Em Cuba, um cinema imperfeito fez a revolução possível

A retrospectiva do Doclisboa Por um cinema impossível – documentário de vanguarda em Cuba (1959-1972) é uma oportunidade única para ver filmes raros que são retrato de um espaço e de um tempo.

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Poderá parecer insólito ao mais dogmático detractor da revolução cubana que uma das primeiras medidas do governo revolucionário que tomou Havana em Janeiro de 1959 tenha sido, três meses depois, fundar o Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográficas (ICAIC).

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Poderá parecer insólito ao mais dogmático detractor da revolução cubana que uma das primeiras medidas do governo revolucionário que tomou Havana em Janeiro de 1959 tenha sido, três meses depois, fundar o Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográficas (ICAIC).

O ICAIC nasce por iniciativa do exército rebelde para documentar as acções revolucionárias que se seguiriam – reforma agrária ou campanhas de alfabetização. Mas corresponde também ao ímpeto de jovens que já no tempo de Batista geriam projectos clandestinos como El Mégano (1955), de Julio García Espinosa y Tomás Gutiérrez Alea. José Massip e Alfredo Guevara colaboraram no filme que foi apreendido e censurado por Batista. Em 1959, Guevara seria o primeiro director do ICAIC; Massip, Espinosa e Gutiérrez Alea tornar-se-iam ícones do cinema revolucionário cubano, a que se juntaria Santiago Álvarez.

A revolução cubana teve, desde as insurreições dos anos 50, um braço cultural próximo do armado, estética e politicamente comprometidos, num processo dialógico que o ICAIC implementou, entre a arte e a indústria do cinema. “A destreza política de Alfredo Guevara consistiu em persuadir Fidel Castro a permitir fazer da arte e não da propaganda o eixo director do instituto, dando assim rédea solta à experimentação artística”, diz Michael Chanan, comissário da retrospectiva que o Doclisboa 2016 dedica por estes dias a esta produção, Por um cinema impossível – documentário de vanguarda em Cuba (1959-1972), com sessões até ao próximo domingo no Cinema São Jorge e na Cinemateca. 

Reduzir este cinema a propaganda resulta, assim, da incapacidade de perceber a sua complexidade, as suas contradições, a sua vanguarda estética, num “país subdesenvolvido” que fundou uma indústria do cinema própria, no contexto adverso de uma economia “demasiado pequena para [se] sustentar”. É a esse projecto que Chanan chama de “cinema impossível”, como explicará na mesa-redonda desta quarta-feira, às 11h, no Cinema São Jorge

A urgência do testemunho

O diálogo é entre o intelectual e a massa, o individual e o colectivo, entre a câmara, a mão e os olhos de quem nela, como num espelho, se revê (Por primera vez, de Octavio Cortázar, incluído no módulo que passa esta quarta-feira, às 15h30, na Cinemateca, é disso exemplo). Tudo é processo, tudo é posto em causa: o saber do realizador sobre o seu ofício, sobre a sua função na sociedade, sobre a própria revolução.

Não há um género, um estilo, um movimento. Não há uma maneira única de filmar esta revolução. Mesmo que Alea e Espinosa tenham estudado em Roma e venham inundados de neo-realismo. Mesmo que Alea se insurja contra o Free Cinema ou o Cinéma Vérité. Mesmo que em simultâneo com este processo-revolucionário-audiovisual-em-curso ocorram outros (a Nouvelle Vague francesa ou o Cinema Novo brasileiro). Mesmo que a montagem frenética de Santiago Álvarez (Now ou LBJ, este em exibição também esta quarta-feira na Cinemateca, sessão das 19h) pareça uma versão caribenha de Dziga Vertov, irónica e iconoclasta. No documentário, na animação, do cinema didáctico à longa-metragem de ficção, não há um cinema cubano, e por isso ele é impossível de ser classificado. E vem sempre acompanhado de um pensamento crítico e constante, do debate entre autor, obra e espectador, iniciado pela revista Cine Cubano.

Há urgência em contar este tempo. O testemunho é voz do narrador, protagonista privilegiado da história. Pode ser documental ou ficcional (ver como Octávio Gómez complica história, testemunho e encenação em La primera carga al machete, que a Cinemateca exibe esta quinta-feira às 15h30 e o São Jorge no sábado às 18h30), mas parte sempre desse olhar imperfeito, subjectivo e até contraditório, dentro do processo revolucionário.

