Américo Amorim (1934-2017): O mestre da intuição que se comparava a um “tractor”

Américo Amorim morreu nesta quinta-feira, aos 82 anos. Foi o principal artífice da transformação de uma pequena unidade industrial baseada na cortiça num grupo diversificado que lhe garantiu o título de homem mais rico de Portugal.

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Há pouco mais de dez anos, Américo Ferreira de Amorim estava no Porto em frente a uma plateia de estudantes de gestão que o interpelaram sobre o futuro. Deixando no ar a prova do seu irremediável optimismo e o testemunho da sua constante predisposição para fazer negócios, anunciou aos alunos, de acordo com uma reportagem da Visão, que, no futuro, “existem oportunidades fantásticas de negócios e espero continuar a vislumbrá-las nos próximos 54 anos”. Ele, que se considerava “uma espécie de tractor”, recusava falar da sucessão. “Sou eterno”, gracejava. Foi-o até ao momento em que o coração o traiu. Trabalhou até Setembro do ano passado, quando as suas condições cardíacas se agravaram e teve de se submeter a uma série de intervenções cirúrgicas de alta sensibilidade. Morreu nesta quinta-feira. Cumpriria 83 anos no próximo dia 21.

Américo Amorim é mais do que uma história feliz de enriquecimento, mais do que um exemplo acabado do “self made man” português ou que uma biografia personalizada do capitalismo de base industrial do último meio século. É também símbolo de um tempo e intérprete privilegiado da transformação do país. Juntamente com Belmiro de Azevedo (dono do PÚBLICO), passou da condição de remediado, que teve direito a uns sapatos novos quando fez a quarta classe e só os podia usar nas missas de domingo, ao estatuto de homem mais rico do país – 385.ª mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em 3700 milhões de euros em 2016, de acordo com a revista Forbes. Mas, também como Belmiro, foi uma espécie de aventureiro que soube aproveitar o fim do condicionamento industrial, a liberalização económica e a Europa para criar o seu império económico e financeiro.

“Era um homem honesto, muito bom e excepcionalmente inteligente”, diz frei Baltazar Domingues, um dominicano que o conhece desde 1962. “Há pouco tempo fez-me uma confidência: dizia estar em paz por ter dado trabalho a tantas pessoas”, acrescenta o dominicano. Capaz de chorar, como aconteceu quando, numa entrevista ao PÚBLICO, se recordou da ajuda que o banqueiro portuense Pinto de Magalhães lhe deu nos anos 60 para garantir a construção de uma fábrica de grandes dimensões, podia subitamente mudar de humor, mostrar aspereza e destratar quem o confrontasse. Como todos os empresários ou políticos que acumulam poder, esteve longe de ser uma personalidade consensual – vários pedidos de depoimento dirigidos pelo PÚBLICO foram simpaticamente recusados. Mas o seu contributo no desenho da indústria portuguesa ou no sistema financeiro são tão evidentes que lhe garantem um lugar de destaque na história do país do último meio século.

O gosto por viajar

Américo nasceu em Mozelos, Santa Maria da Feira, em 1934. Era o quinto filho de Américo Alves de Amorim e Albertina Ferreira de Amorim, e garantia a terceira geração da família no negócio da cortiça. Tudo começara em 1870, quando o avô de Américo, António Alves Amorim, fundou uma fábrica de rolhas no coração do vinho do Porto. Em 1935, quando as partilhas determinam a criação de uma sociedade nova, a Amorim e Irmãos, o negócio estava firmado. Mas, numa época de pobreza generalizada, que a II Guerra iria acentuar, as dificuldades da família, com oito filhos para criar, eram evidentes.

É por isso que Américo consegue ir estudar para o Colégio Académico no Porto, mas faltam-lhe recursos para seguir uma carreira universitária. Ficará pelo curso comercial. “Se tivesse sido possível, teria estudado muito mais”, disse um dia. Na medida do possível, foi-o fazendo ao longo da vida. Estudaria, já adulto, francês em Biarritz e inglês no Porto. Sem passar pelas escolas de gestão, tornou-se mestre em ler balanços e em calcular financiamentos. Mas não era aí que se estava a sua especial aptidão. “Américo Amorim foi a pessoa mais intuitiva para os negócios que eu conheci. Tinha o faro apurado de um perdigueiro. Apanhava as ideias no ar, reagia no imediato”, diz Filipe Pinhal, que o conheceu no BCP.

