Isabelle Huppert: "Tive a sensação de estar completamente nua"
As pessoas que a conhecem, diz-nos, vão reencontrá-la na personagem de Elle: Michèle LeBlanc, destemida e irónica, uma infatigável capacidade de se aproximar do Mal.
Isabelle Huppert entra pelo património verhoeveniano de mulheres que sobrevivem. Abandona-se nele. Disse ao realizador Paul Verhoeven que faria o que ele quisesse dela. Foi o que aconteceu – não tem parado de elogiar a elegância do cineasta holandês em tudo o que a desafiou. Mas aconteceu mais do que isso: o realizador fez o que ela quis. Como Verhoeven nos contou, se não parou de falar com Sharon Stone sobre a sua personagem em Instinto Fatal, com Isabelle Huppert manteve-se calado a filmar o que viu: ela, Michèle LeBlanc/Huppert, a aparecer. “É absolutamente único sentir perante um actor que qualquer coisa que se lhe diga diminui a sua performance”, foi o que Verhoeven nos confessou.
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Isabelle Huppert entra pelo património verhoeveniano de mulheres que sobrevivem. Abandona-se nele. Disse ao realizador Paul Verhoeven que faria o que ele quisesse dela. Foi o que aconteceu – não tem parado de elogiar a elegância do cineasta holandês em tudo o que a desafiou. Mas aconteceu mais do que isso: o realizador fez o que ela quis. Como Verhoeven nos contou, se não parou de falar com Sharon Stone sobre a sua personagem em Instinto Fatal, com Isabelle Huppert manteve-se calado a filmar o que viu: ela, Michèle LeBlanc/Huppert, a aparecer. “É absolutamente único sentir perante um actor que qualquer coisa que se lhe diga diminui a sua performance”, foi o que Verhoeven nos confessou.
Os homens dele sempre foram angustiados nas correrias, chegando a picos de crise em que perguntam quem se esconde dentro deles – Robocop (Paul Weller); Total Recall (Arnold Schwarzenegger). As mulheres sempre derrubaram tudo e todos por um objectivo (Sharon Stone, Elizabeth Berkeley, Carice van Houten...). Lust for life!, cantava Iggy Pop em Spetters, filme com a primeira heroína verhoeveniana de calibre, Renée Soutendijk – ouvia-se só um pedaço da canção. Lust for life!, canta Iggy Pop em Elle, filme com a mais recente heroína verhoeveniana – ouve-se mais dessa canção. Huppert completa esse património, faz um upgrade, com ela ouve-se por inteiro a sua “música”: contemplação, melancolia (e ironia, fundamental...).
Esta é a história de Michèle LeBlanc, que um dia é violada por um mascarado. Esta é a história de uma peregrinação em que a vítima se supera na busca do violador. Fica a ser a história de um grupo de homens e mulheres com as suas – humanas, isto é, monstruosas – razões. No intervalo da rodagem de Madame Hyde, de Serge Bozon, história de uma professora de liceu do subúrbio, menosprezada por alunos e colegas mas vitalizada por uma perigosa energia (podia ser de outro modo?), Isabelle Anne Madeleine Huppert, 63 anos, disputada pelo jornalista ao telefone e pelo plateau que a reclama para uma cena, está inteiramente “lá”, disponível para continuar a descobrir Michèle LeBlanc. Santa Isabelle!
Com a personagem de Michèle LeBlanc entra para a galeria de um modelo de mulher verhoeviana a que já pertencem Renée Soutendijk, Sharon Stone, Elizabeth Berkeley, Carice van Houten...
Sim, Verhoeven é um cineasta solidário com as mulheres. Há quem diga que é um misógino, penso que é o contrário disso. Não me espantou nada que se tivesse interessado pela personagem de Michèle [criação do escritor Philippe Djian no romance Oh...], que é um protótipo, não é uma personagem que se encontre na vida nem na ficção. Eu diria que é uma personagem pós-feminista, como se tivesse integrado já todos os combates travados pela igualdade entre homens e mulheres, pela independência e liberdade das mulheres, e estivesse para além disso, para além da reivindicação.
E está para além também na maneira como organiza uma vingança – porque é isso que o final de Elle nos mostra, uma forma de vingança —, como a organiza de forma tão familiar e também tão solitária, fora dos critérios habituais de resposta ao facto de ser vítima. Ela percorre um caminho completamente novo.
Precisamente, há algo de novo que você traz às heroínas de Verhoeven, que são habitualmente mulheres de acção, que fazem coisas, que traçam um objectivo e fazem tudo para chegar lá...
... absolutamente.
... mas aqui, pela primeira vez, essa mulher olha para si própria, está simultaneamente dentro e fora.
Estou completamente de acordo. É como se fosse ao mesmo tempo activa, porque faz coisas, e passiva, espectadora de si própria. É como se houvesse sempre uma décalage, como se pudesse estar sempre um bocado ao lado de si. Ela utiliza muito a ironia, e é isso que lhe permite a distância. Também é espectadora do que lhe acontece.
