11 actrizes à espera de um milagre
João Canijo não se pronuncia sobre a fé que move as suas 11 personagens. Ele transporta-as. A fé de Canijo, em Fátima, é outra: que o filme apareça.
Uma síntese sonora de Fátima, como trilha a sinalizar a presença do filme na nossa memória, poderia ser descrita assim: ruídos de um grupo — diálogos, murmúrios que se sobrepõem mas que se desvanecem, coisa à beira do “desfoque” — cortados por duas colunas de silêncio, esses sim, teimosos e recortados solos em marcha.
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Uma síntese sonora de Fátima, como trilha a sinalizar a presença do filme na nossa memória, poderia ser descrita assim: ruídos de um grupo — diálogos, murmúrios que se sobrepõem mas que se desvanecem, coisa à beira do “desfoque” — cortados por duas colunas de silêncio, esses sim, teimosos e recortados solos em marcha.
Este é o grupo: 11 mulheres que vão a pé de Vinhais, Trás-os-Montes, até ao Santuário de Fátima, 400 quilómetros de determinação, cansaço, cumplicidades, disputas — 11 actrizes, filmadas on the road depois de um trabalho de campo de semanas que as levou a procurar “contágio”, para as suas personagens, entre as vivências reais nas aldeias de Trás-os-Montes.
E estes sãos os solos, estrategicamente colocados no filme, momentos que fazem corpo com o silêncio, solidões que se afirmam na estrada — mostram-se, experimentam-se na duração, não se justificam: um é o de Anabela Moreira, o outro de Rita Blanco.
Elas caminham. São actrizes, têm sido cúmplices e construtoras do património do realizador João Canijo, por cuja obra vêm caminhando. São, naturalmente, rivais na conquista de um protagonismo — e sabe-se como os rivais se farejam e se ajudam, a rivalidade é feita de observação e de cumplicidade, e isso é o que se passa também entre as personagens com que Anabela e Rita misturam as suas diferentes, talvez opostas, personalidades e temperamentos.
Alastrando a partir dessa rivalidade que se sente, que penetra o espectador, é como se Fátima se conseguisse silenciar para escutar o rumor íntimo de uma obra. Como se se mostrasse, para além das várias recorrências que também mostra, como momento de recolhimento na obra de Canijo (coisa curiosa num filme sempre em movimento): silencia paroxismos, contempla as costuras, dá a ouvir a construção.
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ARTIGO_SIMPLES
O anúncio de um projecto em que o realizador iria percorrer uma Via Láctea (ainda: Teresa Tavares, Ana Bustorff, Teresa Madruga, Sara Norte, Márcia Breia, Cleia Almeida, Vera Barreto, Alexandra Rosa, Irís Macedo) , com o Santuário em fundo, criou expectativas ao voyeurismo. Não nos contentaríamos com menos do que com a superação de um desafio, até porque foi isso, o desafio, que fez o mapa de rodagem. Noite Escura (2004) e Sangue do Meu Sangue (2011), alianças forjadas com ferocidade entre Portugal e a tragédia, como que reclamavam follow up, como que pediam (mais) sangue durante e no final da peregrinação -até porque havia fenómeno religioso em fundo. É claro que isso seria ignorar que o cinema de Canijo anda já por outros lugares, que antes deste filme houve experiências como É o Amor (2012) ou Portugal, Um dia de Cada vez (2015) que rasgaram a claustrofobia, sabotaram estruturas, colocaram o edifício em risco — eram filmes oscilantes, era esse o seu valor, além do mais, mostravam um cineasta muitas vezes acusado de cinismo e de manipular o kitsch a deixar-se tocar, a permitir-se ser invadido pelo outro, pelos outros. Mas visto que os títulos de 2004 e 2011 ficam, de facto, como os momentos mais violentos do cinema do realizador, tendo extremado a sua notoriedade, Fátima pode revelar-se uma surpresa (para alguns) deceptiva: despoja-se do melodrama, não procura, frustra até, o pathos, impede a narrativa de se instalar. É a possibilidade do silêncio que fascina, em suma.
Um parêntesis: falamos de Fátima na sua versão de 153 minutos, o realizador considera sua a de 203’ — o espectador pode escolher entre as duas, ou então experimentar as duas, nas salas. Mas aqui discordamos de Canijo. Ao contrário do que acontecia com a versão longa de Sangue do Meu Sangue, que, essa sim, cumpria a utopia, que atravessava todo o projecto, de ficar(mos) com as personagens mais tempo, isto é, com a sensação de que elas nos pertenciam, é a versão “curta” de Fátima que mais nitidamente define o “momento” do filme na obra do realizador. É aquela que mais se mantém vizinha do silêncio, mais se limpa de “informação” — há coisas que não precisávamos de saber das personagens, ou do que as motiva, elas são mais intrigantes na sua opacidade, e ao invés há ruído que incomoda na versão “longa”; também a versão curta de É o Amor, chamada Obrigação. era mais habitada, em relação à versão que o realizador considerava sua, pela potência do projecto que resultou, encomenda dos Estaleiros de Vila do Conde, do encontro entre uma actriz (Anabela Moreira) e um grupo de mulheres que esperavam pelo regresso dos maridos do mar.
Fechado o parêntesis: Fátima despoja-se para poder contemplar, e permitir que contemplemos, a intimidade da sua construção, espreita os segredos de um processo de trabalho, e de uma aliança, não para nos explicar nada, mas para que vislumbremos a sua complexidade. Há uma sequência arriscada, algo nunca permitido pelos pactos que normalizam as relações entre actores e filmes: aquela em que, algures na caminhada, as personagens (as actrizes, muitas delas as “nossas” vedetas) tomam banho num balneário público, nuas, expostas, entregues à câmara e ao projecto que também é seu (elas surgem creditadas como autoras do argumento, todas contribuiram com o resultado do seu trabalho de campo para os diálogos e argumento).
Essa sequência é tão generosa — à falta de outra palavra — quanto cruel, tão condoída quanto indiscreta, revela tanto de uma entrega das actrizes, que se atiram para o que é seu, como dos encantamentos com que um realizador as seduz para que elas façam o que ele quer.
Sem que nada nos seja explicado, justificado, estará aí talvez o mistério que liga Canijo às actrizes, que faz as actrizes caminharem para Canijo. Estamos próximos do que tem sido uma intimidade que para alguns já conta décadas de trabalho conjunto. Sendo uma sequência incómoda, é habitada pelo silêncio, pela contemplação de um património, de um processo. De um mistério.
Fátima nada nos diz ou diz-nos pouco sobre o que leva estas 11 mulheres ao Santuário — a versão longa diz mais, perde-se em explicações. Canijo não se pronuncia sobre a fé que as alimenta — talvez em outros tempos o fenómeno Fátima o levasse a tomar “posição” feroz. Ele assiste à fé delas. Transporta-as, transporta-a.
A fé de Canijo é outra, é a expectativa de que o filme aconteça, tal como em Vale de Amor, de Guillaume Nicloux (ainda há semanas nas salas), Isabelle Huppert e Gérard Depardieu esperavam por um milagre no Vale da Morte e com eles o realizador esperava que o filme acontecesse. Algo acontece no final de Fátima. Se a sequência final é uma bomba de comoção, que sacode tudo o que parecia ter sido estabilizado por quase três horas de filme, isso deve-se ao facto de 11 actrizes estarem a testemunhar uma aparição.