As mil e uma falhas que as defesas encontram no processo Face Oculta

Os advogados de nove dos 36 arguidos do caso alegam esta quarta-feira, numa audiência no Tribunal da Relação do Porto, as razões por que a condenação do tribunal de Aveiro deve ser anulada.

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Alega-se a incompetência do Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro para investigar um caso de âmbito nacional e do juiz de instrução da mesma comarca para o acompanhar. Fala-se dos efeitos da destruição das escutas que apanharam colateralmente o então primeiro-ministro José Sócrates e da admissão da transcrição de intercepções telefónicas durante o julgamento. Insiste-se no “erro notório” na apreciação da prova. O acórdão, que data de Setembro de 2014, conta com 2781 páginas.

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Alega-se a incompetência do Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro para investigar um caso de âmbito nacional e do juiz de instrução da mesma comarca para o acompanhar. Fala-se dos efeitos da destruição das escutas que apanharam colateralmente o então primeiro-ministro José Sócrates e da admissão da transcrição de intercepções telefónicas durante o julgamento. Insiste-se no “erro notório” na apreciação da prova. O acórdão, que data de Setembro de 2014, conta com 2781 páginas.

No dia em que nove dos 36 arguidos do processo Face Oculta alegam, numa audiência no Tribunal da Relação do Porto, as razões porque a condenação do tribunal de Aveiro deve ser anulada, o PÚBLICO resume os argumentos de alguns dos principais arguidos do caso. As defesas tentam implodir um processo no qual foi investigada uma alegada rede de corrupção centrada num empresário de sucata de Ovar, Manuel Godinho. Nas malhas da investigação foi apanhado o antigo ministro Armando Vara e o ex-presidente da REN José Penedos, todos condenados a penas de prisão efectiva.

A audiência na Relação do Porto, acontece dois anos e quatro meses após a decisão da primeira instância e depois de dois juízes daquele tribunal superior terem pedido para serem afastados da reanálise do caso. O primeiro, José Carreto, porque vive desde 1990 em Vinhais, de onde é natural Armando Vara e como este pertence à Confraria Gastronómica do Porco Bísaro e do Fumeiro de Vinhais, onde pelo menos duas vezes por ano convive com o arguido. O outro, Francisco Marcolino, pediu escusa porque é representado por um dos advogados do caso, num processo-crime que envolve dois jornalistas do Correio da Manhã, assistentes no Face Oculta, com quem diz ter uma “relação de inimizade”. Este último juiz foi colega de liceu de um dos arguidos, que não identifica. A decisão fica, por isso, nas mãos dos juízes Élia São Pedro, Paula Guerreiro e Pedro Vaz Pato que, antes de se dedicarem a analisar a fundo o caso, terão que avaliar as mais de duas dezenas de recursos interpostos ao longo do processo, mas que só subiram à Relação, com a decisão final.

Vara: as nulidades insanáveis e a violação da Constituição

Nas 374 páginas do recurso de Armando Vara – condenado a cinco anos de prisão efectiva por três crimes de tráfico de influência -, são invocadas inúmeras nulidades, começando-se logo pela incompetência do Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro para investigar um caso de âmbito nacional e do juiz de instrução da mesma comarca para o acompanhar.

Envolvendo o processo factos ocorridos em diferentes distritos judiciais, a defesa sustenta que a competência seria, respectivamente, do Departamento Central de Investigação e Acção Penal e do Tribunal Central de Instrução Criminal, ambos em Lisboa. Essa violação, diz, constitui uma “nulidade insanável” capaz de destruir todo o processo. A defesa argumenta que também a acusação é nula porque Vara foi ouvido no inquérito, mas confrontado apenas com uma parte dos factos que mais tarde vêm a constar da acusação. O facto de o tribunal ter admitido, durante o julgamento, a junção ao processo da transcrição de escutas telefónicas também é contestada e constitui para a defesa uma violação da Constituição.

Por outro lado, a defesa sustenta que a destruição - por decisão do então presidente do Supremo - das escutas que apanharam colateralmente o então primeiro-ministro José Sócrates, prejudica toda a prova feita através das intercepções, que se torna prova proibida. O argumento é igualmente usado pela defesa de Paulo Penedos.

