“O que sempre me emociona na religião é o lado erótico”
O Ornitólogo: natureza, animais e transcendência. A apropriação erótica, por João Pedro Rodrigues, da mitologia de um casamenteiro, Santo António de Lisboa. E talvez um auto-retrato.
Por estes dias, João Pedro Rodrigues termina um filme-encomenda para a exposição que o Centro Georges Pompidou, em Paris, dedicará à sua obra entre 25 de Novembro e 2 de Janeiro de 2017 — parte dela feita em colaboração com João Rui Guerra da Mata. Será a integral dos filmes, haverá uma instalação (com João Rui), já anda por aí um livro de conversas com o cineasta Antoine Barraud, João Pedro Rodrigues, Le Jardin des Fauves, e veremos o tal filme, em que o realizador responde à pergunta: “Où en êtes-vous?” Onde é que ele, que se estreou nas longas-metragens em 2000 com O Fantasma, e acaba de chegar à casa dos 50, está agora? Eis o que ele nos respondeu:
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Por estes dias, João Pedro Rodrigues termina um filme-encomenda para a exposição que o Centro Georges Pompidou, em Paris, dedicará à sua obra entre 25 de Novembro e 2 de Janeiro de 2017 — parte dela feita em colaboração com João Rui Guerra da Mata. Será a integral dos filmes, haverá uma instalação (com João Rui), já anda por aí um livro de conversas com o cineasta Antoine Barraud, João Pedro Rodrigues, Le Jardin des Fauves, e veremos o tal filme, em que o realizador responde à pergunta: “Où en êtes-vous?” Onde é que ele, que se estreou nas longas-metragens em 2000 com O Fantasma, e acaba de chegar à casa dos 50, está agora? Eis o que ele nos respondeu:
“Impossível responder a esta pergunta senão pela física materialidade das imagens. Imagens do passado e de lugares onde tenho estado ultimamente: vivi no Fresnoy, a escola do norte de França, em Tourcoing, onde montei e terminei O Ornitólogo, um retiro aprazível depois da violência da rodagem; vivi em Cambridge, EUA, no Radcliffe Institute da Universidade de Harvard, perto de Concord e do lago Walden, onde Henry David Thoreau escreveu o Walden e onde está enterrado, no cemitério de Sleepy Hollow, em frente a Nathaniel Hawthorne e outros escritores ‘transcendentalistas’ (o lago Walden e Sleepy Hollow debaixo da neve, o grito solitário do mergulhão ao cair da noite); e as viagens, como a migração das borboletas-monarca que voam milhares de quilómetros para depois regressar, reproduzir-se e morrer. Imagens e sons em Super 8, HD, vídeo — MiniDV e telemóvel.”
Isto é O Ornitólogo, natureza, animais e transcendência. João Pedro está aí, na apropriação erótica da mitologia de um casamenteiro, Santo António de Lisboa.
Eis as aventuras de um ornitólogo (Paul Hamy) no Norte de Portugal, de caiaque a observar pássaros. A natureza não se lhe submete, como naqueles westerns zangados com a oficialização do mito, e o ornitólogo vai naufragar, elevando-se de aventura em aventura, rio acima, em direcção à fé que não tinha — é claro que a passagem, a transformação, se faz depois de sentir(mos) a carne, depois de duas chinesas em peregrinação a Santiago de Compostela o iniciarem nas sevícias do shibari (técnica de amarração, jogo erótico), e depois de descobrir as delícias do golden shower através de um travesso careto transmontano.
João Pedro está agora aqui. Há neste filme dos seus 50 anos, prémio de realização no Festival de Locarno, um reencontro com os inícios: quando queria ser ornitólogo, quando via pássaros e se perguntava se os pássaros o viam. É reencontro com os seus começos de cineasta: O Fantasma (2000). Tal como esse filme, e ao contrário dos seguintes Odete (2005) e Morrer como um Homem (2009), de cuja configuração melodramática se liberta, O Ornitólogo , que estreia nas salas portuguesas a 20, faz um travelogue sobre as metamorfoses de uma personagem. É pelo princípio que começamos.
Estive a reler a nossa conversa, há 16 anos, quando estreou O Fantasma [suplemento Artes e Ócios, 20 de Outubro de 2000]. A primeira pergunta era sobre o facto de filmar personagens como se observasse o comportamento de uma espécie animal, os pássaros. Na sua resposta falava do seu desejo de ser ornitólogo, quando ia observar os gansos patolas...
Falo já disso aí?
