A última imitação de Scorsese
É a enorme frustração do encontro com cada novo filme de Scorsese: este cinema parece feito de simulacros, de presenças virtuais, de pálidas substituições para ausências várias.
Foi o sucesso de O Lobo de Wall Street (2013) que permitiu a Martin Scorsese concretizar, finalmente, o seu desejado projecto de adaptação do romance de Shusaku Endo, que já vivia dentro dele há anos, tal como nos anos 80 a performance nas salas de Nova Iorque Fora de Horas (1985) e de A Cor do Dinheiro (1986) deu luz verde a outra obsessão, a de levar para o grande ecrã o livro que Nikos Kazantzakis escrevera nos anos 50, A Última Tentação de Cristo (1988). Em ambos os casos, e pode-se começar por aí, os filmes exalam um perfume de redundância, como se Scorsese já os tivesse feito antes na sua filmografia, na Little Italy de Nova Iorque, por exemplo. Finalmente concretizados, não acrescentaram nada à obra — nós, espectadores, agora também já não precisamos deles para nada (precisa o cineasta, obviamente, de se libertar da obsessão; precisa também do momento de oficialização que eles proporcionam).
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Foi o sucesso de O Lobo de Wall Street (2013) que permitiu a Martin Scorsese concretizar, finalmente, o seu desejado projecto de adaptação do romance de Shusaku Endo, que já vivia dentro dele há anos, tal como nos anos 80 a performance nas salas de Nova Iorque Fora de Horas (1985) e de A Cor do Dinheiro (1986) deu luz verde a outra obsessão, a de levar para o grande ecrã o livro que Nikos Kazantzakis escrevera nos anos 50, A Última Tentação de Cristo (1988). Em ambos os casos, e pode-se começar por aí, os filmes exalam um perfume de redundância, como se Scorsese já os tivesse feito antes na sua filmografia, na Little Italy de Nova Iorque, por exemplo. Finalmente concretizados, não acrescentaram nada à obra — nós, espectadores, agora também já não precisamos deles para nada (precisa o cineasta, obviamente, de se libertar da obsessão; precisa também do momento de oficialização que eles proporcionam).
Mas é verdade: as torturas da carne do espírito já tinham sido espantosamente turbulentas, por exemplo, em Mean Streets — Os Cavaleiros do Asfalto (1973), associação visceral entre as personagens de Robert deNiro e Harvey Keitel que fazem figura de núcleo obsessivo, figurativo e temático. Como se já fossem o Cristo e o Judas que mais tarde seriam de Willem Dafoe e de Harvey Keitel no filme de 1988, ou (em Silêncio) antecipando mais uma figura “crística” e mais uma reavaliação do “traidor”: as personagens de Andrew Garfield e de Liam Neeson. Silêncio é a mais recente imitação de Cristo.
É essa a enorme frustração, com raras excepções, do encontro com cada novo filme do cineasta: este cinema parece feito já só de simulacros, de presenças virtuais, pálidas substituições para ausências várias. Os movimentos de câmara parecem “cegos”, como se não houvesse ninguém a ver, um compacto audiovisual não “habitado”, que se imita e que imita (um bocadinho à Kuosawa aqui, ali um bocadinho à Mizoguchi...). Não há corpos a quem os filmes se liguem de forma visceral, o que comunica uma sensação “virtual” a toda a empresa. Na verdade, desde 2002, desde Gangs of New York (e apesar e por causa de Leonardo diCaprio) que o cinema de Scorsese continua a não conseguir encontrar um corpo que seja mesmo seu e não apenas um substituto. A histeria de O Lobo de Wall Street era tão só a materialização disso.