“A Internet criou a cultura nerd moderna”

Ernest Cline é um fã que escreve romances sobre as suas paixões de miúdo – videojogos, filmes, Dungeons & Dragons. Jogador 1, uma ode à cultura geek dos anos 1980, vai ser um filme de Steven Spielberg e é uma janela para vários fenómenos pop de 2016.

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Já lhe chamaram muita coisa, como é próprio de quem tem uma história digna de ser invejada por comunidades e gerações inteiras. Sobretudo quando essa pessoa, como Ernest Cline, também cria histórias. “O geek com mais sorte do mundo”, “Ernest Cline está a viver o sonho do geek” da geração X: está a ver o seu livro sobre a cultura dos anos 1980 (leia-se blockbusters, videojogos e Dungeons & Dragons) ser adaptado para cinema por Steven Spielberg. Jogador 1é o seu livro, e o futuro filme de Spielberg, que olha (outra vez) para os 80s com carinho e também para a realidade virtual do nosso presente como caminho para o futuro.

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Já lhe chamaram muita coisa, como é próprio de quem tem uma história digna de ser invejada por comunidades e gerações inteiras. Sobretudo quando essa pessoa, como Ernest Cline, também cria histórias. “O geek com mais sorte do mundo”, “Ernest Cline está a viver o sonho do geek” da geração X: está a ver o seu livro sobre a cultura dos anos 1980 (leia-se blockbusters, videojogos e Dungeons & Dragons) ser adaptado para cinema por Steven Spielberg. Jogador 1é o seu livro, e o futuro filme de Spielberg, que olha (outra vez) para os 80s com carinho e também para a realidade virtual do nosso presente como caminho para o futuro.

Ready Player 1, essa frase gravada na retina e nos ecrãs inclinados dos salões de jogos, surgia no início de um jogo e era a entrada para um mundo novo. Traduzido para Jogador 1, é uma entrada para um livro exaustivamente detalhado sobre a cultura popular na década dos chumaços e do ZX Spectrum. Não exigiu qualquer pesquisa. “Só incluí coisas da minha vida que já conhecia”. Ernest Cline é um nerd, um geek, um fã, alguém que sabe as falas de Jogos de Guerra ou os truques finais do jogo Black Tiger de cor. “Cresci a ler fantasia e romances de ficção científica e a jogar RPG [jogo de interpretação de papéis] como Dungeons & Dragons e Star Frontiers, por isso tenho imaginado realidades futuras ou alternativas a vida inteira”.

O livro foi editado este ano em Portugal pela Presença depois de ter sido um êxito de vendas nos EUA logo em 2011, quando em meras 48 horas foi arrebatado por uma editora e licitado por estúdios de Hollywood. A Warner e a DreamWorks vão pôr o Jogador 1 no cinema em 2018 e pelas mãos de Spielberg, o cineasta definidor de um certo pop dos anos 1980. A história? 2044. Wade Watts é um adolescente que vive numa Oklahoma City distópica mas onde um sistema de realidade virtual, o Oasis, permite viver num outro plano. Estudar, conviver, escapar e jogar. Foi criado por James Halliday e Ogden Morrow (inspirados na relação de Steve Jobs e Steve Wozniak, da Apple) e um deles concebe um desafio que lança o mundo numa febre pelos anos 1980 e toda a sua cultura pop para tentar ganhar um prémio fabuloso.

Os jogos, os livros, os filmes, as roupas, os petiscos, os doces. Jogador 1 é um festim de memória e memórias, e surgiu numa altura em que tudo indicava que a paixão dos anos 2000 pelos 80s, no âmbito dos tradicionais ciclos de 20 anos pelos quais se regem as obsessões retro, esmorecia. Mas não. Hollywood está outra vez a tentar recuperar ou reembalar a magia dos filmes e de uma ideia de vida dos anos 1980. Seja em Portugal, com livros como LX80, seja no Netflix com a série Stranger Things, e agora Jogador 1 é mais uma peça dessa engrenagem.

