O ventríloquo que quis ser Kurt Cobain (eis um sonho americano)
É a mais desconsiderada das formas do entretenimento, mas Gisèle Vienne não quis de todo rebaixá-la. Com A Convenção dos Ventríloquos, esta encenadora que também ouve vozes encerra este sábado o Festival Internacional de Marionetas do Porto.
Gisèle Vienne já sabia quase tudo sobre o encontro internacional de ventríloquos que se realiza anualmente no Hotel Marriott do aeroporto de Cincinnati antes de lá aterrar em 2014 com uma pequena equipa artística para tornar ainda mais verdadeiro o espectáculo que então já tinha a meio. Não é difícil fazer uma ideia do que encontrou: A Convenção dos Ventríloquos, com que hoje regressa a Portugal para encerrar o Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP) e que em Maio integrará o Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa, é em grande parte a reconstituição fiel da comunidade com que durante uns dias se fez unha e carne e que jurou — a pedido dos próprios — não retratar “como um freak show”. Não que estivesse tentada, até porque ela também ouve vozes (já lá iremos): “O ventriloquismo não é uma loucura muito diferente de todas as outras com que nos cruzamos no dia-a-dia: da minha, da tua... É só uma loucura que por natureza é visível.”
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Gisèle Vienne já sabia quase tudo sobre o encontro internacional de ventríloquos que se realiza anualmente no Hotel Marriott do aeroporto de Cincinnati antes de lá aterrar em 2014 com uma pequena equipa artística para tornar ainda mais verdadeiro o espectáculo que então já tinha a meio. Não é difícil fazer uma ideia do que encontrou: A Convenção dos Ventríloquos, com que hoje regressa a Portugal para encerrar o Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP) e que em Maio integrará o Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas de Lisboa, é em grande parte a reconstituição fiel da comunidade com que durante uns dias se fez unha e carne e que jurou — a pedido dos próprios — não retratar “como um freak show”. Não que estivesse tentada, até porque ela também ouve vozes (já lá iremos): “O ventriloquismo não é uma loucura muito diferente de todas as outras com que nos cruzamos no dia-a-dia: da minha, da tua... É só uma loucura que por natureza é visível.”
A história de como ela, vinda da galáxia não muito distante — mas ainda assim outra galáxia — do teatro de marionetas, aterrou neste planeta diz bastante acerca da forma como o imaginário popular o fixou: como um lugar invariavelmente bizarro, habitado por criaturas “no mínimo estranhas, frequentemente perigosas, eventualmente assassinas”. Foi em 2008, estava Gisèle Vienne a meio de outro espectáculo, Jerk, que veio mostrar a Serralves logo no ano da estreia e três anos depois ao Maria Matos (antes disso, neste mesmo FIMP, tínhamo-la visto a encenar um igualmente perturbador Showroomdummies): “Jerk era a história muito violenta do cúmplice de um serial-killer que acabava a fazer falar os diferentes cadáveres que tinha ajudado a matar — por ventriloquismo. As vozes ficavam a flutuar em cima do palco, como uma assombração. Pareceu-me logo incrível como um truque tão simples cujo segredo estamos fartos de conhecer consegue mesmo assim produzir magia.”
Anos depois, continua a parecer-lhe incrível — mas isso é porque desde o início da sua formação como marionetista está sobretudo interessada “nas relações de associação e dissociação” que é possível estabelecer entre uma voz e um corpo, relações que o ventriloquismo leva ao paroxismo da alienação total nesses gags muito déjà vus em que o ventríloquo se mostra mais estupefacto do que qualquer espectador desprevenido com o que o seu boneco acaba de dizer. “No teatro é tão frequente haver seres humanos a falar que nos esquecemos de pôr a relação entre o corpo e a voz em questão. Mas os meus espectáculos fazem por desenterrar outras camadas de linguagem que talvez sejam incorpóreas e que certamente estão para lá da palavra evidentemente audível; esforço-me sempre por ir buscar narrativas invisíveis, escondidas, subterrâneas”, explica Gisèle Vienne, acrescentando não ser por acaso que o escritor com que costuma trabalhar, Dennis Cooper, está sempre a dar-lhe “personagens introvertidas, com dificuldades de expressão”.
Anos depois de Jerk — e retomando o primeiro performer que a encenadora e marionetista franco-austríaca forçou a tornar-se ventríloquo, Jonathan Capdevielle —, A Convenção dos Ventríloquos amplifica essa experiência fundadora, desdobrando os nove intérpretes em 27 vozes (a voz do ventríloquo, a voz do boneco e a voz interior não sabemos de qual deles, possivelmente de ambos). Um verdadeiro “labirinto psicológico”, mas talvez não muito mais denso do que aquele com que Gisèle e a sua pequena equipa se depararam em Cincinnati num hotel com 500 ventríloquos (e respectivos acompanhantes): “Qualquer conversa ali é uma experiência de mise-en-abyme: às tantas já não sabes se o que estás a ver é um ventríloquo a falar com outro ventríloquo ou a marioneta de um ventríloquo a falar com a marioneta de outro ventríloquo. É insano”, conta.
Mesmo tendo sido também bastante insana a operação de reconstituir em palco esse mundo paralelo, Gisèle Vienne olha para A Convenção dos Ventríloquos como uma forma de justiça poética: o espectáculo em que pôs uma das mais consideradas companhias de teatro de marionetas da Europa, o Puppentheater Halle, a experimentar uma das mais desconsideradas formas da indústria do entretenimento. “É claro que exprimires a tua fragilidade com um boneco não tem o mesmo glamour de o fazeres com uma banda. Mas quando usei o ventriloquismo pela primeira vez, descobri um meio muito potente que a arte contemporânea sempre marginalizou mas que pode ter uma utilização muito pertinente”, diz ao PÚBLICO. Nisso, talvez este seja um sonho tão americano como o de algumas das figuras que encontrou em Cincinnati — e às quais quis dar uma segunda vida não como freaks nem como assassinos mas como gente cool como um certo rapaz chamado Kurt Cobain.