É um filme de acção contemplativo...
Bela formulação... Se Instinto Fatal é um filme americano, Elle é europeu, concretamente francês. Com um sentido do movimento e do ritmo que o desterritorializa, que o internacionaliza. Mas é como diz: é um filme de acção contemplativo. Não que seja lento, mas há qualquer coisa que o contém.
Não é você um dos princípios disso e da mise-en-scène do filme? Isso de estar simultaneamente dentro e fora é muito Isabelle Huppert, se me permite.
Percebo o que quer dizer. Aliás, tive a sensação com este filme de estar completamente nua – e não há jogo de palavras nisto —, porque a fronteira entre mim e o papel era de tal forma ténue, que tudo parecia acontecer perto de mim. Penso que as pessoas que me conhecem bem me reencontram na personagem. Verhoeven deixou que eu fizesse a fusão perfeita entre mim e a personagem. Isso é raro, porque há filmes que resistem, sem agressividade alguma, mas pela mise-en-scène, pela forma como a ficção está organizada, que resistem a que essa fusão aconteça. Verhoeven fez para que isso acontecesse.
Ajude um pouco a encontrar a personagem. Por um lado, parece uma puritana – é irresistível, na relação com a mãe, a forma como a provoca, quase como uma criança; por exemplo, encontrando-a com o amante, pergunta se a mãe lhe revelou que era seropositiva. A mãe, por sue lado, num momento diz-lhe: “Tu preferes a versão asséptica das coisas.” Mas como gestora de empresa de videojogos, Michèle quer imagens violentas, quer que os jogadores, como ela diz, se sujem de sangue nos dedos.
É difícil de explicar, porque a proposta do filme é furtar-se a uma explicação objectiva, colocando-o à mercê da subjectividade de quem vê. Enquanto rodava, fui levada pelo fluxo das cenas, uma depois da outra, não havia espaço para reflectir, para ter um ponto de vista. Coisa que venho fazendo depois, coisa que faço agora. Sendo assim, posso dizer que existe nela uma atracção, um buraco negro... o passado com o pai, a proximidade da morte que o pai a fez viver... há um gosto pela violência, mesmo pela violência do seu violador. Com a mãe, ela coloca-se obviamente como filha, chocada perante aquela fúria libertária...
Por aí há um laço com a sua personagem de A Pianista [Michael Haneke, 2001]. Embora Michèle não queira ficar prisioneira do passado, queira escapar a um determinismo, a infância permanece nela, como na personagem de A Pianista.
Efectivamente também há uma questão complicada com a origem do pai na Pianista. É verdade. Mas não são questões expressas da mesma maneira nos dois filmes, porque no caso de Elle falamos de alguém que ultrapassou tudo isso, é uma sobrevivente, enquanto n’A Pianista ela é deixada num esquema infantil. A personagem de Elle saiu disso, embora isso possa constituir o seu inconsciente, o mais profundo do seu ser, da sua conquista sexual, feminina e humana.
Está em todas as cenas do filme, que é um retrato de mulher. O extraordinário é que o filme é também um retrato de grupo. Há um lado de comédia humana. E é através da sua personagem que o filme se desloca para ir buscar as outras. É a busca, a deriva da sua personagem que coloca o filme em contacto com os outros: o ex-marido [Charles Berling], o filho [Jonas Bloquet], o amante [Christian Berkel, o violador, e Rebecca [Virginie Efira], que é um duplo de Michèle.
Foi uma das coisas de que gostei, o facto de a personagem ter múltiplas vidas, a vida com a mãe, a vida com o amante, a vida com o filho, a vida com o ex-marido, a vida com os empregados. Através de mim, somos levados a todas essas personagens. É um filme sobre uma mulher e é um filme sobre os homens, como se eles fossem consequência de uma idade de ouro de hegemonia masculina que teria terminado. Ela ter-se-ia construído a partir do fim desse mundo, desse reinado masculino.
Talvez por isso, mais misteriosa é a relação com a personagem de Rebecca. São o oposto uma da outra: Rebecca é crente, Michèle não. Pode parecer que a vontade de chegar ao outro estaria com Rebecca, mas pergunto-me se não é Michèle a mexer-se em direcção ao humano, e por isso ao monstruoso, com mais curiosidade.
Sim, Rebecca é uma crente, mas tem a sua própria perversidade: está ao corrente do que se passa com o marido, mas nunca o impediu de agir. Ela diz, aliás, uma coisa incrível a Michèle: “Obrigado por lhe ter dado [ao meu marido] durante algum tempo aquilo que ele procurava.” O que ele procurava era a violência, a minha personagem facultou-lhe isso, envolvendo-se ambos no inominável.
A pergunta é se Michèle não acaba, afinal, por permitir as razões dos outros mais do que a crente Rebecca... A sua disponibiliade para o que é humano não é menor.
Ah, claro. Porque na personagem há uma curiosidade pelo mal, uma vontade de compreender o mal, uma tentativa de o domar.