Issa Rae, a estrela de Insecure, e o seu eu real e ficcional
Comédia da HBO estreia segunda temporada este domingo no TVSéries, às 3h30, e depois às 22h30 de quinta-feira. Tem uma protagonista que vem do YouTube com o mesmo nome da sua personagem e um entrelaçar entre comédia e negritude.
O momento parecia quase demasiado perfeito. Issa Rae, a muitíssimo talentosa estrela da sua própria série na HBO, subiu ao palco dos BET Awards sem parecer minimamente aquela “miúda negra desajeitada” que a tornou numa estrela do YouTube. Mas antes de chegar ao microfone, foi apresentada como… Yara Shahidi.
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O momento parecia quase demasiado perfeito. Issa Rae, a muitíssimo talentosa estrela da sua própria série na HBO, subiu ao palco dos BET Awards sem parecer minimamente aquela “miúda negra desajeitada” que a tornou numa estrela do YouTube. Mas antes de chegar ao microfone, foi apresentada como… Yara Shahidi.
A sério. Yara, claro, tem 17 anos e interpreta Zoey na série Black-ish. Rae, de 32 anos, protagoniza Insecure na HBO (em Portugal, no TVSéries), que estreia a sua segunda temporada este domingo nos EUA e em Portugal de madrugada, às 3h30, erepete na próxima quinta-feira às 22h30.
"É a Issa!", gritou Yvonne Orji, a Molly de Insecure, tentando corrigir o momento a partir do seu assento no Microsoft Theatre. Rae, depois de uma pausa e de um gaguejo, lá fez um número desastrado com a anfitriã, Leslie Jones, destinado a apresentar uma actuação de SZA. Nos bastidores, antes de voltar ao seu lugar, mandou uma mensagem aos seus guionistas sobre o que aconteceu e retweetou uma análise na mouche de uma fã chamada Deon. “Não seria @IssaRae se não acontecesse alguma coisa constrangedora LOL", tweetou Deon.
Deon tem razão. Rae, um dínamo criativo capaz de chamar a atenção na passadeira vermelha e na sala dos argumentistas, é alguém a quem estas coisas simplesmente acontecem, seja na vida real seja numa filmagem. E a sua capacidade de transformar tudo em comédia, seja um encontro amoroso desastroso ou um tropeço no trabalho, levou-a do estatuto de estrela do YouTube para o de uma protagonista diferente. Em Insecure interpreta Issa Dee, que mostra a sua vulnerabilidade aos espectadores sem se mostrar completamente, uma personagem tão segura quanto capaz de se odiar. É engraçada, ensandecedora, manipuladora e exigente. Para a sua legião de fãs, ela é simplesmente a Issa.
O que, curiosamente, é algo que a Issa real admite que está a começar a cansá-la. À medida que Issa Rae envelhece, acha menos engraçado ser confundida com a Issa fictícia. Mas não chamou à sua personagem de Insecure Nia, nem Amani.
"Nem pensei. Estava sob tanta pressão para contar uma boa história que nem pensei no facto de esta personagem, com o meu nome, ir para o ar”, disse Rae no ano passado enquanto se deslocava para os prémios BET. “E mesmo enquanto filmava, não me passou pela cabeça. Até ter ido para o ar. Esta não é, de todo, a minha vida, e é aí que a coisa se torna pantanosa porque as pessoas pressupõem que é.”
Ou, como diz a argumentista de Insecure, “as pessoas acham que conhecem a Issa de uma forma que não acontece com os protagonistas de grande parte das séries. Não acho que as pessoas abordem a Sarah Jessica Parker e digam ‘Ela é a Carrie Bradshaw.' "
Passaram mais de seis anos desde que Rae surgiu no YouTube, criadora e estrela de The Mis-Adventures of Awkward Black Girl. A série, vista por milhões de espectadores, levou a uma falsa partida (um episódio-piloto falhado para a ABC), um livro de memórias pouco polido e, finalmente, Insecure, que desenvolveu com Larry Wilmore, comediante experiente e argumentista. A primeira temporada, aclamada pela crítica, tinha muito do que alimenta as sitcoms clássicas – conflitos no trabalho, idiossincrasias dos encontros amorosos, amigos faladores e chamativos – e muita coisa que raramente se vê na TV – ou que talvez nunca se tenha visto na TV.
