Decisão da Justiça sobre o véu vai "banir muçulmanas do mercado de trabalho"
Tribunal de Justiça Europeu dá razão a empresas que despediram duas muçulmanas, desde que as regras de “neutralidade de indumentária” se apliquem a todos os trabalhadores.
Uma empresa pode proibir o uso de “qualquer símbolo político, filosófico ou religioso”, como o véu islâmico, se isso corresponder a uma regra geral que imponha uma “política de neutralidade” no local de trabalho. Se essa política existir, diz o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a proibição “não constituiu uma discriminação directa por motivos religiosos ou de convicções” e, portanto, não contraria as leis europeias.
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Uma empresa pode proibir o uso de “qualquer símbolo político, filosófico ou religioso”, como o véu islâmico, se isso corresponder a uma regra geral que imponha uma “política de neutralidade” no local de trabalho. Se essa política existir, diz o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a proibição “não constituiu uma discriminação directa por motivos religiosos ou de convicções” e, portanto, não contraria as leis europeias.
A decisão do Tribunal do Luxemburgo, que nunca se tinha pronunciado sobre processos que abordam o uso do hijab, foi criticada por associações religiosas e organizações de direitos humanos. “Estas decisões são uma desilusão e vão dar maior margem aos empregadores para discriminarem contra mulheres – e homens – com base em crenças religiosas”, diz, em comunicado, John Dalhuisen, director da Amnistia Internacional para a Europa e a Ásia Central.
“Numa altura em que a identidade e a aparência se transformaram num campo de batalha político, as pessoas precisam de mais protecção contra os preconceitos, não menos”, defende o responsável da Amnistia.
Para Paulo Mendes Pinto, embaixador do Parlamento Mundial das Religiões e fundador da Academia Europeia das Religiões, “o timing desta decisão não podia ser pior”, na véspera das legislativas na Holanda, marcadas pela subida da extrema-direita e por um debate intenso sobre integração dos muçulmanos e identidade europeia, e “num contexto com mais eleições complicadas por toda a Europa”.
Às legislativas holandesas, seguem-se as presidenciais francesas (Abril e Maio), com a quase certa passagem da líder da extrema-direita, Marine Le Pen, à segunda volta, e as eleições gerais alemãs (Setembro), onde os populistas da Alternativa para a Alemanha, com um discurso anti-islão e anti-imigrantes, têm entre dez a 14% das intenções de voto.
Mendes Pinto teme que aqui esteja “material para acirrar intolerâncias e para instituir uma certa visão do islão”, levando até “a que muitos muçulmanos caiam em posições mais radicais” por se sentirem visados. O académico, que coordena a área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona, lembra quando a França proibiu o uso do véu nas escolas (2004), “a única consequência foi que uma série de meninas deixou de ir às aulas” e teme aqui o mesmo efeito. “O mais certo é que haja mulheres que deixem de trabalhar e isso só vai criar problemas sociais. Em vez de incentivarmos a integração, estamos a contribuir para a formação de guetos”, diz.
Os juízes do TJUE foram chamados a pronunciar-se sobre dois casos que já tinham passado por tribunais nacionais, um na Bélgica, outro em França. Em ambos, as trabalhadoras, muçulmanas, foram despedidas por recusarem deixar de cobrir a cabeça com um lenço e processaram os seus empregadores por discriminação. Os tribunais nacionais tiveram dúvidas sobre a interpretação da directiva europeia de 2000 sobre a igualdade de tratamento em matéria de emprego e trabalho, pedindo por isso uma decisão do TJUE.
No primeiro processo, Samira Achbita, uma recepcionista da G4S Secure Solutions (que presta serviços de segurança), decidiu começar a usar o véu e foi-lhe dito que não podia fazê-lo por isso contrariar uma “regra não escrita” de neutralidade. A empresa alterou depois o seu regulamento interno, num acordo com a comissão de trabalhadores. “É interdito aos funcionários usarem no local de trabalho sinais visíveis das suas convicções políticas, filosóficas ou religiosas, ou de realizarem qualquer ritual que daí resulte”, passou a integrar o regulamento.
O TJUE “observa que a norma interna da G4S […] diz respeito indistintamente a tais convicções” e, por isso, “trata de forma igual todos os trabalhadores da empresa, já que lhes impõe de forma geral e indiferenciada uma neutralidade de indumentária”. Em todo o processo, os juízes não encontraram provas de que a queixosa tenha sido discriminada. “Tal norma interna não estabelece, por isso, uma diferença de tratamento baseada directamente na religião ou nas convicções no sentido da directiva” da UE.
No caso da engenheira francesa Asma Bougnaoui, levantado por uma queixa de um cliente da empresa em questão, a Micropole SA, os juízes remetem o processo de volta ao tribunal francês que o julgou em primeira instância, afirmando que lhe cabe avaliar se havia um regulamento interno a proibir o uso de símbolos políticos e religiosos.
"Na ausência de tais regulamentos, a vontade de um empregador em ter em consideração os desejos de um cliente que não quer ser atendido por uma funcionária que usa o véu islâmico não pode ser considerada como uma exigência ocupacional que escape à definição de discriminação", sublinha o tribunal, para quem "só em circunstâncias muito particulares" "características relacionadas com a religião podem constituir uma exigência ocupacional genuína e determinante".
A Amnistia saúda um ponto da sentença, a conclusão de que “um empregador não tem liberdade para ceder aos preconceitos dos seus clientes”. Mas sublinha que “a decisão de que as políticas das empresas podem proibir símbolos religiosos com base no argumento da neutralidade abre a porta precisamente a esse preconceito”.
Amel Yacef, presidente da Rede Europeia Contra o Racismo, defende que a decisão “bane, na prática, as mulheres muçulmanas que usam véu do mercado de trabalho”. As muçulmanas, lembra num comunicado, “já enfrentam obstáculos significativos em arranjar e manter um emprego e esta decisão só vai tornar isso pior, dando aos empregadores licença para discriminar”. Na Bélgica, por exemplo, 44% das empresas admite que o uso do hijab pode influenciar negativamente a selecção de candidatos.
Caixa de pandora
Para o rabi Pinchas Goldschmidt, “com o crescimento dos incidentes raciais e esta decisão, a Europa está a mandar uma mensagem clara, dizendo às suas comunidades de fés diferentes que já não são bem-vindas”. O presidente da Conferência Europeia de Rabis pede, por isso, aos “líderes europeus que ajam para garantir que a Europa não isola as suas minorias religiosas e permanece um continente diverso e aberto”.
A Rede Europeia Contra o Racismo teme que esta julgamento “force as mulheres muçulmanas que usam lenço, os sikhs que usam turbante e os judeus que usam kipá a escolher entre a sua expressão religiosa, que é um direito fundamental, e o seu direito de aceder ao mercado de trabalho”.
O problema, diz Paulo Mendes Pinto, é que “hoje aceitamos facilmente normas que reduzem as nossas liberdades por argumentos que não parecem justificáveis”. À partida, acredita o académico, “o bom senso vai imperar na maior parte dos países e empresas”, mas “legalmente está aberta a caixa de pandora e “qualquer dia pode haver um despedimento porque alguém usa uma T-Shirt do Che Guevara”.