Brasil: grupos do narcotráfico em guerra aberta pelo negócio da cocaína

O motim na prisão do estado do Amazonas, que terminou com 56 mortos, é só o mais recente episódio na disputa territorial entre o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, os dois maiores grupos do narcotráfico brasileiro.

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Utilizadores de crack no Rio de Janeiro Nacho Doce/REUTERS

Depois de fazerem manchetes na Colômbia e no México, as guerras territoriais entre grupos criminosos ligados ao narcotráfico estão agora nas parangonas do Brasil, após o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, a maior cadeia do estado do Amazonas, onde 56 detidos morreram num combate entre duas facções rivais. Mas nem mesmo os mais distraídos podem revelar surpresa ou alegar desconhecimento do fenómeno. As prisões brasileiras – como as fronteiras, os subúrbios das grandes cidades e os morros e favelas brasileiras – convivem diariamente com a violência extrema do tráfico de droga, que aumentou desde que os dois grandes cartéis decidiram expandir as suas operações.

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Depois de fazerem manchetes na Colômbia e no México, as guerras territoriais entre grupos criminosos ligados ao narcotráfico estão agora nas parangonas do Brasil, após o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, a maior cadeia do estado do Amazonas, onde 56 detidos morreram num combate entre duas facções rivais. Mas nem mesmo os mais distraídos podem revelar surpresa ou alegar desconhecimento do fenómeno. As prisões brasileiras – como as fronteiras, os subúrbios das grandes cidades e os morros e favelas brasileiras – convivem diariamente com a violência extrema do tráfico de droga, que aumentou desde que os dois grandes cartéis decidiram expandir as suas operações.

No Brasil, como ainda acontece no México e já aconteceu na Colômbia, o negócio do tráfico de droga, violento, lucrativo e ilegal – no caso, cocaína –, é dominado por organizações criminosas poderosas, que prosperaram ao ponto de substituírem a autoridade e assumirem as funções do Estado nas suas áreas de influência – distribuem trabalho, providenciam habitação, asseguram serviços de transporte ou cuidados médicos à população…

Dois grupos têm expressão nacional: o Comando Vermelho, fundado no Rio de Janeiro no final da década de 70, o primeiro cartel da droga brasileiro; e o Primeiro Comando da Capital, ou PCC, nascido na megalópole de São Paulo em 1993 e convertido na maior organização criminosa do país. Vários outros reclamavam para si pedaços menores de território: quando os dois grandes grupos carioca e paulista começaram a sua expansão, procuraram forjar alianças regionais que romperam o equilíbrio do mercado e puseram fim à trégua de conveniência respeitada durante décadas.

Cartéis controlam prisões

“Era só uma questão de tempo”, considerou Camila Nunes Dias, professora de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e investigadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, entrevistada pela Deutsche Welle. “Antes, o Comando Vermelho e o PCC eram aliados no sentido de actuar juntos em negócios e de conviver nas mesmas unidades prisionais. Tinham um acordo de divisão do país, mas, como sabemos, no universo da economia ilegal, esses tratados são muito precários”, notou.

“A ruptura deu-se por uma multiplicidade de factores, mas no fundo aconteceu por conta da competição e da dinâmica de expansão das duas facções que, num determinado momento, chocaram na sua busca pela ampliação dos mercados consumidores e do controlo do tráfico de drogas, tanto nas ruas como nas prisões”, explicou.

De acordo com o 2016 World Drug Report, o grande relatório sobre o fenómeno das drogas publicado pelo Gabinete de Droga e Criminalidade das Nações Unidas, nos últimos anos notou-se uma “alteração significativa na dinâmica do mercado global de cocaína”, e o Brasil foi um dos locais mais afectados por essa transformação. O país é, agora, o segundo maior consumidor mundial daquela droga, atrás dos Estados Unidos. E a pressão conjugada da facilidade da oferta externa com o crescimento da procura interna tornou o Brasil numa plataforma giratória, uma peça central no fluxo de distribuição de cocaína na América do Sul – e daí para a Europa, África e Ásia.