A negritude da série é tao essencial quanto o seu sentido de comédia. E porque estão entrelaçados, Insecure consegue ter intrigas secundárias hilariantes e retorcidas, como o inesquecível caso da “r… partida” da primeira temporada, um rap bêbado que se transformou num conflito entre raparigas e depois num desastre nas redes sociais. Insecure também dá uma nova perspectiva sobre o papel da raça no local de trabalho e com uma especificidade nunca vista numa sitcom. O produtor de Insecure, Prentice Penny, descreve esta capacidade como o acto de registar “os cortes de papel do racismo”.
“Em que os colegas brancos trocam emails entre si sobre se Issa conseguirá planear um dia na praia, ou o patrão a pedir a Molly para falar com o colega negro”, diz. “Coisas como estas, em que não parece tão evidente.”
Já lhe chamaram “Liz Lemon negra”
A realizadora Ava DuVernay, cuja série Queen Sugar acabou de encetar a sua segunda temporada, fica feliz só por Insecure existir. Nunca achou justas as críticas à criadora de Girls, Lena Dunham, por não incluir personagens negras significativas na sua série. A forma de diversificar a cultura popular, acredita, não é tendo personagens-símbolo mas com séries como Master of None, de Aziz Ansari, ou Insecure.
“Não precisamos de ser inseridos na história desta mulher se ela diz que não conheceria essa experiência e não quer forçá-la”, diz. “A série de Issa é uma resposta a tantos anos sem um Friends. Eles não tinham amigos negros. Na série Girls. Não há raparigas negras. O Sexo e a Cidade. Somos mulheres e adoramos estas histórias e tentamos inserir-nos nelas e ver-nos nelas, mas não estamos nelas. Mas agora estamos lá. E não estamos lá só como símbolos. E é muito cómica. Ela é muito cómica e tem a sua própria voz.”
Já chamaram “Liz Lemon negra” a Rae, uma referência à personagem de Tina Fey em 30 Rock. Ela adorava a série mas depende da “disposição e do contexto” o facto de aceitar ou não essa comparação. Apesar de tudo, ninguém anda por aí a chamar “o Denzel branco” a Christian Bale.
No final de Junho, quando estava a terminar a segunda temporada de Insecure e se preparava para dar uma palestra durante o fim-de-semana dos prémios BET, pôs-se a pensar no seu lugar no mundo do entretenimento. Frente às câmaras, como Issa Dee, é eléctrica, dispara raps improvisados ao espelho, luta com os amigos e com as suas emoções contraditórias sobre o seu namorado de longa data, Lawrence. Na vida sem câmaras é mais discreta, menos directa e é amigável, mas sem ser tão aberta.
Durante uma palestra durante esse fim-de-semana, o radialista Charlamagne Tha God pergunta-lhe sobre a sua vida amorosa em palco. Ela afasta o assunto. Mais tarde, longe do palco, perguntam-lhe sobre esse momento e se namora com alguém. Ela não quer dar mais informações. “Mesmo os meus amigos não sabem sobre a minha vida pessoal real”, diz Rae. “Estão sempre a meter-se comigo por eu ser tão sigilosa.”
"A fama morreu, tudo é um bocado temporário"
Mal passou um ano desde que chegou à HBO e já é a imagem viva da estrela da web em transição, do progresso da celebridade. Está em cartazes, mas ainda vai ao supermercado. (“Miúda”, provoca-a Melina Matsoukas, uma das realizadoras de Insecure, “tens de arranjar alguém para te fazer as compras.”) Se lhe perguntarmos sobre a fama, ela abanará a cabeça.