Na escola primária deslumbrava-se com a Geografia, a sua disciplina preferida. Viajar tornou-se para ele uma forma de aprender. “A principal base do seu sucesso”, confessaria anos mais tarde ao ex-ministro Jorge Coelho. Quando, aos 18 anos, entrou finalmente para a Amorim, teve direito a uma participação no negócio por herança correspondente a 2,5% do capital, a um salário de 500 escudos e à oportunidade de conhecer mundo. Primeiro numa viagem com os irmãos e os primos pela Europa que o levou, aos 19 anos, a “ver milhares de casas com buracos de bombas de guerra e ruas em que apenas uma casa havia resistido”. No final dos anos de 1950, esteve “durante quatro anos e meio fora de Portugal, nos caminhos-de-ferro, em segunda classe, a dormir em pensões. Andei pela América do Sul, Europa Central e Ásia. Conheci povos, mentalidades, cultura, guetos de poder, sociedades desfavorecidas. Fiquei com a ideia de como era o globo. Foi uma universidade fantástica”, confessaria à Visão, em 2006.

Entre essas viagens, algumas suscitaram a curiosidade da PIDE: as que tinham como destino Moscovo ou Bucareste. Percebendo o potencial da indústria vinícola da Crimeia e da Geórgia para a exportação de rolhas, Américo consegue entrar na poderosa e burocrática central de compras soviética. Usa como entreposto a Gerhard Schiesser GmbH, empresa com o nome da criança austríaca que o tio Henrique acolhera e educara no final da II Guerra. Todos os anos recebia interlocutores russos ou búlgaros nas suas fábricas e em visitas turísticas pelas praias. Mas, precisou várias vezes, “nunca modifiquei os meus comportamentos éticos. Com mais ou menos ‘vodka’, eu era inflexível." A sua rede de contactos era tão poderosa que no pós 25 de Abril foi capaz de anular uma tentativa de venda directa de cortiça por parte do Estado português.

A chatear Álvaro Cunhal

Nos anos 60, a economia portuguesa expande-se e internacionaliza-se, empurrada pelos acordos celebrados com a EFTA. A Corticeira Amorim moderniza-se e vai-se sobrepondo num universo empresarial fragmentado – em 1949 havia 808 empresas no sector. Em 1969, quando Américo Amorim se casa com Maria Fernanda de Oliveira Ramos, vai ter ainda de viver numa casa alugada na rua 15, em Espinho. Mas já tinha posses para comprar o seu primeiro carro novo – um Rover. O músculo desses anos de prosperidade permitiu à família enfrentar com sucesso os desafios do 25 de Abril. Mas nesse sucesso entrou também a proverbial capacidade de Américo para jogar em antecipação. “Em 1967 fiz um reajustamento de salários e promovi as cantinas sociais. Tudo o que os sindicatos reivindicavam em 1974 eu já tinha feito”, diria mais tarde. E no Verão quente, no Alentejo, “pagava mais 20% aos trabalhadores só para chatear o Álvaro Cunhal”.  

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Américo Amorim em 2000 Mário Marques/Arquivo

Amante do ténis, Américo sempre falou sobre as árvores com frases poéticas. O sobreiro é a árvore da família, mas quando Portugal sai da turbulência do pós-25 de Abril e ensaia os primeiros passos na abertura dos anos 80, o sobreiro era um negócio pequeno de mais para as suas ambições. Em 1981 contrata Jorge Armindo, que será o seu lugar-tenente na estratégia de diversificação e crescimento que se seguiria. Nos anos das OPA da primeira vaga do cavaquismo, aposta a eito. Nas telecomunicações, no imobiliário, na têxtil, na Mabor, numa sociedade financeira e logo depois na banca. Uma vez mais, a determinação e a intuição mostraram ser para ele uma fonte garantida de dividendos.

