Wenders a acordar
Este Wenders, Os Belos Dias de Aranjuez, reaviva sensações perdidas do nosso tempo de espectadores — e de espectadores do cinema do cineasta alemão.
Não haverá melhor “filme” de Wenders, hoje, do que a experiência de seguir a sua obra numa retrospectiva: a cada título — Alice nas Cidades, 1974; Ao Correr do Tempo, 1976; O Amigo Americano; 1977; O Estado das Coisas, 1982; Paris, Texas, 1984... — o luto vai ser reiterado; sairemos esvaídos pela nostalgia. É soturna a confirmação do fim do cinema tal como o conhecemos. Mas tal como no Estado das Coisas, seremos, perante esses filmes, a criança que nessa obra de 1982 perguntava “o que é o fulgor?”. Cheios de desesperança, eles respondem, mostram.
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Não haverá melhor “filme” de Wenders, hoje, do que a experiência de seguir a sua obra numa retrospectiva: a cada título — Alice nas Cidades, 1974; Ao Correr do Tempo, 1976; O Amigo Americano; 1977; O Estado das Coisas, 1982; Paris, Texas, 1984... — o luto vai ser reiterado; sairemos esvaídos pela nostalgia. É soturna a confirmação do fim do cinema tal como o conhecemos. Mas tal como no Estado das Coisas, seremos, perante esses filmes, a criança que nessa obra de 1982 perguntava “o que é o fulgor?”. Cheios de desesperança, eles respondem, mostram.
A “hora mágica” de Wenders foi a passagem entre a caravana à deriva numa Los Angeles em perda de luz (o final de O Estado das Coisas) e a luminosidade do deserto que abria Paris Texas, filme que ainda hoje vemos como se acordássemos: a convalescença depois da doença, a redescoberta das histórias. Depois desse fulgor, o cineasta fixou-se a falar sobre esse lugar, fez-se proselitista, talvez falhado proselitista: não convenceu de nada, ele é que parece ter sido raptado por uma seita.
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É natural que entremos com estas dúvidas e perdas para Os Belos Dias de Aranjuez, ainda para mais sendo o filme que vem depois de um ponto inferior da esfera celeste wendersiana, Tudo Vai Ficar Bem (2005). Quando se estreou no Festival de Veneza, a descrença tomou o rosto da ironia, à beira daquela que foi uma exibição em 3D desta adaptação de um texto de Peter Handke (3D para se ouvir um texto?). O reencontro entre o cineasta alemão e o autor austríaco, quase três décadas depois de As Asas do Desejo e mais de quatro depois de A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty, trazia saudades do passado mas não exercitava curiosidade no presente. É, então, uma das surpresas de Os Belos Dias de Aranjuez: estando Wenders sempre a falar sobre o cinema, sobre o lugar onde pode resistir, aqui ele não fala, apesar de ser um filme falado, aqui ele experimenta o lugar e faz-nos experimentá-lo. É um delicado espectáculo, vibrantemente sensual, sobre o início das coisas, que é a obsessão de Wenders depois da reconfiguração familiar e melodramática vislumbrada em Paris, Texas. “Lançados” pela mirífica Perfect Day, a canção de Lou Reed, um homem e uma mulher (Reda Kateb e Sophie Semin) iniciam-se num desafio de diálogos, levantam problemas no paraíso, o amor, o sexo, eles contra elas e vice-versa. Um filme também conta a história do momento em que o encontramos, sobretudo quando o encontramos pela primeira vez. Em Veneza a exibição de Os Belos Dias de Aranjuez foi simultânea das comemoração das primeiras sessões, há 120 anos, do Cinematógrafo Lumière. Foi uma coincidência que teve o efeito que a luz do Verão tem sobre as formas: propagou para o filme de Wenders o assombro perante aquilo que começa. Este conto de Verão reaviva sensações que ficaram perdidas no nosso tempo de espectadores. E de espectadores do cinema de Wenders, de quem andamos, em vão, à procura em cada filme: a memória de uma já longínqua, fugidia, passagem, aquele acordar.