravaria depois, por sugestão de João Maria Tudella, que lha mostrou e lhe sugeriu que a cantasse. E assim Uma Casa Portuguesa teve projecção mundial.
A tal ponto que, conforme conta Vítor Pavão dos Santos no seu livro O Fado da Tua Voz, Amália e os Poetas (Bertrand, 2014), até o grande guitarrista Jaime Santos arriscou uma réplica (“bem fraca e mesmo de mau gosto”), Lar português, onde se cantava “A nossa casa é um ninho/ Pobrezinho onde há carinho/ Alegria pão e vinho”. Amália, diz-se no livro, não gostou dela mas teve vergonha de a recusar e lá a cantou, a contragosto.
Quanto a Uma Casa Portuguesa, a relação de Amália com ela não é linear. Há gravações vídeo onde isso é patente. Uma, onde lha pedem e ela diz: “Querem que eu vá para casa?” E, voltando-se para trás, pede aos músicos: “Barco negro!” Outra, onde depois de a cantar, diz ao entrevistador (a gravação é francesa, em ina.fr): “É… A Casa Portuguesa é uma coisa… É engraçado, mas já estou farta de cantar a Casa Portuguesa.” No entanto, conhecendo o apuro e a arte de Reinaldo Ferreira como poeta, custa a acreditar que na letra não haja mais ironia do que exaltação da pobreza (não dos pobres, que a não cultivam). Nunca o saberemos. Sabe-se sim que a fama concedida à Casa é a que foi negada ao poeta. Falaremos disso na próxima semana.