No Outono de 1984, numa reunião de empresários com o então ministro das Finanças, Ernâni Lopes, nota que o Governo admitia a prazo a abertura de bancos privados. Tenta convencer Artur Santos Silva, líder da Sociedade Portuguesa de Investimentos, para dar o salto e criar uma base para lançar um banco comercial. Santos Silva hesita (ou nega). Américo Amorim não desiste. No Natal de 1984 reúne num banco em Londres dois terços do capital inicial necessário para lançar o que seria o BCP. Para o liderar convence Jorge Jardim Gonçalves, que estava no BPA. Mais tarde, já nos anos 90, quando bateu com a porta e vendeu a sua participação no banco, acusaria Jardim Gonçalves de ter “subestimado o contributo dos fundadores”. O ego de Jardim era, afinal, demasiado grande para aguentar o ego de Amorim. E vice-versa. “Nunca nos zangámos, nem houve divergências estratégicas”, diz Jardim Gonçalves, que lamenta a perda “de uma personalidade de muito trabalho, com grande capacidade de definição estratégica”.

A venda do BCP deixou marcas. “Foi o maior projecto empresarial da minha vida. Vivi-o intensamente”, contaria a Carlos Oliveira Santos, autor de uma biografia sobre a família. Mas terá sido também “o maior fracasso empresarial da minha vida”. Tinha dito que “os filhos não se vendem” quando o negócio começou a ser falado e teve de vender o “filho” dilecto. Ainda por cima a espanhóis, ele que pouco antes subscrevera um manifesto em favor da preservação dos centros de interesse nacionais. Regressaria à banca com a criação do Banco Nacional de Crédito, mas, uma vez mais, por pouco tempo e com dissabor. Trocaria a sua posição maioritária por 6% do espanhol Banco Popular e a sua ligação à terra voltou a cena. “Sou português e vou morrer em Portugal, que é o meu país”, diria como resposta.

O visionário da cortiça

Tendo por base a poderosa Amorim Investimentos e Participações, onde gigantes financeiros como a Suez ou a Societé Générale de Belgique tinham posições, aliado a capitalistas da estirpe de Carlo de Benedetti ou a Robert Maxwell, Américo Amorim entra nos anos 90 e começa a derrapar. Derrapara na privatização do Banco de Fomento, falha na Cunha Barros, é obrigado a vender a Mabor à Continental, tem uma actuação desastrada com a Cofipsa na Real Companhia Velha. Foram anos de consolidação. E de procura de alternativas. Como a da energia. Pela primeira vez entra num consórcio, o Petrocontrol, para lutar pela Galp. Acaba por vender aos italianos da ENI. Regressaria em 2005 com a tomada de posição de 33% do gigante português. Fechou o negócio num passeio pela Patagónia.

Depois de abandonar a Corticeira Amorim em Março de 2001, entregando-a ao seu sobrinho António, Américo Amorim teve muitas outras frentes de acção para lá da Galp. O perigo de uma condenação por burla no uso de fundos comunitários tinha sido afastado por prescrição dos crimes pelos quais fora indiciado, num processo que se arrastou cinco anos. O turismo, o imobiliário, a compra de uma empresa britânica de água, preenchem a sua atenção nesses anos de estagnação económica do país. Arrojado e intransigente, Américo Amorim dizia no encontro com estudantes no Porto que “o país tem de ser atirado ao mar. Tem de aprender a nadar”, lamentava viver “numa sociedade sem irreverência”, no “país que mais fala e mais palavras inúteis diz”.

Visionário uma vez mais, soube manter a aposta nas rolhas de cortiça quando, por volta de 2000, os vedantes sintéticos ganhavam mais lugar na indústria do vinho. “Daqui a três ou quatro anos, a sociedade acabará sempre por privilegiar os produtos naturais”, avisou. Tinha razão. Hoje, a Corticeira liderada por António Rios de Amorim é considerada modelar e a riqueza que gera tornou-a uma estrela maior da Bolsa. A diversificação, com a produção de pavimentos e outras aplicações, garante o futuro de uma indústria que Américo sempre jurou nunca abandonar.

Quando renuncia à presidência do Conselho de Administração da Galp, em Setembro do ano passado, Américo Amorim sabia que tinha pela frente combates difíceis para tratar. A sua saúde piorara. Mas a forma como preparou as três filhas para ocuparem lugares-chave no grupo eram a prova de que a sua pretensão à eternidade era obviamente uma alegoria sobre a perenidade do seu legado.