“Acho que a fama morreu”, diz. “Tudo é um bocado temporário. Há fama temporária e eu acho que tenho fama temporária durante uma época em particular, mas acho que a era do estrelato do cinema só existe para os grupos mais velhos. Os George Clooneys e Brad Pitts e Angelina Jolies e para estrelas da música. Mas para a televisão, simplesmente não sinto o mesmo, porque é tão fugaz, e há tanta coisa a acontecer agora.”
O que não quer dizer que não perceba que a sua vida mudou. Em The Misadventures of Awkward Black Girl, o seu livro de memórias, Rae escreveu sobre a sua infância no estado de Maryland e de quão traumático foi mudar-se para a Califórnia — o ciclo preparatório foi um período infeliz —, bem como de como lutou com o peso, o divórcio dos seus pais e até a sua ascendência complicada. O pai nasceu no Senegal, a mãe na Louisiana. (O seu nome completo é Jo-Issa Rae Diop.) Agora, admite arrepender-se de ser tão aberta em partes do livro que saiu em 2015, antes da estreia de Insecure.
"Escrevi num tal vácuo que pareciam entradas de um diário, e estive muito isolada durante o processo" de escrita, diz Rae. “Parecia ‘Oh, estou a trocar histórias com amigas e nunca me ocorreu que o país vai ver e formar opiniões sobre mim’.” Para já, Issa Rae está segura, mas diz que nunca mais vai dar o seu primeiro nome a uma personagem que interprete. Penny, produtor de Insecure, não fica surpreendido.
“Na última temporada, quando a Issa Dee enganou Lawrence, as pessoas estavam mesmo a mandar-lhe tweets a perguntar como é que pudeste fazer uma coisa dessas", diz o produtor, “e ela: ‘Eu não ando a trair os meus homens.’ É nesses momentos que ela gostaria de uma separação maior entre a personagem e o seu verdadeiro eu”.
História contada na voz dela
A verdadeira Issa Rae é muito leal e valoriza as suas amizades longas, seja com os seus colegas de liceu, com quem está a beber Prosecco e a dançar ao som de Aminé e de Future no seu quarto de hotel enquanto se arranja para os prémios BET, ou com os seus parceiros criativos que a ajudaram a progredir. Penny nota que quando ele e Rae estavam a procurar pessoas para trabalhar em Insecure, ela insistiu que os guionistas de Awkward Black Girl Amy Aniobi e Ben Cory Jones fossem contratados. Também nem foi preciso pensar no actor Tristen Winger, disse ela a Penny. Não interessava nada que ele nunca tivesse aparecido na televisão. Tinha dado provas em Awkward. Ficou com o papel de Yoda Bandido em Insecure sem sequer ir a uma audição.
Rae veste-se à altura. Usa uma camisola que revela o decote e calções bem curtos nos BET Awards. Mas se há uma coisa que ela tem em comum com a sua personagem, diz, é uma queda para jeans e t-shirts. Também tem as suas prioridades. Não houve tempo para festas após os BET – tinha de estar pronta para ir trabalhar às 5h30 para filmar o último episódio da segunda temporada de Insecure. “Não é muito comum alguém estar tão envolvido nas engrenagens da série”, diz o guionista Ben Dougan. "Por isso é que, quando escrevemos os guiões, as cenas dela são claramente as mais bem escritas porque a série é contada na voz dela.”
Nos BET Awards, Rae sai de um SUV preto ao som de gritos por “Issa!”. Os fotógrafos gritam o seu nome, pedindo-lhe para se virar, para sorrir. O rapper Maxwell abraça-a e é solicitada pelas câmaras das televisões e de Snapchatters.
E então é que Rae se lembra que nem tudo acontece conforme o planeado no palco. Não se queixa publicamente nem amua por causa da troca de nomes. Eventualmente a locutora, a rapper MC Lyte, corrige-se. Orji, do seu lugar, faz o seu papel e grita o nome de Rae. “Foi tão Issa”, diz mais tarde. “É tipo, ela não se vai chatear. Pausou, e depois eles corrigiram.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post