O regresso de Emir Kusturica com um cinema que não volta mais

Há uma enorme melancolia, como se toda a promessa de reinvenção de Na Via Láctea não pudesse evitar o horizonte de perda. Está aqui um adeus.

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O que é solitário e comovente em Na Via Láctea é lembrar-nos do cinema como ele já foi. Não haverá muito por onde errar: este renascimento de Emir Kusturica nove anos depois da sua última longa-metragem (Promise me this) não é um regresso porque este cinema não volta mais. Podemos saborear-lhe um gosto antigo, recordá-lo como reencontro, descobri-lo como bizarria. Será sempre um engano — não existe mais. Vamos arriscar e errar — isto não vai ter continuidade, já acabou.

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O que é solitário e comovente em Na Via Láctea é lembrar-nos do cinema como ele já foi. Não haverá muito por onde errar: este renascimento de Emir Kusturica nove anos depois da sua última longa-metragem (Promise me this) não é um regresso porque este cinema não volta mais. Podemos saborear-lhe um gosto antigo, recordá-lo como reencontro, descobri-lo como bizarria. Será sempre um engano — não existe mais. Vamos arriscar e errar — isto não vai ter continuidade, já acabou.

Mesmo que Emir Kusturica, 62 anos, cineasta de Sarajevo, não troque os filmes pela agricultura biológica que agora o entusiasma (framboesas e maçãs, precisou no último Festival de Veneza), mesmo que faça mais filmes (mas alguém crê? “É muito difícil fazer filmes. Sou um cineasta cuja mise-en-scène é desencadeada pelo espaço, é difícil. Fazer filmes é como construir pirâmides, se levarmos o cinema a sério”, disse), estes gestos do demiurgo a criar o mundo a partir da desordem, sempre no limite, a conduzir multidões no estúdio, mesmo que seja a céu aberto, e na sala de cinema, já tiveram os seus dias contados. (Um último hurrah: três anos de rodagem, 2013, 2014, 2015, várias interrupções e recomeços: por causa de um falcão que não havia o filme começou a ser desenvolvido com essa ausência, depois o falcão apareceu e voltou-se à estaca zero; ainda, 47 dias de chuva na Sérvia; ainda as dificuldades de o cineasta estar atrás e à frente da câmara.)

O próprio Emir parece ter contribuído para o seu fim: A Vida é um Milagre (2004) e Promise me this (2007) ficam como caricaturas desse cinema que antes sacudia as salas como música para casamentos e funerais. Foi uma certidão de óbito. Data dessa altura a cristalização da auto-indulgência de rock star com charuto ameaçador, a No Smoking Orchestra, o afago de egos com o futebolista Maradona, etc., e foi essa a imagem dele que sobrou para hoje. Talvez seja ela a responsável pela cortina de fumo que impede que se aceda verdadeiramente a Na Via Láctea — um dos filmes mais displicentemente ignorados destes últimos meses e dos próximos –, talvez seja ela que impede que se oiça a música que ali se compõe. Que é diferente do carrossel que fez a apoteose de Underground (1995) e Gato Preto, Gato Branco (1998). Se se der uma vista de olhos pelos textos que já acusaram a recepção do filme percebe-se que antes de se ver Na Via Láctea o filme já tinha sido “visto”: o confronto não foi com as suas imagens, o confronto foi com uma imagem cristalizada. Sempre a falar-se de Underground e de Gato Preto, Gato Branco, mas como é possível, se em Na Via Láctea, história de amor entre um leiteiro (Kusturica) e A Noiva, uma italiana em fuga pelos Balcãs em guerra (Monica Bellucci), o cineasta inverte os dados do seu cinema?

Em pano de fundo o carrossel de animais, gansos, sim, sempre os gansos. Até as moscas parecem ter sido dirigidas. Mas mesmo se há papéis importantes para um burro, para um urso que Kusturica conhece há cinco anos e por isso se atreve a partilhar com ele uma refeição de laranjas, para um falcão e para uma cobra, o zoo funciona sobretudo como sinalização de um território cinematográfico, sendo para o espectador (e também para um cineasta que regressou do mundo dos mortos) uma afectuosa aide memoire. A guerra? Nada a ver com Underground. Na verdade, a imagem de marca ensurdecedora é delicadamente amainada. A fragilidade passa a ser a demonstração de força. Sobrepõem-se os sons da natureza, há um novo tom para uma melodia que achávamos que conhecíamos e, afinal, não: é agora o vento que toma conta da guerra e do filme.

E por isso... em vez de Underground e Gato Preto, Gato Branco fecha-se o círculo com o reencontro com o intimismo dos primeiros filmes, Lembras-te de Dolly Bell? (1981) e O Pai Foi em Viagem de Negócios (1984). Em vez de Fellini, em quem Kusturica se reconhece (disse, aliás, isto: também ele manda construir todo um set e depois coloca a câmara para filmar apenas um canto dele), a promessa é o delicado bailado aquático de um casal, como no L’Atalante (1934) de Jean Vigo.

O casal, então. Eis o mais bonito casamento do ano: Emir Kusturica e Monica Bellucci. Ele é um leiteiro e músico que atravessa a Guerra dos Balcãs como dissidente do jogo da História, ela é uma italiana em fuga. Encontro de iguais, cada um descobre em si, por causa do outro, o que de si já tinha esquecido. Monica traz a Na Via Láctea a sua capacidade de iludir, pela sua simples presença, a catástrofe (como no Irreversível, de Gaspar Noé). Emir faz uma versão de si próprio, ele que interpreta um leiteiro, um músico e que observa o vale com um monóculo (também é um cineasta, então). É um homem fora da História, figura de fragilidade pícara, um derrotado. Há uma enorme melancolia no olhar que aqui se deixa a descoberto, como se toda a promessa de reinvenção da última hora do filme não pudesse evitar o horizonte de perda — não passa despercebido o facto de alguns efeitos digitais entrarem pelo filme adentro confirmando a impossibilidade deste cinema poder ser como era. Apostamos que neste olhar de Kusturica está um adeus.

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