Sim, é a primeira resposta. Lendo o que se fala d’ O Fantasma, é como se estivéssemos a falar d’O Ornitólogo. Sempre pensei O Fantasma como a “cena original” do seu cinema, que ia sendo desdobrada nos outros filmes [designadamente em Odete e em Morrer como um Homem]. Mas O Ornitólogo não é uma derivação, é o princípio de tudo.
É engraçado dizer isso... Eu era tão inocente naquela altura [em 2000]. Com o passar do tempo uma das coisas aborrecidas é pensar que nos repetimos. Nunca sei qual vai ser o próximo filme, isso ainda não aprendi a fazer. Só sei que cada filme é o resultado de ter feito outros. Mas senti, com O Ornitólogo, que não sendo um filme autobiográfico, é um filme sobre um caminho que podia ter traçado se não tivesse feito filmes, se tivesse continuado na Biologia, se tivesse podido ser ornitólogo — porque é uma profissão difícil, as pessoas desistem e acabam por ser professores. Para este filme voltei a ir observar aves como antes fazia, e com um ornitólogo, como antes nunca fazia. Porque era uma coisa de um mundo infantil, que substituí com o cinema e a que agora, através do cinema, volto.
Este filme tem algo de si antes de tudo...
Tem, mas agora tenho 50 anos. Que é uma idade charneira, onde se ultrapassa qualquer coisa. Entrei numa nova década da minha vida. Como é que continuo a viver neste mundo e a fazer filmes?
Há dois pares de filmes — falo das longas-metragens [a solo] — na sua obra: O Fantasma e O Ornitólogo estão de um lado, Odete e Morrer como um Homem do outro. No primeiro grupo há uma espécie de travelogue sobre uma personagem, as paisagens que vemos mudar são as metamorfoses dessa figura, tudo o resto está em fundo, a natureza no último filme, Lisboa n’ O Fantasma...
... é Lisboa e é também natureza, porque é uma Lisboa fronteiriça.
Sim. Mas são filmes sobre uma personagem: as outras passam por ela, ela vampiriza-as ou é vampirizada por elas. No segundo par de filmes, até pelo jogo com o melodrama, há uma interacção, um trabalho com a narrativa menos abstracto do que aqui, que é o espectáculo de um corpo a mudar.
Quando fiz O Fantasma não sabia que a metamorfose seria uma coisa tão importante nos meus filmes. No Ornitólogo, no final há mesmo uma transformação de corpo. Tem razão quando diz que é um percurso de alguém que vai tendo vários encontros, vai ultrapassando provas como num filme de aventuras. E no princípio do filme ele não sabe onde quer chegar, há uma vontade de se perder: as mensagens, os telefonemas, nada disso lhe interessa muito, ele só quer descer o rio e continuar. É como se o destino o levasse e ele segue-o inconscientemente. É como se não se apercebesse da transformação, mas a fosse tornando sua. Ele quer outra coisa na vida que não aquilo que tem. Sabemos pouco sobre ele — não sabemos se o que ele faz é mesmo a profissão ou um passatempo — um bocadinho como no caso d’O Fantasma.
Até onde consegue recuar para encontrar o momento em que O Ornitólogo começou?
É difícil responder. Nunca sei como as ideias surgem. Será que vou conseguir fazer outro filme? Usou a palavra “abstracto”: fiz uma série de curtas, umas mais narrativas e abstractas do que outras [com João Rui Guerra da Mata: China, China, 2007, Alvorada Vermelha, 2011, Mahjong, 2013; a solo: Manhã de Santo António, 2012, O Corpo de Afonso, 2012], experimentei. Uns filmes nasceram do desejo de os fazer, outros foram encomendas, coisa que sempre achei que não conseguia. Isto obceca-me: é do vazio que surgem as ideias? Neste momento, por exemplo, sinto-me como se o chão me tivesse sido tirado debaixo dos pés. Mas espero que deste desconforto surja o próximo filme. Sei por exemplo que quero voltar a Macau [o “território” de Alvorada Vermelha, 2011, de A Última Vez que vi Macau, 2012]. Porque foi importante esta viagem, foi importante sair. O Ornitólogo já não se passa em Lisboa, por exemplo. Se calhar para sair de Lisboa tive antes de ir mais longe, para um território que existe mas que eu e o João Rui fomos também inventar porque tem a ver com as nossas memórias.
Quando estava a filmar naqueles lugares, que não conhecia — estamos a falar de Trás-os-Montes —, tivemos que andar à procura de todos os caminhos que iam dar ao rio, que no filme é o Douro, mas esse Douro é feito, na realidade, de muitos rios. É mais a ideia mítica de um rio. Descemos todos os caminhos que iam dar ao rio para encontrar os décores, para mapear todos os rios em Trás-os-Montes, no lado Oriental. Vi fotografias e depois eu próprio fui a esses lugares, sempre com a ideia de que estava a fazer um western: portanto, uma natureza inacessível, salvagem, brutal...