Com fronteiras relativamente desprotegidas com a Colômbia, o Peru e a Bolívia, os três maiores produtores mundiais de coca e cocaína, o Brasil nem precisa de grande esforço para “alimentar” o ávido mercado doméstico. A droga circula com facilidade através do território quase selvagem das regiões fronteiriças, que de resto já estava “batido” pelas redes de contrabando com rotas de distribuição estabelecidas para os grandes centros urbanos do país.

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Além de ter acesso facilitado à produção, o Brasil dispõe também de uma infra-estrutura que favorece a sua distribuição, nomeadamente através do transporte marítimo transatlântico, aproveitado pelos cartéis brasileiros para expandir as suas operações para o nível internacional – um documentário produzido pelo jornal britânico The Guardian dizia que 80% da cocaína que entra na Europa sai do porto de Santos, no estado de São Paulo.

A guerra entre o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho foi oficialmente declarada em Junho do ano passado, quando as duas facções disputaram o controlo da fronteira do estado do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, que se tinha tornado a maior porta de entrada de drogas no Brasil. Como lembrava o jornalista e colunista da Folha de são Paulo Fabiano Maisonnave, a primeira grande batalha teve contornos de filme épico filmado em Hollywood, com um “tiroteio cinematográfico” que envolveu mais de 70 atiradores e se prolongou por mais de quatro horas.

Numa entrevista ao HuffPost Brasil, o especialista em segurança pública Guaracy Mingardi contextualizava o mais recente episódio de violência no Amazonas, afirmando que o Estado se demitiu do controlo quotidiano no interior das prisões, que foi assumido pelas organizações criminosas: “Primeiro o Comando Vermelho, depois o Primeiro Comando da Capital, a Família do Norte, o Primeiro Grupo Catarinense… Todo o lugar tem o seu grupo, mas o maior deles é o PCC, sem dúvida. Está em 22 estados; em alguns domina, noutros não”, esclarece.

A terceira facção

A Família do Norte, que segundo os investigadores citados pela imprensa brasileira foi a “mandante” do motim do Amazonas, controla a região de fronteira tropical e assegura o transporte de cocaína produzida na Bolívia e Peru pelo rio Negro até Manaus – a rota Solimões. É adversária declarada do PCC: terá, aliás, sido forjada por dois grandes traficantes, Gelson Lima Carnaúba (ou Mano G) e José Roberto Fernandes Barbosa (aka o Perturba, Z, Doido ou Messi), como resposta às primeiras tentativas do grupo paulista para assumir a rota do Amazonas.

Apesar de ter um poder e uma área de intervenção limitada, a Família do Norte converteu-se no terceiro grupo mais importante do Brasil, por motivos geoestratégicos: é pelo seu território que passam as principais rotas da cocaína. Sem capacidade para enfrentarem o PCC sozinhos, os dois barões do Norte aliaram-se ao Comando Vermelho, que estava em decadência por causa das operações de “limpeza” do narcotráfico nas favelas cariocas.

“Os grupos locais no Norte e Nordeste aliaram-se ao Comando Vermelho, porque ele não pede muita coisa em troca da filiação e apoio. O PCC, em contrapartida, é extremamente exigente, inclusive em termos de compromissos financeiros”, refere Camila Nunes Dias. Para a investigadora, a violência que extravasou no motim do complexo prisional do Amazonas insere-se no quadro da “ruptura e disputa feroz e muito violenta entre os dois grupos consolidados”, que se acirrou com a aliança da Família do Norte. “Não é nenhuma surpresa, já estava anunciado desde a declaração de guerra entre o Comando Vermelho e o PCC”, diz.

Segundo o Estado de São Paulo, “as autoridades já percebiam os riscos de confronto nos presídios do Amazonas há pelo menos um ano”, tendo tido conhecimento, em Novembro de 2015, de “planos para o assassínio de todos os membros do PCC pela Família do Norte”. O plano nunca fora concretizado, porque “todos os presidiários de Manaus que tinham vínculos aos grupos rivais estavam custodiados em ala própria no Centro de Detenção Provisória, em pavilhões apelidados de seguros, sob forte protecção policial”.