Noticiero de Santiago Álvarez é o expoente deste olhar vanguardista, em Cuba (Ciclón ou Despegue a las 18:00, com projecção esta quarta-feira às 19h, também na Cinemateca) e no mundo (incursões pelo Vietname em Hanoi, Martes 13 ou 79 Primaveras, que está na mesma sessão que La primera carga al machete). Aqui a câmara é a voz, porque ao contrário das experiências do newsreel europeu das grandes Guerras, as “notícias” de Álvarez são História viva em que a câmara não observa passivamente os factos. Não há voz-off, nem o quê-quando-onde-como da notícia. Há colagem, justaposição, imagem de arquivo ou “directo”, película que se inflama em plena tela, porque, diz Álvarez, o “cinema não é uma extensão de” mas a “acção revolucionária em si”. Estes filmes são denúncias ou investigações, resgates históricos ou celebratórios, ensaios e reportagens, enfim, militantes. Há quem só vá ao cinema para ver os dez minutos do noticiero de Álvarez que precedem o filme em exibição.

Um, dois, três, muitos Vietnames

O fascínio dos intelectuais de esquerda pela revolução foi imediato: Sartre, Beauvoir, Régis Debray, García Márquez; mas também cineastas como Joris Ivens (El Pueblo Armado), Chris Marker (La Bataille des Dix Millions), Agnès Varda (Salut les cubains!) visitaram Cuba para descobrir como se fazia a revolução. Estas colaborações foram preciosas porque a vinda de cineastas experientes contribuiu para a formação técnica, de câmara ou montagem, que muitos não tinham. Joris Ivens escreveu aos realizadores cubanos: “Devem esquecer-se dos problemas de técnica e de estilo. Aprendê-los-ão com o tempo. O mais importante por agora é deixar a vida entrar nos estúdios e não se tornarem burocratas da câmara. Filmem rapidamente e tão directamente quanto possível tudo o que se está a passar.”

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Joris Ivens com Fidel Castro em Cuba dr

O que se estava a passar em Cuba passava-se também no Terceiro Mundo. A reunião Tricontinental em Havana, em 1966, permitiu a Che Guevara (morreria um ano depois, morte captada pela urgência do olhar de Álvarez em Hasta la victoria siempre) expandir a sua “teoria do foco”, apelar à insurreição armada e à solidariedade internacionalista. Eram precisos “um, dois, três, muitos Vietnames” para alimentar o movimento de descolonização anti-imperialista: a Guiné-Bissau foi um deles e Madina Boe, de José Massip, é testemunho raro sobre a revolução do PAIGC.

Foi preciso descolonizar, documentar, democratizar. Realizadores, actores, equipas tornaram-se parte do processo de colectivização. Fosse esse o "cinema imperfeito" (manifesto de García Espinosa, 1969), porque incompleto até a lacuna ser preenchida pelo espectador; fosse esse o cinema "da fome" (Glauber Rocha, 1965), porque só a fome do subdesenvolvimento pode conduzir à violência, e só o cinema a torna possível; fosse esse, finalmente, o "terceiro cinema" de Fernando Solanas e Octavio Getino (1969) que, partindo de Frantz Fanon, desenhou a descolonização da produção, distribuição e criação cinematográficas da América Latina. Enfim, Cuba e a “sua” América falavam estética e politicamente em uníssono.

Pós-1972 ou 1989?

No cinema, 1972 foi o limite. Na literatura foi antes, com Heras León, Heberto Padilla e depois Reinaldo Arenas, exilados ou “retractados”. Tempo de quinquenio gris, cinco anos (ou quase uma década) de dura sovietização de Cuba, que impôs um negrume dogmático à ilha e que transformou profundamente a sua produção cultural – e sobretudo transformou para sempre a errónea percepção do mundo sobre a sua produção cultural.

1989 foi ainda mais dramático, com o colapso da União Soviética, mergulho no isolamento e na crise que ditou o fim do Noticiero de Álvarez por falta de fundos. Após o êxodo de técnicos, actores e realizadores, transições geracionais e muitas co-produções internacionais, ainda assim, Cuba tem um dos mais excepcionais arquivos fílmicos do mundo. Há que o ver hoje, oportunidade única. O cinema, esse, continua imperfeito, e, por isso mesmo, vivo.

Raquel Ribeiro é jornalista, professora na Universidade de Edimburgo e membro do Centre for Research on Cuba no Reino Unido e participa na mesa-redonda desta quarta-feira no Cinema São Jorge