“Fora a mentira política, criminosa até, a mentira é uma necessidade social”

Em Lisboa para lançar dois livros onde ironiza com a mentira, escritor brasileiro fala da escrita, do Brasil, das misérias da política mas também do perigo de desacreditá-la, porque para lá dela “sobram os demagogos”.

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Luis Fernando Verissimo esteve em Lisboa a lançar As Mentiras que as Mulheres Contam. O livro chega a Portugal numa edição da D. Quixote, que aproveitou para reeditar também As Mentiras que os Homens Contam, um dos seus maiores sucessos de vendas. Em entrevista ao PÚBLICO, fala de moral, de política, do Brasil e da velhice.  

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Luis Fernando Verissimo esteve em Lisboa a lançar As Mentiras que as Mulheres Contam. O livro chega a Portugal numa edição da D. Quixote, que aproveitou para reeditar também As Mentiras que os Homens Contam, um dos seus maiores sucessos de vendas. Em entrevista ao PÚBLICO, fala de moral, de política, do Brasil e da velhice.  

Da última vez que conversámos andava entusiasmado com a preparação de um musical, BarbarIdade, juntamente com o escritor Zuenir Ventura e o cartoonista Ziraldo.
Era um musical sobre a velhice. Mas tinha muito pouca coisa minha, do Ziraldo ou do Zuenir. Um outro escritor fez o texto final [Rodrigo Nogueira]. Foi um sucesso.

Sobre a velhice? Que ideias eram essas?
Criei uma personagem baseada em Matusalém, da Bíblia, que durou quase mil anos. Mas era um Matusalém que não tinha morrido ainda e morava no Rio de Janeiro. Então aparecia em cena, dava palpites e contava coisas da História. Mas foi mal aproveitado. As conversas para planear a peça foram muito mais divertidas do que a peça.

Disse numa entrevista recente: “A gente se distrai e, quando vê, está com 80 anos. Deveria haver um curso preparatório para a velhice”. Se houvesse, que diferença faria?
Não sei… A gente aprenderia a aceitar a morte inevitavelmente se houvesse uma glândula no ser humano que preparasse ele para a velhice, como quando a criança se prepara para a puberdade. Devia ser a mesma coisa com a velhice, mas como não existe isso, temos de aproveitar o irremediável.

Não existindo, como é que se prepara?
A gente tenta viver de uma maneira que negue a morte, intensamente, aproveitando tudo o que pode. Mas não sei bem como seria a receita.

É uma coisa que se faz todos os dias, não é?
Exactamente. Só a gente sair da cama de manhã já é uma decisão para estar vivendo.

O que o traz aqui são contos sobre mentiras, em forma de crónica. Estes livros são colectâneas?
São crónicas de várias épocas sobre as mentiras das mulheres e dos homens, mas não exclusivamente sobre esse tema. Quando lancei As Mentiras Que os Homens Contam sempre me perguntavam quando é que eu escrevia o livro As Mentiras Que as Mulheres Contam. Eu respondia que seria um livro muito grosso, muito grande. Ironicamente ficou menor do que o dos homens.

Fez a selecção das crónicas?
Foi a editora. Depois eu faço uma revisão, aprovo. O das mulheres tem um inédito, O Aviãozinho, de uma mãe a dar a papa ao filho.

É uma mentira universal.
É a primeira mentira. Uma colher de papinha, um aviãozinho.

Escreveu-o há pouco tempo?
Sim, a pedido da editora, para ser a apresentação do livro. Os outros todos são de várias épocas.

Mexeu na selecção da editora?
Não mexi em nada. Tenho a palavra final, claro. Um livro tem de ser de crónicas atemporais, universais, que não perdem o sentido. Se fossem sobre política ou futebol, teriam de ser em cima do facto. Mas neste caso todas as crónicas são ou pura ficção ou um delírio. A ideia é essa universalidade. Daqui a muitos anos, quem abrir um livro desses vai ler uma crónica que ainda faz sentido porque a experiência humana continua a ser a mesma.

Na releitura apercebeu-se da temporalidade de cada uma?
O Fernando Sabino dizia que depois de cinco anos tudo volta a ser inédito. Às vezes a gente aproveita uma ideia antiga e desenvolve de outra maneira. Não faz um auto-plágio, mas desenvolve a ideia de outra maneira. E é verdade que para isso acontecer tem de ser bem antigo. É uma certa malandragem, mas às vezes nos salva na falta do assunto.

Algumas das crónicas já têm outra vida: fizeram o filme Ninguém Entra Ninguém Sai baseado no conto No Motel. Participou nessa adaptação?
Não. A escolha foi deles e a adaptação também.

Como lhe surgiu essa ideia de pessoas retidas num motel?
Não me lembro nem é nenhuma experiência minha. Achei engraçada a ideia de as pessoas ficarem de quarentena num hotel e acaba-se criando uma comunidade.

