T’as d’beaux yeux, tu sais
O perfeito Becker, o pessimista Duvivier, o “génio” e a “puta” Renoir — dois em um, descreveu Gabin. Ah, Gabin, o proletário trágico de mortes líricas e o burguês autoritário de sereno controle.
Bertrand Tavernier tem memórias de, na II Guerra, ser levado pela mãe para uma cave para escapar aos bombardeamentos. “Mas não tenho memória de uma bomba. A grande memória é a de me levarem para o telhado e ver aquelas luzes, e a excitação. Atribuo essas luzes aos americanos, mas foi mais tarde que relacionei. Na altura, para mim, era puro fogo-de-artifício, e os gritos e os aplausos...” Os aliados libertavam Lyon. “Se as luzes têm importância na minha vida, foi depois dessa tarde num terraço.”
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Bertrand Tavernier tem memórias de, na II Guerra, ser levado pela mãe para uma cave para escapar aos bombardeamentos. “Mas não tenho memória de uma bomba. A grande memória é a de me levarem para o telhado e ver aquelas luzes, e a excitação. Atribuo essas luzes aos americanos, mas foi mais tarde que relacionei. Na altura, para mim, era puro fogo-de-artifício, e os gritos e os aplausos...” Os aliados libertavam Lyon. “Se as luzes têm importância na minha vida, foi depois dessa tarde num terraço.”
A luz do cinema passou a ser euforia — como a Libertação. Godard disse, numa homenagem que Tavernier e o Instituto Lumière lhe fizeram: “Há uma coisa que nos une, a Bertrand e a mim, somos os dois crianças da Libertação e da Cinemateca.” É essa citação que abre Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, é isso que está — libertação da alegria, da aventura — nas imagens de Antoine et Antoinette (1947) e Les rendez-vous de Juillet (1949). São os filmes, de imensa esperança e a necessitar de urgente (re)descoberta, realizados por Jacques Becker (1906-1960), cineasta mais que perfeito para Tavernier. Dedica-lhe a primeira meia hora do seu documentário.
Nesses filmes, Paris era uma cidade que podia de novo ser descoberta, experimentada — o jazz fixava-se nos clubes de Saint Germain —, as personagens tornavam-se intrépidos exploradores, sem medo de atravessar o Sena em viatura (mas note-se: não por uma ponte...). São filmes de grupo, em que um colectivo amparava o desejo de evasão de cada indivíduo. São cumes da arte de Becker, a quem Tavernier atribui as características de rigor moral e rigor artesanal, e imaginação. Era o “cineasta ideal”. Um dia Tavernier chegou a dizer que “aquilo que Robert Bresson teorizava” existia de forma “natural” em Becker. Não será por acaso talvez que em Le trou (1960) o cineasta faça uma síntese, quase coreográfica, da aventura humana, através dos gestos e esforços de homens que, numa célula prisional, trabalham juntos as possibilidades de fuga. Um filme bressoniano, claro.
A coisa mais bonita que mostra a Viagem pelo Cinema Francês de Bertrand Tavernier é esta: a expectativa e a responsabilidade que foram depositadas no cinema como espelho do colectivo. Não é por acaso que começa com Becker e acaba com Claude Sautet (1924-2000, realizador de Max et les ferrailleurs, 1971, César et Rosalie, 1972, Vincent, François, Paul... et les autres, 1974). São cineastas de um discreto, invisível virtuosismo na forma como passavam do privado ao público, do individual ao grupo — Tavernier assumiu essa herança na sua estreia como realizador, L’horloger de St Paul, de 1974, e ainda é visível em L.627 (1992). Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier, três horas de duração, vem dos anos 30 e chega até aos anos 70, da Frente Popular, coligação de partidos de esquerda que governou a França entre 1936 e 1938, aos anos Pompidou, de 1969 a 1974; liga Marcel Carné, Jean Renoir, Jean Vigo, Julien Duvivier, Claude Autant-Lara, Claude Sautet... Não é um documentário sobre filmes do passado, é a história de um pacto, entre o colectivo e a sala de cinema, que não se sabe em que estado está.
Tavernier continua — falando connosco — a sua visita à memória dos anos 30 e 40 franceses, o pedaço mais eufórico e lírico do filme e que tem motivado reacções de surpresa. Como se uma nova hierarquia estivesse a ser reconfigurada. É um grande afecto pelo do cinema feito imediatamente antes, durante e depois da II Guerra, tirando da obscuridade nomes esquecidos, alguns vilipendiados pela geração — os críticos que seriam a futura nouvelle vague — que declarou o que não valia, o “cinéma de papa”, e o que era moderno.
