Respeito! Warren Beatty não é Ga ga land
A gaffe dos Óscares, uma intervenção poética dos 70's que utilizou o corpo, sempre disponível para o burlesco, de Warren Beatty, foi o melhor filme da cerimónia.
E do passado, dos anos 70, duas das suas mais belas e perigosas criaturas, Faye Dunaway e Warren Beatty, chegaram para acabar com La La Land: Melodia de Amor. Eles foram Bonnie e Clyde, lembram-se?
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E do passado, dos anos 70, duas das suas mais belas e perigosas criaturas, Faye Dunaway e Warren Beatty, chegaram para acabar com La La Land: Melodia de Amor. Eles foram Bonnie e Clyde, lembram-se?
Aconteceu o que já se sabe: Warren embrulhou-se em envelopes trocados, cortês, suspeitando que algo não estava bem mas nunca se descompondo, passou a “informação” a Dunaway, e durante breves minutos o musical de Damien Chazelle foi considerado o melhor filme da 89.ª edição dos Óscares.
Assim se fechava em beleza uma das mais desconcertantes cerimónias dos prémios da Academia de Hollywood. É aquele tipo de final alternativo que pode acabar com a graça de um filme, ser a sua humilhação (e assim La la se foi...). Até porque o verdadeiro vencedor, Moonlight, era o que estava encarregue de se lhe opor – um e outro foram carregados com o peso da América dividida, simbologia que nem um nem outro aguentam totalmente, mas isso só daqui a uns anos confirmaremos (ou não): a alienação de um país branco, escapista e pouco generoso (Trump) no caso do musical, o realismo dorido da outra parte, excluída, no caso do relato em três tempos de um jovem negro, homossexual, de Miami.
Isto não é para “bater” em La La Land. Filmes pequeninos que ficam agarrados à História sempre houve e haverá, mas teria sido cruel (e não irónico, como depois se tornou com o golpe de teatro) se Faye e Warren, testemunhas e agentes de um tempo mais corajoso, violento e inventivo do mainstream americano, tivessem estado ali a dar o prémio de Melhor Filme a um exemplar de tempos pouco gloriosos e amedrontados que são os nossos, hoje. (É simples de dizer: não havia um único filme nos nomeados que chegasse aos calcanhares da maioria da filmografia de Warren e de Faye.)
E o que interessa agora são eles, os veículos da gaffe. Não tanto a (em tempos) fria de assustar Faye (Escândalo na TV: alguém disse na altura, 1976, que parecia ficção científica... a sua personagem era um novo ser humano em construção, antecipou o que somos hoje), mas Warren, aquele exemplar de sedução serôdia... Atenção, respeito! Nada disso, não, não é Ga ga land! Está ali uma das figuras centrais da Nova Hollywood, o homem de Bonnie & Clyde (Arthur Penn, 1967), democrata, manobrador nos bastidores de campanhas políticas, narciso, galã, e control freak. Precisamente: uma das coisas mais espantosas da carreira de Beatty é a forma como muitas vezes se atirou para o suicídio, isto é, para as zonas mais escuras da sociedade americana (lembrem-se do final de A Última Testemunha, a obra-prima de 1974 de Alan J. Pakula) ou para o desacerto de si próprio. (Um parêntesis: George Clooney não foi capaz disso; sim, os dois estão afastados por décadas, mas Clooney é uma ersatz de Beatty, o seu liberalismo faz parte de um programa de charme, enquanto Beatty nunca o usou – ao liberalismo – para mascarar narcisismo e ambição).
Shampoo (1975), de Hal Ashby, pegava na sua fama de mulherengo, era uma ficção mas parecia um (falso) documentário que Beatty, como cabeleireiro, autorizava que se virasse contra a mitologia de si mesmo que tão obsessivamente foi construindo. Bugsy (1991), em que conheceu a sua mulher Annette Bening, tinha as cores sedosas da sedução (as coisas estavam a “aquecer” no plateau) mas logo essa espécie de grande produção do engate se desconstruía com as possibilidades burlesco. Houve o flop da comédia e filme de aventuras Ishtar (1987), de Elaine May, com ele e com Dustin Hoffman – alguém hoje mediamente preocupado com a imagem expor-se-ia daquela maneira?
Nunca é tarde para (re)descobrir o fascinante Warren Beatty, um control freak com coragem, como poucos, para se deixar desorganizar, para se deixar ser agente do caos e da desagregação. Há uma lost masterpiece à espera, por exemplo: Candidato em Perigo (1998), que ele realizou e interpretou. A personagem – um senador com aguda crise nervosa que deixa cair os filtros e faz tudo o que lhe apetece – é um last hurrah da comédia clássica americana. Foi o que aconteceu nos Óscares, uma intervenção poética dos 70's para nos colocar, espectadores e filmes, no nosso incerto lugar. Foi o melhor filme da cerimónia.