Via-se a assinar um livro intitulado As Mentiras que os Políticos Contam?
Seria um livro enorme… É o caso de um tema que pede actualidade. Para generalizar a fala sobre corrupção, que é endémica no Brasil ou no resto do mundo, teria de explicar quem era fulano de tal, que roubou tanto.

Não podia ser em abstracto? Há personagens que consoante as épocas vão mudando de nome mas são quase as mesmas.
É verdade. A gente acaba batendo na mesma tecla, quando fala em política fala em corrupção. Mas desacreditar a política, desacreditar os políticos, é uma coisa perigosa. O que é que sobra? Sobram os demagogos!

Qual seria a maneira de a política se salvar?
Por bom comportamento voluntário do político: decidir não ser corrupto, ser um bom político, um bom administrador. Mas isso depende só da iniciativa da pessoa, da moral. Acabamos sempre na moral. 

Tem sido muito crítico em relação a governos brasileiros (Collor, Fernando Henrique Cardoso, as gestões seguintes). Acha que o Brasil neste momento, depois de tudo o que se viveu, está num melhor caminho?

Acho que não, acho que houve um golpe contra um governo que estava fazendo muita coisa errada mas era um governo legítimo. E a política económica é oposta à que era antes, é uma política económica neoliberal, a outra era de intervenção do governo. Esse golpe que deram na Dilma foi uma mudança drástica. Não foi só substituir um presidente por outro, mudou tudo.

E mudou também a posição do Brasil no mundo?
O Lula, pelo menos, teve aquele encontro com Barack Obama em que o presidente dos Estados Unidos disse: ‘Este é o cara’. Houve um momento na história recente em que Lula era um exemplo de um Governo que funcionava, que favoreceu os pobres, mas tudo isso se perdeu com a corrupção do próprio PT. Teve uma época em que o Brasil teve uma projecção, acho que principalmente pela figura do Lula.

Isso decairá agora?
Eu acho que sim, pelas acusações de corrupção contra o PT e contra o próprio Lula, que não foram provadas ainda mas certamente são procedentes. De certa maneira o PT também é afastado de qualquer possibilidade de voltar e de ter a mesma força. 

Isso conduz-nos outra vez à ideia da mentira, que está no título destes dois livros. Para lá do quotidiano social, a mentira não está também instalada no dia-a-dia da política e dos políticos, como método, como regra?
A mentira é uma necessidade social, até certo ponto. A gente mente para não magoar alguém, para evitar algum incómodo. Isso não quer dizer que a mentira política também seja inevitável. Mas mentir no nosso quotidiano é uma necessidade justificável.

Mas nalguns destes contos a mentira dá lugar a outra para justificar a primeira, e às vezes acaba num crime. Não é uma coisa perigosa?
A mentira é uma arma, depende do modo como é usada. Sair matando com a arma, ter a arma em casa ou ser contra a arma, isso depende sempre da decisão da pessoa.

Mas no caso da política quase mata e, às vezes, mata mesmo.
Às vezes mata mesmo. Mas acho que fora isso, fora a mentira política, criminosa até, a mentira é uma necessidade social.

Começou a escrever crónicas na época da ditadura. Já viu muita coisa. Isso dá-lhe algum optimismo em relação ao momento que atravessamos – com a eleição de Trump nos EUA ou com o que se passa no Brasil e na Europa? Quando já se passou por muita coisa, é-se mais optimista?
A grande vantagem desta época, pegando o Brasil como exemplo, é que muita coisa melhorou. Não há como não concordar que a actividade política sem a censura, sem ditadura, é muito preferível. Nesse sentido houve um progresso. Depois do período militar tivemos já vários presidentes eleitos. Tivemos agora, é verdade, um impeachment e um golpe. Mas acho que a prática política melhorou bastante no Brasil.

É verdade que estão a fazer um documentário sobre si?
Tem uma jornalista que está há uns quatro anos fazendo um documentário sobre mim. Eu toco numa banda de jazz e ela vai. Recentemente, outro cineasta, Angelo Defanti, ficou quase duas semanas lá em casa filmando o dia-a-dia. Deu como exemplo o documentário sobre José Saramago. O Angelo filmava aquelas coisas normais, que nós fazíamos, como se fossem extraordinárias. A gente comendo, conversando.

Tem uma rotina para escrever?
Geralmente começo a escrever de manhã, pelas 9h, 10h, ao computador, e aí trabalho o dia inteiro. Depende muito do prazo de entrega para o jornal.

E continua também a escrever para televisão.
Fizeram um programa chamado A Comédia da Vida Privada, correu muito bem. E participei de outras equipas de criação para programas humorísticos, para Jô Soares e outros.