Contestando minuciosamente a análise da prova feita pelo tribunal, o advogado de Vara insiste que não há elementos para condenar o cliente. Por exemplo, relativamente aos 25 mil euros que Vara terá recebido de Godinho para pagar a sua influência, a defesa realça que a perícia financeira “não detectou nenhum depósito em cheque ou em dinheiro proveniente das contas de Manuel Godinho ou de qualquer das suas empresas”. E critica: “O tribunal chegou à prova dos factos em causa exclusivamente através dos juízos de inferência que fez de duas conversas telefónicas, nas quais, em momento algum é feita referência a solicitação de dinheiro, a promessa de dinheiro, a entrega de dinheiro, a dinheiro. Nenhuma destas expressões é utilizada”. Em causa está uma conversa em que Godinho diz a Vara que este lhe falou há dias de “25 quilómetros”, ao que este responde “isso é para depois”. 

José Penedos e o “erro notório” na apreciação da prova

A defesa de José Penedos, ex-presidente da REN, condenado a cinco anos de prisão efectiva por dois crimes de corrupção e um crime de participação económica em negócio não poupa nas palavras nem nos esforços. Às 455 páginas do recurso, junta ainda um parecer do professor catedrático de Coimbra, Manuel Costa Andrade (actual presidente do Tribunal Constitucional), e de outra colega, em que defendem que com a matéria que o tribunal de Aveiro deu como provada não poderia ter condenado José Penedos, por não estarem preenchidos os requisitos dos crimes.

No recurso, a defesa contesta o facto dos juízes de Aveiro terem alterado alguns factos da acusação sem terem previamente comunicado as alterações ao arguido. Negando ter tido qualquer acto para favorecer as empresas de Manuel Godinho, José Penedos insiste que nem sabia quem lhe oferecia as prendas de Natal – onde se inclui uma fruteira sem asas (1939 euros) e uma jarra em prata (1689 euros) dados por Godinho – já que era a secretária que as abria. Nem conhecia bem os contornos da relação profissional do filho com o empresário de sucata, nomeadamente quanto este lhe pagava e o facto de o Godinho ter emprestado perto de 500 mil euros ao filho.

Realça ainda que dos quase 40 funcionários da REN ouvidos em julgamento nenhum disse que Penedos os pressionou, condicionou ou influenciou para favorecer a principal empresa de Godinho, a O2. Descredibiliza também as afirmações do filho Paulo nas escutas, sublinhando que “as falas de Paulo Penedos apenas o comprometem a ele, não sendo admissível das mesmas retirar a comprovação de quaisquer factos”, lembrando que o próprio admitiu ao tribunal ter usado abusivamente o nome do pai perante Godinho. E nega alguma vez ter dado informação privilegiada ao filho.

Por diversas vezes, a defesa insiste que o tribunal deu factos como provados sem que houvesse “um único meio de prova” a comprovar aquela alegação e que, por diversas vezes, o tribunal fez um “erro notório na apreciação da prova”.

Godinho: requisitos dos crimes por preencher

Condenado a 17 anos e seis meses de prisão por 49 crimes de associação criminosa, corrupção activa, tráfico de influências, burla qualificada, perturbação de arrematação pública e furto qualificado, a defesa de Manuel Godinho contesta a decisão dos juízes de Aveiro em 145 páginas, que incluem igualmente a defesa de um sobrinho e da secretária do empresário.

Rejeita também que tenha ficado provado a existência de qualquer organismo ou estrutura criminosa e pede-se, por isso, anulação do crime de associação criminosa. A defesa nega que as prendas que Godinho oferecia tivessem algum carácter de vantagem e lembra que a maioria dos que receberam as oferendas não foram constituídos arguidos neste processo. Insiste-se, por isso, que não existe nenhuma coerência entre as prendas e os actos descritos no processo. O recurso analisa cada um dos tipos de crime pelo qual Godinho foi condenado, concluindo que em todos faltam requisitos essenciais para o preenchimento dos ilícitos.