O livro não é só detalhado – é sentido. Ernest Cline é autor de Fanboys, o livro tornado argumento de um filme sobre um grupo de amigos que são fãs de Star Wars, e depois de Jogador 1 já escreveu Armada (cujos direitos já foram comprados pela Universal), todos directa ou indirectamente sobre o que é ser fã, mas mesmo fã, de objectos de cultos que às vezes são êxitos de massas. Tal como os criadores de Stranger Things, a série pastiche dos anos 1980 que marcou o Verão do Netflix, Cline fez do que conhece um produto seu.

Trinta anos depois, há mais meios e mais proximidade. Depois de anos de relativa penúria, Cline fez a digressão de promoção de Jogador 1 a bordo do seu DeLorean DMC-12, o raro carro de Regresso Ao Futuro. “Sabem o quão mau era ser um nerd há 20 anos?”, perguntava Gary Vaynerchuk na Web Summit. Escritor e investidor, a Wikipedia descreve-o como “Internet personality”. “Hoje em dia o mercado compensa os nerds e eles são rock stars. Batam palmas se são nerds!”. E eles bateram palmas.

Ernest Cline, ocupado a acompanhar a rodagem com Spielberg, foi conversando com o PÚBLICO por email.

Os anos 1980 voltaram – de Stranger Things a Halt and Catch Fire ou The Americans na TV, aos filmes com novas sequelas ou remakes, como Indiana Jones ou Ghostbusters. Por que é que isto acontece?  
Em parte acho que é porque muitos argumentistas, escritores e cineastas que cresceram nos anos 1980 estão a ir beber à sua própria nostalgia de infância. Por outro lado, os anos 1980 foram uma era dourada para o cinema, para os computadores e videojogos e por isso continuam a ter uma influência gigantesca na cultura popular moderna.

Onde é que estão os alicerces do nosso prazer em continuar a viver coisas do passado fora do seu contexto? 
É tudo nostalgia, que faz parte da natureza humana. O futuro é incerto e por isso um pouco assustador. O passado é familiar e por isso é reconfortante.

Certamente teve feedback de leitores que cresceram nos anos 1980, mas também de leitores mais jovens – são experiências diferentes? A experiência funciona sem a nostalgia, ou funciona também graças à nostalgia de uma época que nunca se viveu?
Completamente. Jogador 1 tem muitos fãs adolescentes e também foi seleccionado como livro de leitura para o 1.º ano de dezenas de faculdades nos EUA. Pessoas que nem sequer eram nascidas nos anos 1980 gostam do romance, mas simplesmente como uma história de aventuras. Os leitores mais jovens também conseguem relacionar-se mais facilmente com as personagens de Jogador 1, que passam grande parte das suas vidas online, que vivem num mundo digital onde têm uma identidade digital independente.   

Por que é que escreveu tanto sobre a experiência de ser fã? Ser um fanboy hoje é muito diferente de o ser nos anos 1980 ou 1990? 
Escrevo sobre a experiência de ser fã e parte de uma comunidade ou movimento de fãs porque essa é a minha perspectiva do mundo. Sou um entusiasta de livros, filmes, séries, música, programas de TV, jogos e tecnologia e esse entusiasmo tende a expressar-se na minha escrita.

Graças à Internet os fãs modernos de cultura popular têm um acesso maior e mais fácil às coisas de que gostam. Mas não isso não os torna menos apaixonados do que os fãs de gerações anteriores.  

Cultura nerd, triunfo dos geeks… faz sentido para si? Dos filmes de super-heróis às séries de fantasia ou terror para as massas, como é que vê como estas paixões de miúdos solitários tomaram conta do mainstream?
A Internet mudou tudo e foi criada por geeks. Fez com que os fãs solitários já não fossem solitários – e isso é que criou a cultura nerd moderna. Os super-heróis, o sci-fi, a fantasia, o horror… estes géneros sempre tiveram milhões de fãs, mas estavam espalhados e desligados. Agora já não.