“Morreu muito jovem Jacques Becker. Nunca teve tempo para comentar a sua vida. Jean Renoir passou os últimos 25 anos de vida a falar dos seus filmes e a comentá-los a toda a gente. Em universidades, em entrevistas, em filmes. Becker morreu antes de as entrevistas se tornarem moda e antes de serem veículo para os realizadores falarem da sua obra. Há uma entrevista dele, nada mais. Os seus filmes são difíceis de catalogar, cada um parece diferente. Tinha imensa imaginação e a imaginação não é bem recebida pela crítica. Aconteceu a Becker o que aconteceu a Michael Powell. Quantos anos foram necessários para Powell ser levado a sério?” Compara Becker a Powell e isso leva-nos a Falbalas (1945), porque é um filme, rodado durante a Ocupação, que se expande da realidade à loucura, porque Raymond Rouleau, que interpreta a personagem de um costureiro arrebatado, leva-nos ao Anton Walbrook dos filmes de Powell (e aos manequins do Casanova de Fellini, já agora).
Outro cineasta: Julien Duvivier (1896-1967), pessimista e perfeccionista, autor de filmes obsessivos em que o cinema é testemunha da afirnação do mal. Veja-se o final de La belle équipe (1936), vejam-se La charrette fantôme (1939) ou Voici le temps des assassins (1954).
“Era muito tímido. Era o oposto de Renoir. Para ele realizar era tão importante, que não queria falar disso. Já Renoir estava sempre a receber e a elogiar os jornalistas. Uma vez perguntei qualquer coisa a Duvivier, disse a palavra ‘Porquê...’ e ele bruscamente: ‘Porque não?... Que pergunta parva.’ Estava sempre de mau humor, a gritar. Um dia percebi porquê, quando li um livro de Daniel Fuchs [John Ford: The Man and His Films] em que ele dizia que John Ford era um homem generoso e simpático, mas que no set era frio, violento, mau... porque nunca estava feliz com o que estava a fazer, não achava que estivesse à altura da fasquia que estabelecera. Duvivier era assim. Tinha uma concepção única de cinema, não tinha tempo para jornalistas. Alguém disse que, quando morreu, já não havia ali coração, estava exausto, tinha-se gasto. Era muito tímido e ultrapassava isso com os gritos.”
O génio e a puta
Chegamos a Renoir. Tavernier relembra conversas que teve com Jean Gabin. Quando o actor lhe disse sobre o realizador de A Grande Ilusão (1937): “Como realizador, um génio. Como homem, uma puta.”
“Isso diz muito sobre Gabin e sobre Renoir e sobre a maneira como fiz este filme. Conheci tantas pessoas, trabalhei com tantas delas, que tinha informação nova, coisas que me disseram e que não se encontram nos livros e ensaios. Acho que Gabin estava certo — mas Gabin achava que tinha sido traído pelo seu ‘rei’. Quando trabalharam juntos em French Can Can (1955), já não foi um encontro feliz. Foi respeitoso, Gabin era profissional, está magnífico e achava o filme maravilhoso, mas não era a relação do tempo de A Grande Ilusão e de La Bête Humaine (1938). [Durante a Guerra] Gabin [que fora para os EUA para não se comprometer com a Ocupação] comprara o seu contrato à Universal, alistou-se, combateu, foi até à Alemanha, e viu o homem que mais admirava apoiar o marechal Pétain [chefe do regime colaboracionista de Vichy]. As fidelidades de Renoir estavam sempre a mudar. Nunca falou da relação com o Partido Comunista, por exemplo. E foi muito próximo durante quatro anos. Mas nunca tirou o cartão, embora tenha pedido ao seu assistente Jacques Becker que o fizesse. Isto não muda a opinião que tenho sobre os seus filmes. Mas detesto as pessoas que atacam moralmente alguns realizadores por terem dito coisas e que se recusam a aplicar o mesmo tratamento a outros. O que mostro no filme, as cartas que ele escreveu [a Jean-Louis Tixier-Vignancour, secretário para a Informação do Regime de Vichy] são do domínio público desde 1984, mas ninguém as menciona, ninguém se atreveu a dizer que ele escreveu cartas infames a um tipo de extrema-direita e anti-semita. Pode-se cometer um erro e ser-se grande cineasta. Mas não gosto que se critique duramente Claude Autan-Lara pelos seu anti-semitismo, declarações feitas depois da guerra, e não as de Renoir, feitas durante as deportações dos judeus.”
Cineastas, argumentistas, actores — documentários sobre cinema, habitualmente, fazem-se com eles. Mas Tavernier chama aqui os compositores, os unsung heroes. “Nos livros dedicados ao cinema francês não há menção a compositores. As cinematecas, as universidades podem fazer homenagens a realizadores obscuros, mas nunca a compositores que fizeram bandas sonoras magistrais. No caso do cinema francês a música explica muitas vezes os filmes, porque muitos desses compositores eram escolhidos pelos realizadores, e essa é a diferença principal em relação ao cinema americano, em que, em 80% dos casos, os compositores eram escolhidos pelo estúdio. Quis mostrar a relação entre Joseph Kosma e Renoir, entre Maurice Jaubert e Vigo e Carné. Conheci realizadores americanos que se encontraram apenas uma vez com o compositor e nunca tiveram acesso às sessões de gravação da música. Renoir, Duvivier, Bresson, Carné escolhiam os compositores no início dos filmes. Às vezes o que o compositor escrevia servia como a primeira crítica. A música de Maurice Jaubert para L’Atalante é mais eloquente sobre o filme do que qualquer texto sobre Vigo. As bandas sonoras de Le jour se lève [Marcel Carné, 1939] e de Quais des brumes [Carné, 1938] são espantosas. Espero que o filme dê ideias a alguém para gravar as grandes peças de música para filmes que não estão gravadas, começando pelo tema de A Grande Ilusão.”
