Clooney faz a comédia da sua ira, Samuel Maoz dança com a sua guerra
Uma comédia sanguinolenta escrita pelos Coen: o realizador de Suburbicon fala da América de Donald Trump. Foxtrot, entre o sonho e a realidade: o israelita Samuel Maoz faz-nos sentir o estado de guerra.
“The angriest times”. Agora é George Clooney que chega, depois de Alexander Payne (Downsizing), Paul Schrader (First Reformed), Guillermo del Toro (The Shape of Water), para encerrar uma primeira parte da competição do Festival de Veneza que foi estrategicamente dominada, em tons de comédia, fábula ou com austeros diálogos sobre a fé, pela América.
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“The angriest times”. Agora é George Clooney que chega, depois de Alexander Payne (Downsizing), Paul Schrader (First Reformed), Guillermo del Toro (The Shape of Water), para encerrar uma primeira parte da competição do Festival de Veneza que foi estrategicamente dominada, em tons de comédia, fábula ou com austeros diálogos sobre a fé, pela América.
Chega Clooney, que é o mais hábil a articular sobre racismo ou consciência ecológica. Chega Clooney para fornecer generosamente política e espectáculo – com uma credibilidade que o livra de suspeitas na forma como gere civismo e narcisismo, algo que, por exemplo, o chines Ai Weiwei, outra estrela empenhada (apresentou em concurso no festival o documentário Human Flow, sobre a crise dos refugiados), não conseguiu conquistar.
Clooney chegou com os irmãos Coen. Isto é: Suburbicon parte de um argumento que Joel e Ethan tinham escrito nos anos 80, logo a seguir a Blood Simple (portanto, está manchado de sangue), história de uma família de crápulas num subúrbio só para brancos que nos anos 50 se chamou realmente Levittown, na Pensilvânia – eram 17 mil casinhas ideais.
Chama-se agora Suburbicon, ali vive o casal interpretado por Matt Damnon e Julianne Moore. Os dois fazem coisas horríveis – ele cada vez mais a especializar-se em papéis de homem tão normal que horroriza (já era assim em Downsizing), ela reactivando com facilidade o desespero de dona de casa que perde o contacto com a realidade exterior e parece viver debaixo de água (como, claro, em Safe, de Todd Haynes).
A este american way of life, e para reclamar parte do sonho americano, chega uma família negra. O subúrbio vira-se para eles, depois vira-se contra eles, e explode em violência. Mas ninguém repara em Damon e Moore, que despacham corpos a torto e a direito.
Foi esta a história, originalmente dos Coen, de que Clooney se lembrou, com o seu co-argumentista Grant Heslov, quando Donald Trump ia fazendo a sua campanha eleitoral e falava na construção de muros nas fronteiras para, segundo ele, impedir que os maus entrassem nos EUA. Um argumento dos anos 80 prestava-se a uma leitura actual, prestava-se a veicular a sua ira. Acrescenta Clooney que não é surpresa que o filme que desse argumento foi feito, tendo sido rodado antes de Charlottesville, pareça ter antecipado os acontecimentos de violência racial nessa cidade da Virgínia. Não é surpresa, diz, porque Charlottesville não foi um acontecimento. Charlottesville é a América, um país que não sanou os seus conflitos. O “Make America great again” era o lema dos “anos 50 brancos e heterossexuais”, essa ideologia continua no interior e é intrínseco usar o exterior como bode expiatório.
Isto nas palavras de Clooney flui com uma leveza de pluma. Em Suburbicon a organização entre o que uns fazem e o que outros não vêem, porque estão a olhar para outro lugar, é uma estrutura óbvia, mais pesada que tudo o resto. E estamos sempre a reconhecer os Coen, para além do mais. Clooney, que como actor sabe o que a casa gasta (O Brother, Where Art Thou?, Intolerable Cruelty, Burn After Reading), não pode deixar, como realizador, de se sujar como pode com sangue e grotesco. Temos então um objecto sempre a fazer-nos olhar para dois lados, para imagens que nos dizem que “é real”, até aconteceu, vimos nas notícias, e para bonecos de caricatural desenho que nos fazem sentir que é postiço. Mas é um filme de “angriest times”. Clooney testemunhou o Watergate. Nem aí, explica, viu tanta gente “zangada”. A raiva dele, conta, foi crescendo durante a rodagem de Suburbicon. Este é o filme da sua ira.
Estado de guerra
A complicada convivência entre a sinceridade da catarse e a manipulação artificiosa: eis também a ginástica que tem de seguir o espectador de Foxtrot, de Samuel Maoz (competição). Soldado israelita, "morreu" na primeira guerra do Líbano, em 1982, e só "renasceu" quando, 28 anos depois, realizou Lebanon, que receberia o Leão de Ouro em Veneza 2009. Maoz, e lembramo-nos de declarações dele dessa altura, quis, ao meter a sua experiência autobiográfica no interior do tanque de guerra, enfiar aí também o espectador, para que este, em vez de perceber, sentisse.
Filme sobre a intimidade e as emoções das pessoas que habitam um país em conflito (portanto, ainda um filme sobre o estado de guerra), Foxtrot gesticula de novo dessa maneira. Um casal perde o filho. Perdeu-o? Não, a notícia que lhes chegou foi um erro. Foi mesmo uma informação errada, ou este casal sonhou? É assim, manipulando a realidade como sonho, e o sonho como realidade, criando mortes e renascimentos, pondo artifício na realidade e realismo no que a mente sonhou, que o realizador quer fazer o espectador “sentir”. Arrasta-o para a dança. A partir de certa altura, Maoz fica a dançar sozinho.