Que parece não falar com os homens...
Ou então que é igual aos homens. Como os animais. Aqueles lugares são os lugares onde vivem aquelas espécies de aves, que hoje já não são completamente raras, porque são protegidas, mas há ainda uma fragilidade ambiental. Interessava-me ir a lugares onde ninguém tinha ido. A muitos lugares não é possível, é preciso autorização especial. Viajar para aí é como viajar no tempo, são lugares que não mudaram.
Em que momento é que um filme sobre um ornitólogo se cruza com um filme sobre a apropriação de uma figura e seus mitos, Santo António?
Isso começou com Manhã de Santo António, com o meu interesse por essa figura. Não me interessa fazer a história de Santo António, embora tenha ido buscar muitos eventos dessa figura que nasceu no século XII e morreu no século XIII de uma doença. Não há documentos que provem que o que se sabe dele é verdade. Há coisas que se foram escrevendo, há uma lista dos seus milagres, há uma série de biografias, mas não há documentos de época, são hipóteses. Isso permitia ter uma liberdade muito grande e usar esses acontecimentos como muito bem quisesse, e com uma vontade iconoclasta. Tal como a religião católica, esse santo foi apropriado pela ditadura, como um dos seus pilares, transformado em símbolo do casamento... Eu quis voltar à cena primitiva, um santo franciscano que abandonou a riqueza, os bens materiais e que se dedicou aos outros. Tinha uma relação privilegiada com a natureza. Usei os vários elementos para fabricar uma estrutura onde assentar uma personagem que vive agora, que é como um herói do western — corpo físico, corpo quase mineral, como aqueles westerns menos conhecidos com o Randolph Scott...
... a paisagem parece saída dos westerns de Anthony Mann...
... por isso quando andei à procura de um actor, não consegui encontrar aqui ninguém. Tenho que desejar todos os meus actores. Para os poder filmar. É uma sublimação do desejo. Sempre foi assim. Quero que eles sejam desejáveis. Vi os actores que havia aqui... Queria até um actor mais próximo da minha idade, mas não encontrei ninguém. Havia a ideia inicial de querer um americano, mas é difícil chegar a eles — ainda quero. O filme é uma co-produção com a França e o Brasil e foi o produtor francês que me sugeriu o Paul Hamy. Encontrei-me com ele, porque para mim é sempre decisivo perceber se me entendo com as pessoas. Tenho de saber se sei moldar aquela pessoa. E se a desejo. O Paul é meio francês e meio americano, isso tem qualquer coisa. Não é como os actores franceses habituais, em que é só bla bla...
Tinha que falar com o corpo...
Tinha de encarnar. Este filme é uma encarnação do Santo António. Como se encarna um santo? Foi por aí que cheguei à religião. Não sou religioso. Nunca fui, nunca tive educação religiosa. Mas o que sempre me emociona na religião é o lado erótico, como se pinta um corpo — porque estou a falar de pintura religiosa, que tem um lado quase blasfemo. Quantos quadros do Caravaggio foram recusados por serem demasiado escandalosos, por ele escolher corpos demasiado proletários, não elevados, por exemplo? É esse lado da encarnação que me interessa, estar perto da carne.
O título da nossa conversa sobre O Fantasma era “Sentir a Carne”...
Ai era? Mas não fui reler a entrevista....
Faz sentido que se vá dar a O Fantasma...
Também acho, mas não poderia ter feito este filme quando fiz O Fantasma...
De acordo, há coisas que só estão neste, chegaremos lá. Vamos à blasfémia. Há aquela sequência em Odete em que a personagem da Ana Cristina Oliveira arranca com a boca a aliança das mãos de um morto. Há em O Ornitólogo a sequência em que a personagem é “baptizada” com urina. Como é que esses momentos acontecem nos argumentos, a que desejo respondem? Provocação? São sequências com humor, para além do mais.
É engraçado falar do humor... Os americanos têm escrito que O Ornitólgo é um filme cheio de humor, eu acho que não é assim tanto [risos].
Concordo com eles, é uma das coisas que separa O Ornitólogo de O Fantasma.
Se calhar é muito inconsciente.
Se calhar é e é por isso que é um humor luminoso, sereno.