Esse é um tema de conversa que tem com amigos que também dão por si a lidar com isso, como George R.R. Martin?
Nunca discuti isso com George, mas ele já disse coisas parecidas. Os romances dele sempre foram obras de arte incríveis com muitos fãs dedicados. Mas o trabalho dele nunca teve a atenção maciça que merecia até As Crónicas de Gelo e Fogo terem sido adaptadas para uma série.  

Jogador 1 nasceu de uma ideia antiga mas sobretudo da frustração de Ernest Cline com a actividade de argumentista. Queria escrever para meios de massas como o cinema, mas a experiência com os irmãos Weinstein em Fanboys não foi boa. Escreveu um romance nas horas vagas e, ironia das ironias para um homem de 44 anos que se descreve como miúdo que era um “estereótipo nerd”, vai ser um filme. Adorava computadores e electrónica embora saiba que “a humanidade sempre teve uma relação de amor/ódio com a tecnologia, recuando até à Revolução Industrial”, diz ao PÚBLICO, e pô-la no centro das suas histórias. A plataforma de realidade virtual Oasis inspira-se em “todos os videojogos que já joguei, de Space Invaders a EverQuest. Também me inspirei nos mundos virtuais descritos em Neuromancer, de William Gibson, e Snow Crash, de Neal Stephenson”.

Pouco depois de ser publicado Jogador 1, foi lançado o Oculus Rift, um sistema de realidade virtual semelhante ao Oasis do livro. Hoje, os funcionários da empresa Oculus VR têm como leitura obrigatória Jogador 1. “Parece que a realidade virtual tem estado no nosso horizonte tecnológico há décadas e agora finalmente chegou. Neste momento tenho um headset de realidade virtual ligado ao meu computador, o que há cinco anos, quando o livro foi publicado, não era real. Parece que o Oasis está mesmo ao virar da esquina”, diz o escritor. Perto está também da rodagem de Ready Player One, o filme com Mark Rylance, Tye Sheridan e Ben Mendelsohn. Assina o guião com Zak Penn e sente-se envolvido desde a pré-produção até às filmagens. Trabalhar com Spielberg “era um sonho da minha vida, agora concretizado”. Mesmo tendo-o criticado no livro que o realizador tanto adorou.

Quão satisfeito está com a versão de Spielberg da sua história? 
Estou radiante. Ele é um grande fã do livro e está a ser muito cuidadoso para se manter fiel ao seu espírito, fazendo as mudanças necessárias para o adaptar. Cresci a ver e a adorar os seus filmes e o seu trabalho foi uma das principais inspirações para Jogador 1. Essa é só uma das razões pelas quais ele é a pessoa perfeita para realizar o filme.

Mas este é o Steven Spielberg do século XXI, o mesmo que realizou Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal com o qual uma das suas personagens goza no livro. Essa cena consta do filme? Como é que ele lidou com isso?
Ele nunca o mencionou. Como todos os grandes artistas, tenho a certeza de que encara as críticas com naturalidade. E essa piada sobre o Reino da Caveira de Cristal está almofadada em adoração pura pela obra dele. Depois destas décadas todas, ele ainda faz filmes incríveis, relevantes e que entretêm, como Lincoln, A Ponte dos Espiões ou O Amigo Gigante. Está a preparar-se para outro filme Indiana Jones e eu serei um dos primeiros fãs na fila para o ver.

Muito do livro é feito de quase recriações de filmes ou jogos emblemáticos – o que, na adaptação para o cinema, deve ter sido um pesadelo legal. Como é que resolveram isso? 
O filme vai ser diferente do livro, tal como qualquer outra adaptação de um livro para o cinema. Mas há um número espantoso de referências de cultura pop do livro que também vão estar no filme porque o Steven conseguiu ter autorização. Quem é que não quereria uma referência ao seu trabalho num filme de Spielberg?