E a classe operária vai para o paraíso com um Western

Violência, preconceito, rivalidade, dominação: um grupo de operários alemães participa do teatro do mundo numa aldeia búlgara. Lindo filme de Valeska Grisebach, que deixa sem hipóteses de ficarem na memoria do dia as participações de Todd Haynes e de Andrei Zvyagintsev.

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Lindo, lindo filme de Valeska Grisebach: um grupo de operários alemães faz a aprendizagem da linguagem do mundo no estaleiro para onde foram destacados, numa remota aldeia búlgara, onde se perdem, e portanto onde encontram tudo o que é essencial. Violência, preconceito, rivalidade, instinto de dominação, desejo de reconhecimento: ali, não entendendo a língua que os rodeia, mas afinal todos estando em total (des)acordo, estes homens tensos que parecem ter sido esculpidos na rocha como nos westerns de Budd Boetticher participam do teatro do mundo.

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Lindo, lindo filme de Valeska Grisebach: um grupo de operários alemães faz a aprendizagem da linguagem do mundo no estaleiro para onde foram destacados, numa remota aldeia búlgara, onde se perdem, e portanto onde encontram tudo o que é essencial. Violência, preconceito, rivalidade, instinto de dominação, desejo de reconhecimento: ali, não entendendo a língua que os rodeia, mas afinal todos estando em total (des)acordo, estes homens tensos que parecem ter sido esculpidos na rocha como nos westerns de Budd Boetticher participam do teatro do mundo.

Esta história, onde alguém pergunta “o que sabes do mundo, como é o mundo?”, pode ser contada assim: um estrangeiro chega a uma cidade, como aqueles que aparecem no inicio dos filmes de cowboys – pois é, o terceiro filme da alemã Valeska Grisebach (Un Certain Regard) chama-se Western. Chega de jipe mas quando damos por ele já esta em cima de um cavalo branco, negociará com o espaço, será atirado ao chão e conquistará, é objecto de fascínio e de desconfiança em terra estrangeira. No final, solitário e melancólico, não tem direito a um duelo ao pôr-do-sol. Em vez disso, repete os gestos da dança da comunidade, é um baile de aldeia ao lusco-fusco.

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Western, terceiro filme da alemã Valeska Grisebach DR

O que é conquistador em Western é o facto de Valeska Grisebach, tendo-se proposto explorar o tema da “latente xenofobia”, a afirmação de superioridade e a ausência de empatia que podem ser sentimentos contidos numa ideia de “germanness”, por exemplo, ter arredado qualquer possibilidade de um “tema” se instalar: Western é um filme delicado que encontra nos corpos, nos gestos, na sua irremediável tensão e melancolia, as nossas histórias de negociação com o mundo – muito antigas, essenciais.  

Entretanto, na competição

No filme de Todd Haynes, Wonderstruck (competição), o teatro do mundo é um mecanismo de música incessante e fluxo visual verborreico – sendo filme com poucas palavras, mas evidentemente por causa disso. Adaptação da obra de Brian Selznick, autor de Hugo Cabret (que Scorsese filmou, outro filme de mecanismo visual “palavroso”), é um filme de Haynes “para todos” que se calhar levará o cineasta a atravessar mais segmentos de público depois de Carol (2015).

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Wonderstruck, de Todd Haynes, deambula entre os anos 20 e os anos 70, acompanhando duas crianças DR

História de crianças que correm atrás da sua identidade, que procuram saber quem são, passa-se nas duas épocas, anos 70 e anos 20, em que vivem as duas personagens principais, é a cores e a preto-e-branco – oscilando entre a bravura da “criação”, dir-se-ia “documental”, do quotidiano de uma cidade, a Nova Iorque dos 70s (como os anos 50 em Carol), e o habitual histrionismo de “fazer à filme mudo”. As crianças do filme são mudas. Não será excêntrico encontrar aqui, na forma como no início Wonderstruck parece aceitar perder-se, vestígios da pulsão mais experimental do realizador de Poison ou de I’m Not There. Como se aceitasse o desafio de fazer o filme deixar de falar e ter por isso de aprender com as personagens. Mas o mecanismo de Brian Selznick esmaga Haynes, obriga-o a correr atrás do filme em vez de o deixar fazer o filme. Sem qualquer possibilidade de o cinema se espraiar, Wonderstruck é o mais desinteressante e tolhido que Todd Haynes já se mostrou.

Um cineasta já premiado em Cannes, o russo Andrei Zvyagintsev (Leviatã, em 2014, saiu do festival com o prémio do melhor argumento), instala-se novamente na competição, e continua a ter segurança para dar e vender (e demonstrar). Uma criança é o vazio no centro de Loveless: os pais estão em ruptura, cada um a fazer outras vidas, e um dia Aliosha, que na verdade só vemos nos minutos iniciais, desaparece. Ficamos todo o filme com os pais, com as suas novas vidas, com o seu esquecimento, com o seu egoísmo – e com a neve e com a paisagem, testemunhas silenciosas do falhanço humano. Mesmo que não se adivinhe como Loveless vai acabar, sabe-se desde logo o que é que Andrei Zvyagintsev vai dizer até o filme acabar – cada plano é milimetricamente controlado para que nada escape ao realizador e para que o sentido não escape ao espectador. Há varias coisas a admirar: a coerência, por exemplo. Nada falha ali, nada se desvia. Mas podemos perguntar se esta criança não esta a ser abandonada outra vez, agora pelo realizador, que a utiliza como trunfo da sua demonstração.

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Loveless é o regresso do russo Andrei Zvyagintsev à competição, de onde já saiu premiado DR