Essa sequência da urina... Uma coisa que me interessa do ponto de vista erótico é o golden shower. Eu sabia que a personagem chegaria a um sítio em que avistaria o que seriam os índios dos cowboys [um grupo de caretos]. Tem medo deles, tem que se esconder. Como poderia eu criar suspense? Queria que ele se sentisse ameaçado. Eles estariam nos seus rituais de pulos, feito de muitas mitologias, não só dos caretos, e um deles poderia afastar-se para ir na direcção do ornitólogo. Poderia ter de ir mijar. E o ornitólogo teria de se esconder. Ficaria parado, para não se mexer. O outro mija-lhe então em cima. E ele não se afasta. Porque gosta.
Metamorfose, personagens em transformação: nos seus filmes alguém possui outro no processo. A personagem de Ana Cristina Oliveira em Odete era o caso mais flagrante. Mas em O Ornitólogo há um golpe de génio: a sua entrada em campo. A voz do realizador João Pedro Rodrigues dobra a do actor Paul Hamy, mas acontece mais: o realizador surge como outra hipótese de corpo para a personagem. Estamos a falar de um filme que tem a ver com os seus inícios. Nunca tinha acontecido antes, reclamar um filme para si. E dessa forma joga o jogo das personagens dos seus filmes, fazendo o que elas fazem, submetendo-se ao que elas se submetem.
Tem a ver com o facto de Paul Hamy ser quem eu queria ser. Há uma perfeição naquele corpo, tem a ver com a sublimação do desejo. Durante as filmagens pensei que a transformação da personagem devia ser mais radical. Por isso, de cada vez que havia o ponto de vista das aves, eu vestia-me como a personagem e fazíamos sempre duas versões da mesma cena. Todas as cenas do filme em que estou existem também só com o Paul. Não tinha a certeza se ia funcionar e se ia querer olhar para mim. A primeira vez que apareço — amarrado — experimentei em mim a maneira de me amarrar: o shibari. Ele esteve amarrado dois dias inteiros. É muito duro. Experimentámos vários desenhos e desenhámos aquela forma comigo. Queria sentir aquilo em mim. A minha primeira ideia era que ele estivesse suspenso, mas as dores eram grandes, era impossível manter-se. Pode-se morrer, há esse lado de risco, embora haja sempre uma maneira de desatar. Quem é amarrado sabe que se pode libertar. É um jogo erótico. Pode haver muito de sadomasoquismo, mas há sempre uma saída. Foi na montagem que decidi que funcionava. Como a voz: também não sabia que ia funcionar. Dobrámos o filme todo para aí 20 vezes. Foi difícil.
O actor aprendeu português, mas era difícil, e para mim era fundamental que não houvesse sotaque, que fosse credível.
Há duas coisas que me tocam no filme, sem que ainda consiga descodificar totalmente porquê. A primeira: o olhar das aves, a sensação de que a personagem está a ser olhada. Estive a rever os seus filmes anteriores, não encontrei equivalente a isto de, desde cedo no filme, tudo estar exposto, vulnerável, poder ser ocupado, deixando de haver primazias numa hierarquia de olhares. Não vemos só o que ele vê — e em O Fantasma ainda era o mundo visto pela personagem —, vemos que ele está a ser olhado. Há um sentimento difuso de ameaça...
Verdade. Nos outros filmes é como se houvesse só um ponto de vista. Tem a ver com o voltar ao passado. Comecei a ver pássaros antes dos dez anos, ia muitas vezes para fora de Lisboa olhar para os pássaros. Levantava-me cedo. E perguntava-me se os pássaros olhavam para mim. Há técnicas para ver os pássaros... Temos de nos mexer muito devagar para não os assustar. Mas o que é que eles vêem quando olham para nós? Em Manhã de Santo António havia já o olhar da estátua, olhar de alto, sempre exterior.
Mas mantinha-se ao longo do filme. Aqui o que faz vacilar é a intromissão...
Sim, e esses planos até são filmados com uma câmara diferente, com uma GoPro, câmara de que não gosto nada, que tem aquelas objectivas meias redondas, que sempre detestei, mas como a visão das aves — li sobre isso — é mais periférica, fazia sentido ver de forma diferente. Também tinha de ser uma câmara pequenina, porque filmámos com outra coisa que detesto, um drone. Como se pode filmar o ponto de vista de um pássaro a voar? Antes de fazer o filme propriamente dito, estive um ano a filmar aves. Não sabia o que iria encontrar. Fomos ao Douro com os ornitólogos, eles sabem onde elas estão, mas eu não sabia que ia filmar uma águia real. Mas filmámos e gostei muito daqueles planos dela por entre as falésias. Como fazer o olhar deste bicho? A melhor maneira era o drone. Estas tecnologias são para mim um bocado patetas, são utilizadas de forma pateta nos filmes, sem justificação — até as telenovelas têm planos de Lisboa planada —, mas pode interessar-me aproveitar delas o que interessa à história, à narrativa.