O jazz é uma das suas duas paixões americanas [viveu a infância e a adolescência nos Estados Unidos] a par dos policiais, que o levaram a criar o detective Ed Mort. Como lhe veio à cabeça esta personagem?
Sempre li muito os policiais norte-americanos, principalmente, Raymond Chandler e Dashiell Hammett. E o Ed Mort é uma paródia àquele tipo de detective adaptado para o Brasil. Nada dá certo para Ed Mort, ele nunca resolve os casos, quando pagam o trabalho dele é com cheque sem cobertura. A ideia foi essa, uma paródia literária.

Porque é que escolheu um detective carioca e não um gaúcho?
O carioca tem essa reputação da esperteza.

Criou também a Velhinha de Taubaté, que se tornou uma celebridade. Há alguma dessas suas personagens que o persiga?
A Velhinha de Taubaté ganhou notoriedade porque era a última pessoa do Brasil que acreditava no governo e então se transformou numa atracção turística, as pessoas iam até Taubaté para ver esse fenómeno. Mas a velhinha morreu, ela mesmo decidiu morrer porque não acreditava em mais nada.

Portanto já ninguém acredita no governo agora.
Ninguém mais é Velhinha de Taubaté. Mas há o Analista de Bagé, que eu criei, e agora recebi notícia de que fizeram uma estátua em Bagé. Vai ser inaugurada em Dezembro. 

De todas essas personagens, há alguma que tenha gostado mais de fazer?
Tem uma que de vez em quando me manda cartas. É uma mulher chamada Dora Avante, da sociedade carioca, nova-rica. Ela escreve cartas para mim. Acho que essa é a única personagem reincidente, Dora Avante.

O que quer dizer aos seus leitores sempre que a traz para os seus textos?
Não sei se dá para definir o que é que a gente pretende. Acho que o importante é manter uma ideia de irreverência. A ideia de que tudo pode ser criticado, gozado.

Voltando ao jazz: apaixonou-se por ele quando estava nos Estados Unidos e ouviu ao vivo músicos como Charlie Parker ou Dizzy Gillespie. Foi uma paixão forte?
Nós ouvíamos muita música norte-americana lá em casa. O meu pai [o escritor Érico Verissimo] gostava também e eu comecei a me interessar pelo jazz a partir de um disco do Louis Armstrong, era na época do long play ainda. É um disco que eu gastei de tanto ouvir. Quando fomos para os Estados Unidos, já que eu estava indo para a terra do jazz, achei que podia aprender a tocar um instrumento. E queria tocar o instrumento do Louis Armstrong, trompete, mas eles não tinham trompete na escola de música, tinham saxofone, e decidi que ia ser o Charlie Parker (risos) em vez do Armstrong.

Discute-se muito a lusofonia, qual é o seu olhar sobre essa ideia?
Tudo o que favorece a comunicação entre as pessoas, povos, nações é positivo. Nessa reforma [ortográfica] que houve, Portugal perdeu muito mais do que o Brasil. Essa questão da língua é importante porque foram eliminadas barreiras de compreensão.

Numa crónica por causa dos seus 80 anos, Humberto Werneck dizia que mexer nos seus textos era “uma panada torta” porque estava tudo no sítio. E falava da “difícil arte de escrever fácil” como marca sua. Para conseguir isso, o que é preciso?
Antes de mais nada, escrever com clareza. Mas é um processo de criação que depende muito de a gente ir corrigindo enquanto escreve. Um advérbio desnecessário corta-se. E isso se faz no acto de escrever, a gente vai depurando.

Não chega ao computador e escreve a crónica de rompante.
Não, isso até é muito raro. Às vezes até se sabe o que se vai escrever mas tem de se decidir como. Se através de humor, da sátira, ou se vai escrever uma coisa mais pretensiosa, séria, profunda. Isso depende da disposição naquele dia, depende até de ter dormido bem na noite anterior. 

E qual a importância dos diálogos?
Para mim é sempre um desafio criar diálogos, porque através do diálogo a gente fica conhecendo a personagem. Só pelo que diz, pelo que dizem, se define uma situação, se conhece uma pessoa. Isso é difícil de fazer, eu tento às vezes.

Dos novos cronistas destaca alguém?
Tem um cronista brasileiro dos novos chamado Antonio Prata [publicado em Portugal pela Tinta-da-China], filho de um escritor também, o Mário Prata. E aqui em Portugal vocês têm o Ricardo Araújo Pereira, que eu acho excelente. Tem gente boa aparecendo.

Muitos dos seus diálogos são curtos, muito sincopados. Estabelecem uma ligação rítmica. Aliás isso deve ver-se no livro que publicou agora no Brasil, Verissimas.
É um livro de frases que um rapaz lá do Brasil [Marcelo Dunlop] colectou durante anos. É engraçado que uma dessas frases é: “Viva todos os dias como se fosse o último – um dia, você acerta”. E essa frase está no último filme do Woody Allen. Não fui eu que plagiei porque escrevi antes, mas ele usou a frase. Não sei como chegou até ele.