O polícia de Pablo Neruda

Um filme subjugado pelas estratégias da sua personagem: aparentando ser um anti-biopic, Neruda, de Pablo Larraín, garante sempre a continuação do mito.

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Na obra de Pablo Larraín, Neruda ficará como o filme em que o chileno mostrou o seu apetite por ser cineasta internacional. Dirão: é fácil ver isso agora, tendo em conta Jackie e as nomeações para os Óscares desse filme sobre Jacqueline Kennedy que veio depois (mas que se estreou entre nós antes...) deste sobre Pablo Neruda (1904-1973), fantasia a partir do período, 1948, em que o poeta chileno, devido às acusações que fizera ao Governo, foi acusado de traição por ser comunista e passou à clandestinidade.

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Na obra de Pablo Larraín, Neruda ficará como o filme em que o chileno mostrou o seu apetite por ser cineasta internacional. Dirão: é fácil ver isso agora, tendo em conta Jackie e as nomeações para os Óscares desse filme sobre Jacqueline Kennedy que veio depois (mas que se estreou entre nós antes...) deste sobre Pablo Neruda (1904-1973), fantasia a partir do período, 1948, em que o poeta chileno, devido às acusações que fizera ao Governo, foi acusado de traição por ser comunista e passou à clandestinidade.

Mas não, uma transição no percurso de Larraín estava anunciada em Neruda, Jackie apenas confirmou. Há um ano, na Quinzena dos Realizadores de Cannes, a impressão deixada (e curiosamente também se falou de Óscares...) era a de que o cineasta pisava outro território de expectativas e de escolhas: tentava seduzir um espectro maior de espectadores, a densidade, opacidade mesmo, do seu cinema (Tony Manero, 2008; Post Mortem, 2010) dava lugar a um lustroso maneirismo, até a uma certa afectação — escrevemos na altura. Mesmo anunciando-se como um anti-biopic — o problema é Neruda estar sempre a dizer ao que vem... —, mesmo aparentando dar pontapé no “filme biográfico” convencional (é certo que não é hagiografia), instala-se no “cinema de prestígio”. Não é convencional, mas ausenta-se dele qualquer perversidade — ou a reconhecida selvajaria de Larraín. Mostra-nos uma figura de narcisismo obeso, obcecada pela construção do seu mito, mas é simultaneamente filme que garante esse mito, que não consegue escapar-lhe. Jackie, sobre outra personagem que tentou salvaguardar o seu lugar na História, foi a confirmação deste momento de Larraín.

Há pontos de contacto entre os dois filmes, até porque cada um está mais subjugado do que quer aparentar às estratégias das personagens (Jackie é mesmo fascinado, como a imprensa cor de rosa, pelo brief, shining moment da era Kennedy tal como mitificado pela própria Jacqueline). Como se houvesse dentro deles um vigilante, um polícia, das regras de comportamento. É por um inspector que se entra em Neruda, aliás: Óscar Peluchonneau (Gael García Bernal).

Em 1948, Neruda (Luis Gnecco) é acusado de traição por ser comunista. Sob as ordens do presidente Videla (Alfredo Castro, o Tony Manero de 2008), é perseguido pelo inspector Óscar, obrigado a fugir. É sobre esse período, em que Neruda se esconde, lê policiais e escreve o seu Canto Geral, que Larraín e o argumentista Guillermo Calderón inventam um labirinto em que a cada esquina os factos da realidade são continuados pela ficção. Inventam um film noir entre o poeta e o polícia — ou uma BD que espera ser concretizada com tinta na folha em branco. Atravessam com as personagens o Chile, atravessam com elas vários géneros até chegarem ao western spaghetti gelado (há ecos de Il Grande Silenzio, de Sergio Corbucci, na parte final).

Óscar persegue Neruda, Óscar (personagem baseada num inspector que na realidade existiu) surge como criação de Neruda mas é também o criador de Neruda — é a possibilidade de o poeta alimentar o seu mito com a perseguição. É uma personagem secundária à espera de ser a principal. Óscar é aquele que lê o filme para o espectador, avisando-o que se prepare para aventuras na imaginação. Mas se Óscar é o alimento, é também a fraqueza do filme — até porque Bernal não concretiza a figura frágil e trágica que talvez precisasse de um Jean-Louis Trintigant dos tempos do Bertolucci de O Conformista (1970), dessa e de outras presenças tenebrosas (Natalie Portman já era a fraqueza no centro de Jackie, espectadora diminuída da sua própria personagem). O filme é prejudicado por esse erro de casting, o filme é Óscar: coisa pequena que não se agiganta, miniatura. Larraín deixa-se intoxicar pelas possibilidades do jogo, exercita-se de forma virtuosa, pomposa até, mas fica sempre aquém do que promete. Neruda parece uma sucessão de vistosos trailers a anunciarem um filme.

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