Nesta resposta antecipa já algo da pergunta seguinte. Habitualmente nos filmes, quando as personagens têm uma profissão, vemos cenas informativas que nos dizem o que a personagem faz e como o faz. Neste caso, as sequências das aves não estão lá para nos certificar que a personagem é um ornitólogo. Até pela sua duração, até por aquilo que se ouve, na voz off, sobre os pássaros, elas são uma intromissão, provocam uma inversão na hierarquia...
... como se fosse um filme científico.
Sim. E de novo a sensação de intromissão de algo de fora no corpo do filme, de novo a desestabilização de uma hierarquia que colocaria a personagem principal e a sua visão no topo. Há uma sensação muito física de ocupações, de possessões, em O Ornitólogo.
Se pensar no princípio do filme, começamos com um pássaro, com um mergulhão, que sai debaixo de água. Depois passamos ao Paul, que está a nadar, coisa que tem muito a ver comigo. E a primeira vez que vemos a cara dele, ele também sai debaixo de água, Já tinha filmado antes as imagens das aves, desse mergulhão. O que fiz, no fundo, foi construir o filme a partir daquelas imagens. Como se tudo pudesse ter a mesma importância. Como se, para voltar à sequência inicial, pudéssemos ter a história do mergulhão em vez da história da personagem. O princípio é como um documentário National Geographic. Todas as cenas com as aves foram construídas a partir daquelas imagens iniciais. Depois intrometi a ficção.
Como se a ficção começasse por ser o elemento estranho.
Sim, embora houvesse uma coisa escrita. Comecei com uma coisa escrita, depois passei por uma fase documental e depois adaptei o guião às imagens que tinha feito no Verão anterior. Todo o princípio foi adequado, por exemplo.
A outra coisa que impressiona é a passagem entre os planos, o lado aquoso, como se a natureza das coisas não se estabilizasse. Ficou-me, por exemplo, aquela passagem da água para uma flor, aquele fundido...
Esse da flor... Aquela flor vem de outros filmes, vem da Odete já. É a flor que o namorado do Pedro deixa na campa e a personagem da Odete pega nela e faz um arranjo...
... para depois se chegar àquele plano da jarra...
Sim, um lado carnal e plástico.
Esses fundidos foram encontrados na montagem. Como as imagens que as chinesas tiram no Caminho de Santiago: aquelas fotografias são todas minhas, sou eu a documentar o Caminho de Santiago, porque fui fazê-lo. Quando encontrei as chinesas, levei-as para os arredores de Lisboa, fotografeia-as juntas e é como se tivessem sido elas a tirar as fotos. Experimentámos...
É como se as coisas se intrometessem. E é verdade que a água tem esse lado, anda por todos os lados. A exposição que fizemos [João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata] em Vila do Conde [Festival de Curtas-Metragens] chamava-se Do rio das Pérolas ao Ave — Macau e Vila do Conde, como se a água comunicasse com tudo. Evapora e depois cai outra vez em chuva. Tem todos os tempos.
Estamos a falar de coisas que são uma forma de o realizador reclamar o que é seu. Há um momento em que a personagem diz que gosta de comida chinesa. Podia ser João Pedro Rodrigues a falar. Vai pontuando o filme com o seu território, como os animais o fazem. Mas se é assim, e se esta é a história de um tipo que não acredita, que não tem fé, mas que no final fica noutro ponto do seu percurso, em que ponto está o realizador e a sua fé? Os cineastas de que muitas vezes fala são cineastas que filmaram a fé. Acredita?
É verdade que há muitas coisas que podiam sair da minha boca. Mas se calhar O Ornitólogo tem a ver com o eu gostar de ter fé. Porque não tenho. Como se ultrapassa a morte? A personagem vive e morre várias vezes. Morreu e está vivo, é um final feliz. O filme sou eu a pensar que continuo vivo. Os meus filmes tratam sempre da morte: como se ultrapassa? Tudo isto misturado com o facto de ter 50 anos. Não tenho fé. Mas alguma coisa me emociona.
Quando vê um filme de Dreyer...
A Palavra é muito forte. É como se fosse possível acreditar, estar com aquelas personagens que acreditam.
Porque há interferência do cinema, é isso?
Sim. O cinema é muito realista. Permite filmar um milagre. Apesar de não acreditar em milagres. Mas naquele acredito.