“Espere, tenho coisas para contar”
Enfim, Gabin.
Tavernier trata-o como “autor”, porque muitos filmes só foram produzidos porque ele entrava, muitos foram escritos para o mito que ele encarnava.
“Estive com Gabin três ou quatro vezes, ele estava a trabalhar com Pierre Granier Deferre. Houve um almoço, fiz-lhe perguntas sobre Jacques Tourneur, ele disse que queria falar antes de Maurice Tourneur, e foi sempre assim, de cada vez que nos encontrávamos ele dizia: ‘Espere, espere, tenho coisas para lhe contar.’ Queria sempre contar histórias. Adorava falar, e adorava falar de como gostava de Renoir e de Duvivier. Mas era muito duro em relação a outros — muito franco a dizer que não tinham talento.”
Gabin é a França. Ao passarmos da ardente esperança de La belle équipe (um grupo de desempregados ganha a lotaria e abre restaurante) ao gaz lacrimogéneo de Le jour se lève que cobre no final o corpo do assassino que se barricara no último andar de um edifício, esperando que o dia nascesse para agir, e chegarmos ao “a cada nascer do sol pensamos que algo vai começar, algo de fresco, mas o sol deita-se e nós também” de Quai des brumes (Gabin e Michèle Morgan como pura bruma do “realismo poético”), passamos dos amanhãs que cantam a solidariedade no tempo da Frente Popular, enfrentamos o fim dessa utopia, vemos mesmo o horizonte da guerra a aproximar-se, e, enfim, o mundo a desvanecer-se num romantismo terminal. Gabin sussurra a Morgan “T’as d’beaux yeux, tu sais”. Mas o sol esconde-se da terra.
Foi nesses anos em que o mundo acabou que Jean-Alexis Moncorgé, que começara como artista de variedades, se tornou mito. Com a cara que tinha, achou que devia fazer o mínimo, a câmara aumentava tudo desmesuradamente. Essa contenção (que tem hoje admiradores no cinema francês, como Vincent Lindon) e essa fatalidade (Gabin morre quase sempre) deram forma ao mundo desses anos. Depois Gabin fez a guerra, dela voltaria com cabelos brancos. O mundo era outro. A sua carreira passou mal (Martin Roumagnac, de Georges Lacombe, de 1946, chega a ser comovente ao mostrar dois seres de uma vida anterior, Gabin e Marlène Dietrich, sem jeito para o seu próprio mito). Mas Gabin haveria de tomar o controlo, indo buscar a essência da sua persona que estava lá atrás (continuou a economizar as palavras, que eliminava dos argumentos), mas já não era tempo de poesia, era tempo de pragmatismo. Em vez de um proletário, um burguês, um conservador. A mutação não é consensual (Tavernier defende-o), e no tempo das novas vagas ela foi mesmo exemplo da velha ordem a abater. Nascia uma figura de autoridade — voltava a ser o corpo da França: paternalista, autoritária, país que enriquecia. O filme da transformação foi Touchez pas au grisbi (1954), policial serenamente violento, seco, cínico e humano de Jacques Becker.
“O mais difícil” nesta viagem pelo cinema francês, conclui Tavernier foi “o equilíbrio entre a memória pessoal e o interesse que ela poderia ter para as pessoas. Eu quis ser capaz de mudar o mood do filme, estar muito tempo a falar de Becker e de Renoir, gente que foi próxima de mim durante muitos anos, antes de Godard.” Sim, são esses arrebatamentos, possibilidades líricas e dilatações imprevisíveis da memória neste género de filme que normalmente indexa excertos a um comentário, que diferenciam o documentário de Tavernier, por exemplo, de Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995), que progride num formato horizontal. “E queria misturar isso com momentos mais ligeiros — por exemplo, contar como, ao descobrirmos os filmes no cinema, podíamos estar sentados ao lado de alguém que abria uma lata de ervilhas e comia. Ou contar que no intervalo havia sessão de striptease. Em Lyon, que era uma cidade mais católica, isso permaneceu até mais tarde do que em Paris. As raparigas estavam completamente nuas, tinham apenas um cache-sex. A descoberta das obras-primas estava ligada ao interdito — por exemplo, a descoberta de O Couraçado Potemkine combinava a revolução e o erotismo. Pergunto-me se não será uma forma de trazer de volta as pessoas às salas, se isso não será uma receita — por exemplo, que tal fazer isso com o Silêncio, de Scorsese?”